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quinta-feira, 26 de julho de 2018

Rita, a professora e os milagres

26.07.2018

Marcos Rolim

Aos 44 anos, mãe de três filhos e solteira, ela não respeita as regras. É atraente e mantém uma vida sexual intensa, o que inclui encontros casuais em espaços públicos com diferentes parceiros

Rita, a defensora dos alunos. Sem ser santa (Foto: Divulgação/Netflix)

A TV como a conhecemos não existirá por muito tempo e a TV por demanda (TV on demand) talvez seja só um sintoma de mudanças mais radicais pela frente. Nesse ambiente de inovação, a experiência da Netflix se destaca e impressiona por vários aspectos. Um deles é a oferta de excelentes produções regionais europeias, latino-americanas e asiáticas, muito além dos enlatados norte-americanos que seguem sendo servidos em profusão pelos canais abertos e por assinatura. Nesse artigo, comento (sem spoilers) sobre a séria dinamarquesa Rita, que trata dos desafios da educação na escola pública.

Assim como em Merli (outra série bacana da Netflix), o tema de Rita é a escola, seus limites e possibilidades. Há, por óbvio, amplas diferenças culturais se tivermos em mente a realidade dos países nórdicos e a dos países latino-americanos, por exemplo, mas os conflitos abordados na série têm muito em comum com a realidade de qualquer escola no mundo e lidam com o que há de universal na agência humana. A Dinamarca é um pequeno país que construiu uma experiência notável de igualdade e democracia característica dos chamados Estados de Bem Estar Social (Welfare States), mas problemas como indisciplina, bullying, homofobia, gravidez na adolescência, uso de drogas e tráfico, inclusão de imigrantes, doença mental, entre outros, estão presentes em suas escolas. Como se pode observar na série, políticos demagogos e não comprometidos com o ensino público não são exclusividade brasileira e falta de recursos para a Educação e pais e mães negligentes ou superprotetores que produzem danos às crianças também são fenômenos presentes nos países mais desenvolvidos.

Rita (Mille Dinesen) é uma professora excepcional por conta de sua disposição de lutar por seus alunos. Aos 44 anos, mãe de três filhos e solteira, ela não respeita as regras. É atraente e mantém uma vida sexual intensa, o que inclui encontros casuais em espaços públicos com diferentes parceiros. Rita fuma e bebe muito – em um país onde há grande consumo de bebidas alcoólicas e grande incidência de tabagismo. Ela parece fazer pouco caso de si própria, mas sua dedicação e cuidado com os alunos são admiráveis. A rebeldia de Rita, entretanto, revela uma estrutura moral, não uma contestação diletante.

Para explicar isso, retomo Kohlberg (1927-1987) que identificou o processo de formação da consciência moral. Para ele, a infância seria marcada por uma “moralidade pré-convencional”, basicamente autocentrada e egoísta, onde há, primeiramente, uma orientação para a punição e a obediência e, depois, uma orientação hedonista. Na adolescência e na vida adulta, o nível de moralidade mais comum seria o “convencional”, onde se assume, inicialmente, uma postura de identificação com os valores do grupo e, depois uma conduta pela “Lei e a Ordem”. Nesse estágio, onde se situa a maioria dos adultos, a noção de justiça é marcada pela crença na “punição dos transgressores”. Haveria, entretanto, um nível superior de consciência moral, o da “moralidade pós-convencional”, onde se descobre que, sim, deve-se respeitar as leis, mas nem sempre as leis são justas e há circunstâncias em que é legítimo descumpri-las, o que vale também para a recusa de recebimento de vantagens legais, mas imorais. Nesse nível avançado do desenvolvimento moral, o estágio superior seria aquele em que o sujeito orienta suas ações pela validade de princípios universais. A ideia de desobediência civil, aliás, que pressupõe a decisão de submeter-se à punição pela inobservância de norma injusta, se funda nesta compreensão. Neste estágio de moralidade, o princípio proposto por Kant segundo o qual as pessoas devem ser concebidas como fins e nunca como meios seria, então, alcançado.

Rita tem um senso moral pós-convencional, por isso, é tão diferente, admirável, incompreendida e temida. Sua conduta, entretanto, a expõe sistematicamente, o que lhe agrega dissabores e sofrimentos, notadamente em suas relações pessoais.

Há, em vários episódios, momentos hilários e a atriz coadjuvante, Lise Baastrup, que faz a personagem Hjørdis, nos garante alguns deles com brilho. Ao mesmo tempo, o enredo vai delineando uma tessitura de relações sociais complexas, nas escolas e fora delas, alcançando uma densidade que cativa e estimula a reflexão. Rita é, sobretudo, uma professora engajada, que disputa seus alunos, notadamente aqueles cujos destinos lhe parecem ameaçados pelo mundo.

Talvez o que exista de melhor e de mais relevante na escola seja, exatamente, a possibilidade dela proteger crianças e adolescente da maldade do mundo. Hannah Arendt entendia que a Escola é o espaço intermediário entre o público e a vida privada das famílias. Para ela, não cabia à escola “ensinar a viver”, mas ensinar o que é o mundo, a partir do acesso ao patrimônio cultural construído pelas gerações passadas e pelo estímulo ao pensamento. Uma missão dessa gravidade exige muitas Ritas. São elas, afinal, que fazem com que o novo apareça sempre, como o disse Arendt, “sob o disfarce de um milagre”.

Fonte: https://www.extraclasse.org.br/edicoes/2018/07/rita-a-professora-e-os-milagres/

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Qual o seu nome? Quantos anos você tem? – Capitães de Areia discute a criança de rua

Antonio Carlos Ribeiro

A infância abandonada volta à telona em Capitães de Areia, (drama, 96 min., direção de Cecília Amado e trilha sonora de Carlinhos Brown), filme homônimo da obra que Jorge Amado escreveu no fim dos anos 30, aos 24 anos. A narrativa que trata de crianças abandonadas das ruas de Salvador, com seu cotidiano difícil e solidário, provoca a reflexão sobre a situação de crianças que vivem nas ruas, agravada em nossos dias, aos 75 anos desde o tema foi tratado na literatura brasileira.

Os dramas se multiplicam pelo número de crianças em situação de risco – sendo na verdade apenas um - se agravaram ao extremo neste quase um século. As ruas seguem sendo o espaço que não dá a segurança da casa, não exige a disciplina mínima para a convivência, a manutenção dos vínculos e a coesão do grupo. Nas situações-limite ganha a aura de liberdade, ausência de regras e superação de inibições, sempre ao preço da insegurança, dos riscos resultantes dos furtos em nome da sobrevivência e da exposição aos riscos físicos e emocionais, alguns extremos, vejam: http://www.youtube.com/watch?v=JGqlIu0IxIo

O filme narra a luta de crianças de rua do grupo conhecido como Capitães de Areia, liderado por Pedro Bala (Jean Luis Amorim), líder do grupo, cujo nome tem desde os 5 anos quando começou a vagabundear pelas ruas de Salvador, da qual conhece todos os becos e acessos. Conquistou a fama porque tem autoridade no olhar e na voz, sobretudo porque se arrisca, com toda a falta de condições, pelo grupo do qual é parte.

A Dora (Ana Graciela) é a única menina do grupo, que chega ao trapiche aos 14 anos, depois de perder a mãe para a epidemia de varíola e vagar pelas ruas com o irmão Zé Fuinha. No grupo ela se encontrou no papel de mãe e irmã de todos os meninos, e ‘noiva’ de Pedro Bala, a quem admirou logo após ser trazida.

O Professor (Robério Lima), que traz a Dora e Zé Fuinha ao grupo, é o intelectual do grupo – sabe ler, desenhar, é bom estrategista – razões pelas quais se tornou o braço direito de Pedro Bala. Toma conta do trapiche na ausência do chefe e se comporta como irmão mais velho, que pondera, orienta e chama à razão os demais componentes.

A partir destes três personagens, surge um que se aproxima de uma prostituta e se destaca pela esperteza, outro é brincalhão e falante, outro mistura solidão, ressentimento e destempero por causa da fragilidade nas pernas, e outros circundam esse micro universo marcado pelos muitos furtos nas ruas e uma ética de respeito no trapiche, tendo como pano de fundo a luta pela sobrevivência.

A gíria, o palavreado de quem vive num universo de limites frágeis, a malícia das ruas, a exposição a todo tipo de riscos, inclusive a doença, compõem o ambiente do grupo que dá nome ao conto. O Candomblé é o pano de fundo religioso, espaço que pede a proteção dos orixás e dá proteção e apoio ao grupo, dos quais alguns participam nos instrumentos. Há também o grupo rival, a elite comercial baiana e a polícia, já com fama de violenta, impiedosa e braço repressor do sistema que a mantém.

A obra dirigida por Cecília Amado consegue ser fiel ao enredo do avô, só rompendo suavemente com a historicidade ao destacar certa malandragem singela, quase romântica daquela época e lugar, sem deixar de mostrar a atualidade do tema e a mesma indiferença da sociedade, que consegue atravessar incólume tantas décadas, especialmente as que experimentaram tantas transformações, sem mudanças muito significativas no tratamento com as crianças de rua.

As Organizações Não-Governamentais (ONGs) – de quem teve apoio fundamental na composição do elenco, na logística do projeto e até na execução – são alcançadas pela transposição da obra literária para o cinema sob ameaças e acusações da mídia elitista, em nada interessada nos avanços da sociedade, nem nos personagens populares, nem nas histórias de superação, mantendo a mesma apatia gelada a temas antológicos, históricos, politicamente emergentes e atuais na sociedade brasileira.

Na atualidade, apesar do trabalho social desenvolvido nos últimos governos, sob uma saraivada de críticas da elite com menos tradição intelectual, mais endinheirada e acostumada a lucrar os recursos públicos e socializar prejuízos, que se sente legítima ao se apropriar das benesses e, de poucos anos para cá, ressentida por não poder mais tomar o Estado de assalto, não decidir pelo ‘melhor’ por julgar possuí-lo e ser despojada da aura de benemerência, marcas de seu mecenato que a sociedade decidiu substituir por direitos de cidadania.

O esforço para destruir o serviço prestado, socialmente dirigido e com resultados já palpáveis – mormente quando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) recentemente divulgado foi criticado do Governo Federal aos Institutos especializados – começou a tomar forma na derrubada de ministros, em atitude revanchista contra a presidente que tentaram impedir a eleição. Mas já perceberam o efeito da pressão midiática acabou. O trabalho das ONGs vai permanecer, bem como as políticas afirmativas, para que os capitães de areia da atualidade tenham as chances que os de Jorge Amado não puderam conhecer.

Assim, quando tiverem contato com as crianças de rua, pediu Cecília Amado no debate com professores após a exibição no cine Arteplex Botafogo, que decidam se darão dinheiro ou não, mas não deixem de indagar à criança: Qual o seu nome? Quantos anos você tem? , porque isso lhes restitui dignidade e cidadania.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

'Anna Karenina', de Tolstoi, ganha releitura no cinema nacional

'Anna K.', primeiro filme dirigido pelo artista José Roberto Aguilar, estreia nesta quinta-feira (30), em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador e Maceió.

Anna Karenina, uma das principais personagens do escritor russo Leon Tolstoi, ganhou contornos brasileiros pelas mãos do artista plástico José Roberto Aguilar. Seu primeiro longa-metragem, Anna K., estreia amanhã (30) em cinemas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador e Maceió.

A releitura brasileira do clássico russo traz no papel principal a atriz Leona Cavalli, que interpreta Joana, uma mulher que sofre de dupla personalidade e acredita ser Anna Karenina. Apaixonada pelo livro, ela muda repentinamente de atitude: de doce Joana, ela se transforma na sarcástica e sensual Anna K. Para tentar ajudá-la, um amigo de seu pai sugere que ela faça aulas de russo com Nikitin (Vadim Nikitin), um professor especialista em literatura russa que nasceu no país de Tolstoi (no filme e na vida real).

Aconselhado pelo psiquiatra Antonio Carlos Cesarino (interpretado pelo próprio), Nikitin tenta usar suas aulas para convencer Joana de que Anna Karenina existe apenas nas páginas do romance. O problema é que o professor acaba se apaixonando pela aluna e se emaranha na trama imaginária do duo Joana/Anna. Nikitin precisa evitar que sua musa delicada tenha o mesmo fim que Karenina, que se suicidou depois de ter seu caso de amor extraconjugal descoberto pela aristocracia russa.

A loucura do trio é permeada pela obra de Aguilar, um renomado pintor, escultor, performer e videoartista brasileiro. Já na abertura, uma instalação dá o tom do filme: Joana se envolve na projeção de Anna dentro de uma piscina em uma longa e sensual cena que evidencia o amor narcísico da personagem principal.

Performático, o primeiro filme de Aguilar reverencia a língua, a literatura e a cultura russas e apresenta ao público pérolas de Vladimir Maiakovsky que se emaranham na loucura de Joana e nas telas e projeções artísticas do diretor. Uma das joias declamadas pela personagem russa é a famosa frase que abre o livro de Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Para quem conhece a obra de Aguilar, não há como negar que o filme foi criado nas profundezas criativas e aparentemente desordenadas de sua alma. Poesia, amor, costumes, pudor, psicologia, teatro, quadros, instalações… Anna K. parece ser mais uma experimentação artística de Aguilar, conhecido como um dos pioneiros na utilização de videoarte no Brasil. Sua produção é voltada especialmente à vida urbana, à sexualidade e à pluralidade de códigos e signos. A incursão ao mundo do cinema é um projeto pessoal realizado de forma independente, com investimentos próprios, e de Juliana Vicente, fundadora da produtora Preta Portê Filmes.



Ficha Técnica

Anna K.
Direção e Roteiro: José Roberto Aguilar
Elenco: Leona Cavalli, Vadim Nikitin, Elena Nikitina, Boris Schnaiderman e Antonio Carlos Cesarino
Produtora: Juliana Vicente
Produtora executiva: Juliana Vicente
Diretor de fotografia: Aloysio Raulino
Direção de arte: Márcia Beatriz Granero
Montagem: Yuri Amaral
Desenho de som: Guile Martins
Trilha sonora original: Péricles Cavalcanti e Maurício Fleury
Produção: Preta Portê Filmes
Co-produção: Canal Brasil
Duração: 80min
Ano: 2014
Gênero: Ficção
País: Brasil
Classificação: 14 anos

Transcrito de http://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2015/04/anna-karenina-de-tolstoi-ganha-releitura-no-cinema-nacional-1952.html

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A Origem dos Guardiões

Osiel Costa Oliveira

Não acredita em Papai Noel? Acha que a Fada do Dente não existe? E o Coelho da Páscoa? Assista ao filme “A Origem dos Guardiões” e seus conceitos sobre esses personagens terão novos significados.

O filme de animação nos leva a refletir sobre a importância da manutenção dos sonhos e a esperança, principalmente nas crianças. Pois a ausência desses sentimentos pode destruir toda construção de uma vida.

Há muito tempo atrás, Breu, o Bicho Papão que se esconde debaixo das nossas camas e a razão de termos medo do escuro, têm suportado gerações de pais que dizem aos filhos para não acreditarem nele, enquanto os Guardiões: Papai Noel, Fada do Dente, Coelho da Páscoa e Sandy, recebem toda a aclamação. Breu decide mudar esta situação. Maquinou um plano para convencer as pessoas a acreditarem nele em vez de acreditarem nos Guardiões. Assim, planeja exterminar sistematicamente os Guardiões, um a um, e o que eles representam, até não restar nada mais a não ser medo. A lua decide convoca os Guardiões a o enfrentarem com o intuito de manter o bem entre as crianças. O seleto grupo recebe um membro a mais, Jack Frost. No início, o novo integrante não é bem aceito, pois eles não reconhecem nenhuma influência positiva que Frost exerce sobre as crianças. Pois, de acordo com Papai Noel, todo Guardião possui um cerne – uma dádiva. Por exemplo, Papai Noel dá vida aos objetos. A magia do natal é refletida nas luzes, presentes, músicas, etc. Como Jack Frost ainda não tinha ciência do céu cerne, passava despercebido pelas crianças. 

Com o início da batalha, os Guardiões foram percebendo as habilidades de Frost. E em uma situação, Jack se lembra de ter salvado a vida de sua irmã quando eles estavam patinando no gelo. Com um cajado, ele consegue puxar sua irmã de uma rachadura, mas ele cai dentro do lago frio e morre. A lua lhe presenteia com poderes. Então, ele se dar conta que é um Guardião e que seu cerne é fazer as crianças felizes através de seus dotes: tem incríveis poderes climatérios, que controla com a ajuda do seu bastão mágico. Pode evocar o vento, a tempestade, o frio e a neve.

A lição mais significativa, dentro muitas no filme, é que precisamos passar mais tempo com nossas crianças. Presentes trazem alegria momentânea. Porém, a presença revigora e faz mantém vivo a esperança. O “tempo” é o bem mais precioso que temos.

Certa vez, antes de Alexander (o grande) morrer, três pedido foram feito aos seus ministros: 1. Que seu caixão fosse carregado pelos melhores médicos da época, 2. Que os tesouros que tinha, fossem espalhados pelo caminho até seu túmulo e 3. Que suas mãos ficassem fora do caixão à vista de todos. Os ministros surpresos, perguntaram quais os motivos. Ele, então, respondeu: Quero que os melhores médicos carreguem meu caixão para mostrar que eles não têm poder sobre a morte; quero que o chão seja coberto por meus tesouros, para que todas as pessoas possam ver que os bens materiais aqui conquistados, aqui ficam. Eu quero que as minhas mãos fiquem fora do caixão, de modo que as pessoas possam ver que viemos com as mãos vazias, e de mãos vazias voltamos.

Assim, o melhor presente que você pode dar a alguém é o seu tempo! Vamos passar mais tempos com nossas famílias.

Para assistir o trailer, clique aqui abaixo.
  

*Mestrando do PPGL

sábado, 7 de março de 2015

Amizade, ganhos, perdas e... amor duradouro



Amizade, ganhos, perdas e... amor duradouro

Antonio Carlos Ribeiro

A capacidade de distinguir sentimentos profundos e inesquecíveis como o amor e a amizade – mesmo que esta nunca deixe sua condição – sofre o teste definitivo quando sacudida pela perda. Este é o principal argumento do enredo do filme Um Dia (One Day) (2011, 107 min., drama), roteirizado por David Nicholls e dirigido pela Lone Scherfig, tempero de gênero que talvez explique a beleza da narrativa.

A história é longa, cobrindo um período de 20 anos após o curso universitário, em que um casal vive encontros e desencontros afetivos, profissionais e familiares, cujo fio vermelho é a data de 15 de julho de 1988, de um encontro, daí o título Um dia, em que a experiência de cada um deles conquistou o status de eternidade existencial, da qual se lembrariam por décadas.

Momento intensamente vivido, mais bem gravado do que imagem em película ao abrir do diafragma, se transforma em memória quase em sentido místico, que subsiste às trajetórias, aos amores, às oscilações e às crises identitárias, tendo como pano de fundo a bela Edimburgo, a cidade escocesa das tradições inventadas, como ensinou Emanuel Fraisse. 

Veja o trailer: 

O outro elemento são as personalidades. Emma Morley (Anne Hathaway) é profunda, intensa, dedicada à educação, tem sentimento e paixão, faz o que ama e ama o que faz, mesmo ao preço da baixa condição sócio-econômica. Já Dexter Mayhew (Jim Sturgess) é um playboy, mulherengo – que consome sem saborear – transformando o íntimo em descartável, escravo da beleza estética, mais volátil que fumaça de café, marcado por descompromisso atávico. Numa paixão natimorta, sempre abortada antes do parto.

A amizade dura a vida toda, mas em meio às contradições existenciais. Ela é uma menina, de família operária, cheia de princípios e ambição sempre embarreirados pelo cotidiano financeiramente medido, mas que mantém o sonho de tornar o mundo um lugar melhor. Ele, apenas um conquistador, belo e rico, que não sonha e não acorda, preso no labirinto inebriante das facilidades, dos prazeres, do nenhum vínculo e sob a ilusão de que o mundo é um playground.

Mas apenas com um amor duradouro, que não se torna experiência, vivem quase toda a vida ao lado de quem não amam, por quem não são amados e com quem não conseguem se corresponder (cor + res + pondere). E sem por coisas no coração do outro, passam-se duas décadas, em que o 15 de julho traz sempre o leitmotiv (motivo condutor), sem nunca chegar a um lugar de encontro.

Dexter vive um dublê de ser humano, em fantasias e brigas, esperanças e desperdício de oportunidades, riso frugal e lágrimas sentidas. De forma inversa, Emma, sempre intensa, vívida, fábrica de sonhos, mas em empregos medíocres que sequer são sombras remotas de sua emoção, alegria e sentimento. O espaço de superação da prisão emocional dele, mesmo diante da morte da mãe, se assemelha ao dela, para quem a ascensão social está sempre a dever, condenados à exclusão inversamente definida do encontro consigo mesmo e com o outro.

Enfim, o momento chegou, mas foi apenas um suspiro. E definitivo.

O filme deixa sensações de resignação, como o mito de Sísifo que sempre empurra a pedra de volta ao alto do monte, do qual rolará de volta, ou como o destino da contraposição de formas humanas e animais aos amantes de O Feitiço de Áquila (Ladyhawke, dir. Richard Donner), ou ainda como o conto que termina irreversivelmente com as últimas linhas, como Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez.

Filme Um dia



E para lidar com os sonhos, sem chegar ao desespero, aponho a esta resenha as palavras maduras do poeta gaúcho, que eternizou-se por escrever tão simples e lindamente, mas nunca chegou à Academia Brasileira de Letras:

Um dia
...Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra, é bobagem.
Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela...
Um dia nós percebemos que as mulheres têm instinto "caçador" e fazem qualquer homem sofrer ...
Um dia descobrimos que se apaixonar é inevitável...
Um dia percebemos que as melhores provas de amor são as mais simples...
Um dia percebemos que o comum não nos atrai...
Um dia saberemos que ser classificado como "bonzinho" não é bom...
Um dia perceberemos que a pessoa que nunca te liga é a que mais pensa em você...
Um dia saberemos a importância da frase: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas..."
Um dia percebemos que somos muito importantes para alguém, mas não damos valor a isso...
Um dia percebemos como aquele amigo faz falta, mas ai já é tarde demais...
Enfim...
Um dia descobrimos que apesar de viver quase um século esse tempo todo não é suficiente para realizarmos
todos os nossos sonhos, para beijarmos todas as bocas que nos atraem, para dizer o que tem de ser dito...
O jeito é: ou nos conformamos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutamos para realizar todas
as nossas loucuras...

Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação (Mário Quintana).

O Jogo da Imitação


O Jogo da Imitação (The Imitation Game). Dir. Morten Tyldum, com

Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode
Drama, Thriller. Inglaterra/EUA, 2014, 114 min.

O criptoanalista, matemático e filósofo britânico Alan Mathison Turing (1912-1954) é hoje considerado um dos precursores da computação moderna. Durante a Segunda Grande Guerra, ele e a sua equipa deram uma ajuda fundamental aos Aliados na descodificação do código Enigma, que os nazistas utilizavam para comunicar secretamente os planos de ataque. Já durante o pós-guerra, Turing projetou um dos primeiros computadores programáveis no laboratório nacional de física do Reino Unido. Entre muitas outras coisas, os seus estudos serviram ainda para abrir portas a uma das questões mais pertinentes da tecnologia da atualidade: a possibilidade teórica da inteligência artificial.

Apesar de todo o reconhecimento, a sua carreira terminou abruptamente em 1952, depois de ter sido processado por atentado ao pudor, acusação que culminou numa condenação por homossexualidade, à época ilegal no Reino Unido. A 8 de Junho de 1954, dois anos depois de iniciar um tratamento com injeções de hormônios femininos - que provocam castração química - Turing preferiu à prisão, tendo sido encontrado morto na sua própria casa. A morte foi classificada como suicídio, embora muitos, começando pela sua mãe, refutem a conclusão.

Em Setembro de 2009, depois de uma campanha liderada por John Graham-Cumming, o primeiro-ministro Gordon Brown fez um pedido oficial de desculpas público em nome do Governo britânico, devido à maneira pela qual Turing foi tratado. Finalmente, a 24 de Dezembro de 2013, o matemático recebeu o perdão da rainha Elisabeth II.

Realizado pelo norueguês Morten Tyldum ("Headhunters - Caçadores de Cabeças"), um filme dramático sobre a vida de Alan Turing, o lendário génio da matemática que decifrou códigos nazistas e que acabou perseguido pela sua orientação sexual. O elenco conta com os atores Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode e Mark Strong, entre outros.

Escolhido pelo público como o melhor filme em competição no prestigiado Festival de Cinema de Toronto (Canadá), O Jogo da Imitação recebeu ainda cinco nomeações para os Globos de Ouro, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator (Cumberbatch), Melhor Atriz Coadjuvante (Knightley), Melhor Argumento (Graham Moore) e Melhor Banda Sonora Original (Alexandre Desplat).


Trancristo de http://cinecartaz.publico.pt/Filme/342649_o-jogo-da-imitacao

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Apenas Uma Vez

Antonio Carlos Ribeiro

O filme Apenas Uma Vez (Once) (Dir. John Carney, com Glen Hansard, Markéta Irglová, Marcella Plunkett. Drama, Musical, 2006. Irlanda) mostra uma história tocante – sobre a experiência de gravar um disco e viver um romance – num filme gravado com duas Handcams, a paixão pela música e entre os atores Glen e Markéta – e ainda ganhar um Oscar.

O set é todo improvisado, as imagens mostram irlandeses comuns e uma imigrante tcheca de 17 anos que vende flores e faz faxina para sustentar a filha, mas toca piano. Ele é um músico que precisa acreditar no talento, já que tem um violão danificado com o qual canta na rua, e depois volta para a casa do pai, a quem ajuda a consertar eletrodomésticos.

Dessas situações cotidianas que fazem duas pessoas se encontrarem, descobrirem a paixão pela música, partilhar um cotidiano de luta pela vida e viverem uma experiência inesquecível. Além disso, vivem uma história de amor a partir das 10 canções de John Carney, compostas e gravadas, a partir das quais é escrito o roteiro do filme.

Esse conjunto tem como pano de fundo a cidade de Dublin, na Irlanda, e o restante só pode ser creditado ao fundo de realidade, à qualidade musical e à conjunção de dois elementos: é profundamente simples e autêntico. É uma história de amor embalada pelas músicas românticas.

Apenas uma Vez se tornou projeto em 2005, durante um concerto do The Frames em Dublin, quando John Carney propôs a Glen Hansard compor algumas canções e montar o roteiro a partir delas. Após vários encontros entre os dois surgiram 10 músicas inéditas e o argumento do filme. As filmagens duraram apenas 17 dias, fazendo o filme parecer um documentário, inclusive por ter custado apenas 150 mil dólares.

Além de toda emoção, paixão e ousadia de quem sabe o talento que tem, mesmo enfrentando dificuldades, o filme passou a ganhar prêmios como o Oscar de Melhor Canção Original, por Falling Slowly, o 'Independent Spirit Awards' de Melhor Filme Estrangeiro e o Prêmio do Público do Sundance Film Festival, além de receber indicações nas categorias de Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original ao prêmio Grammy.

Segue o trailer do filme:

Para ver a apresentação no Studio I clique aqui:

Para ver o filme completo, clique no botão abaixo:



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Elefante Branco

Antonio Carlos Ribeiro


O filme Elefante Branco (Elefante Blanco, Pablo Trapero, Argentina/ Espanha, 2012) traz um enredo atual, chocante e com cenas desconcertantes, embora plausíveis no ambiente urbano, carcomido pela fome, os ditames da religião, o poder das elites — que julgam poder comprar tudo — e a afetividade explosiva. 

O enredo da película começa com o padre Julián (Ricardo Darín) sendo submetido a uma tomografia. Depois, o público é levado à Amazônia sem lei, especialmente às populações ribeirinhas, que vivem tão desprotegidas quanto os pobres na Idade Média — entregues a toda sorte de riscos — e na qual o padre Nicolás (Jérémie Renier) escapa de um massacre, ao ver uma família ser exterminada por não apontar para que lado ele fugiu. Neste lugar, Julián vem buscar o egresso do seminário para outra tarefa, igualmente perigosa. 


Julián e Nicolás voltam a trabalhar juntos, agora na Villa Virgen, uma favela da periferia de Buenos Aires. O perfil é o comum da América Latina: pobreza econômica transformada em miséria moral, refino-preparo-tráfico de drogas, sacerdotes que se dedicam ao atendimento dos esquecidos de todos, bispo distante, insensível ao sofrimento humano e agarrado às futilidades eclesiásticas e com autoridade formal sobre quem vive a experiência cotidiana de estar entre Deus e o diabo. E a polícia, o braço armado do Estado para manter a ordem. 


Em Elefante Blanco, o lado mais cruel da tragédia é também destes bons moços, de uniformes garbosos à tarefa cotidiana de serviçais do Estado, mediada pelos gritos dos comandantes. Com código rígido, formação militar e sem margem para lidar sequer com os conflitos familiares e os pessoais, sem falar dos esquemas de corrupção da corporação e da relação de dependência do poder estatal e suas políticas para a sociedade. 


O trabalho com altos níveis de estresse é o que sobra para os dois clérigos e a assistente social que põem suas vidas em risco, para continuar do lado dos miseráveis, agarrados a uma mística forte que lhes permite conviver com os poderes do Estado, da Igreja, da Polícia e do tráfico — que nas ‘villas’ tem uma lógica clara e letal — apenas para proteger e minorar o sofrimento dos pobres, em meio às contradições. 


A atuação de Ricardo Darín encarna este perfil de sacerdote, da mística nascida da ortopráxis à pureza ética que resguarda o rosto humano da religião nos espaços limítrofes. Ele está impecável, das tarefas cotidianas ao modo como lida com a saúde, da capacidade de lidar com o bispo, o governo e os narcotraficantes, o mesmo lugar existencial de onde vem sua autoridade para posicionar-se frente a eles. A cena em que ‘absolve’ o irmão de sacerdócio e a que revela a vontade de mandar todos ‘a la mierda’, são paradigmáticas do perfil da missão. 


A relação afetiva entre o sacerdote e a assistente social é outro marco do momento. A paixão romântica irrompe em meio ao caos político, econômico e religioso. É um grito de desespero e a luta para respirar, em meio à asfixia existencial. Assim como em O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, é avassaladora, transgressiva, corajosa, como só acontecem em tempos de calamidades e crise civilizacional agudas. O número de sacerdotes e militantes de todas as frentes de luta que a ela chegaram é incontável, entre os que voltaram ao redil, os que fugiram para salvar vidas e os que se ‘perderam’ ao perder seu grande amor. 


Villa Virgen é uma ‘comunidade’, de cerca de 30 mil pessoas, próxima ao projeto do maior hospital da América Latina, lançado por um governo socialista e abandonado desde 1937. O fato em si dá o retrato das elites latino-americanas: endinheiradas pelo controle do Estado, com pouca formação intelectual, muito autoritarismo e o recurso fácil à violência, regados à vaidade tola. O espaço em que os padres trabalham para transformar o prédio abandonado em moradias dignas é o mesmo que lembra o ‘deserto do real’, de Zizek. 


As partes complementares do enredo são os demais padres e voluntários que atuam com e a partir dessa tríade, a célula mais comum dos trabalhos pastorais desenvolvidos nas grandes cidades da América Sul, surgida nos anos 1970 a partir da mística dos pobres como os amados preferenciais de Deus, a repressão do consórcio elites-ditaduras, e da Igreja, pendente para o lado conservador nos centros de maior poder político e econômico, a partir da lógica atemporal que assegura a sobrevivência histórica. Ou de confronto, onde o bispo era pastor. 


A capital argentina agrega ao enredo comum das grandes cidades da América do Sul, a pecha dos assassinatos de massa, legitimados por leis humanas e divinas, ‘de exceção’, sem disposição de poupar sequer os ‘seus’, já que as vantagens do atrelamento ao Estado superavam em muito o pecuniário e o institucional. Os feriados religiosos e as bênçãos episcopais à repressão mais brutal, já enfrentadas por todos os países da região, exceto o Brasil, testemunham o dilema teológico de defender o rebanho ou assegurar a presença da instituição religiosa. 

A película dirigida por Trapero é como os vitrais das Catedrais, projetados para narrar a história da salvação, ocultando o conflito das relações nem sempre claras, entre as paixões da fé popular, da instituição eclesial e do Estado dominado pelas elites. Nestas, destacam-se homens e mulheres que deram à sua vida o sentido das causas que abraçaram, pelas quais viveram e morreram. Ao serem guindados de líderes a mártires, enriqueceram a mística combativa deste ‘continente sofrido e maravilhoso’, como escreveu Gutiérrez.

Transcrito de Novos Diálogos





quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Relatos Selvagens

O filme Relatos Selvagens ((Relatos Salvajes), Direção: Damián Szifron, com Rita Cortese, Ricardo Darín, Nancy Dupláa, Dario Grandinetti, Oscar Martinez, Osmar Núñez, Maria Onetto, Erica Rivas. 
Gênero: Comédia Dramática. Argentina, Espanha. 120 min. 14 anos) narra situações cotidianas que fogem do controle, de modo que sempre vividas por gente culta, bem formada e de classe média, fogem do controle, se transformam em situações tão patéticas que resvalam para o hilário.



A seis situações desta obra cinematográfica rodada na Argentina misturam o trágico e o hilário, frequentemente diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens deste filme caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amorosa, o retorno do passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno detalhe cotidiano são capazes de empurrar estes personagens para um lugar fora de controle.

O filme é dividido em seis episódios. Todos muito interessantes e atraentes, dos quais três são excepcionais. O longa começa de forma brilhante e empolgante, com um curto episódio passado em um avião. Sobre este não dá para revelar muita coisa sem contar demais, então cabe apenas dizer que é uma história rápida, inteligente, envolvente e com um final extraordinário. Na sequência, nos deparamos com uma jovem funcionária de uma lanchonete de beira de estrada. Ela recebe a visita de um homem que acabou com sua família, mas que não lembra da garota. Temos ainda um episódio sobre dois sujeitos que se encontram no meio da estrada e se desentendem por causa de uma ultrapassagem e outro sobre um pai rico que tenta livrar o filho de ser preso pelo atropelamento de uma mulher grávida.

Darín estrela o conto que possui a pegada mais social, como é costume em sua filmografia. Ele interpreta um cara comum que tem o carro rebocado no dia do aniversário da filha. Ele é obrigado a ir no departamento de trânsito para apanha o veículo e tem que pagar uma taxa. Isso sem falar na multa que chega depois. O episódio lembra bastante Um Dia de Fúria, com Michael Douglas, com o personagem de Darín se revoltando com a burocracia do sistema e sendo levado a uma explosão de violência. 

O principal mérito de Relatos desta obra está é não apenas possuir momentos de grandes irregularidades. É difícil um filme com vários episódios não pecar com um ou outro momento mais fraco, mas é o que acontece aqui. Destaca-se ainda a montagem, que foi esperta ao colocar um grande episódio para abrir (o do avião), um ótimo no meio (do Darín) e o melhor de todos no final.

O último conto gira em torno de uma festa de casamento, que é muito bem filmada e que conta com uma atuação espetacular de Erica Rivas, que nos remete às mulheres de Pedro Almodóvar. Também é melhor não falar muita coisa deste episódio, mas é brilhante como reúne cenas de drama, romance, tensão, suspense e até gore. Depois de tanta tragédia - embora sempre divertida - o longa termina de forma épica e até mesmo otimista.

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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Capitão Phillips

Antonio Carlos Ribeiro

O filme Capitão Phillips (Captain Phillips, dir. Paul Greengrass, com Tom Hanks, Catherine Keener e Barkhad Abdi, Drama / Suspense, EUA) é um discurso pleno de reverberações, ampliadas à potência máxima e com a pretensão de legitimar a ação armada estadunidense na costa africana. A leitura do conjunto do filme começa pela desproporção entre o que é megalomaníaco, espetacularmente armado e ostentador de poder, de um lado, e uma gente faminta, magra, que luta pela sobrevivência e tem sua pesca afetada por companhias pesqueiras, de outro.



Se proporcionalidade deve ser regra na guerra – um conceito de um século e meio atrás para os brasileiros – não o é para a superpotência que sequer noção da dimensão tem. Já os somalis, utilizam os recursos que tem para lutar contra a pesca, ilegal e desenfreada, e o despejo de lixo tóxico em seu território, sempre do modo ameno e cordial, comum às superpotências.

A outra leitura é a da geopolítica mundial, do declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica, desde os anos 70, agravado pela sequência de desastres do governo George W. Bush. O que o filme de Greengrass revela é a mudança do perfil de intervenção, abandonando a diplomacia e as relações de confiança e abusando das relações de força, que acelera esse processo.

O filme se estrutura nos opostos: de um lado Phillips e de outro Muse; as normas de segurança do navio e os piratas que tentam saciar a fome da Somália; a força americana com navios cargueiro, contratorpedeiro, porta-aviões e helicóptero, e a força somali tem um homem para cada arma dessas. Depois vem a noção de que todos invejam os americanos, com Muse e seu desejo de se inserir no capitalismo.

É uma contra-leitura da realidade política internacional, já que os EUA perdem influência a olhos vistos - as guerras de Bush para saquear petróleo, prender e matar Saddam Hussein, Obama e a palavra descumprida sobre Guantânamo, o assassinato de Bin Laden; Manning, Assange e Snowden impondo a perda de credibilidade – agravados pela atuação de Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Angela Merkel.

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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Resenha de filme: 'Colegas'

Antonio Carlos Ribeiro

Colegas (Dir. Marcelo Galvão, com Ariel Goldenberg, Rita Pokk, Breno Viola e Lima Duarte. Comédia , Brasil, 2012) é um filme especial. Tocante, bem-humorado, com belas paisagens e cenas inusitadas. Mas tem um pré-requisito fundamental: exige dose extra de sensibilidade, daquele tipo que nos torna humanos, básicos, genéricos, sem afetações, que usa a linguagem esconder, mentir ou humilhar.



Trata-se de uma comédia que conta a história de três jovens com síndrome de Down que vivem num Instituto, decidem dar novo rumo a suas vidas. Fogem num Karmann-Ghia, um carro esportivo italiano muito conhecido nos anos 60 e 70, tomado emprestado do jardineiro. Saem do interior de São Paulo e chegam a Buenos Aires.

O roteiro segue Thelma & Louise, de Ridley Scott, tendo paisagens brasileiras como pano de fundo. Cada um tem um sonho e Colegas é a luta para realizá-los. Stalone (Ariel) quer ver o mar. Marcio (Breno Viola) insiste na ideia de voar. E Aninha (Rita Pokk) deseja encontrar um marido que seja cantor. O enredo, movido a ousadia e lances de risco e sorte, é uma aventura baseada nas coisas simples da vida.

De cidade em cidade, cruzando com personagens cotidianos, enquanto atravessa os estados do sul e chega à Argentina. Antes do filme chegar às telonas, conseguiu uma vitória significativa na internet. Amigos de Ariel Goldenberg produziram o vídeo ‘#vemseanpenn’, documentando a vontade do ator de trazer o astro Sean Penn para assistir a estreia. Os atores Juliana Paes, Lima Duarte, Caio Castro e Gabriela Duarte apoiaram a campanha, junto com outros artistas brasileiros, recebendo 1 milhão e meio de acessos no YouTube.

O filme ganhou cinco kikitos no Festival de Gramado de 2012, inclusive o de melhor filme, e recebeu premiação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre outros. Ademais foi exibido e aplaudido nos festivais de Trieste (Itália), Moscou (Rússia) e Utah (EUA).

Além dos protagonistas, o elenco contou com Lima Duarte, Leonardo Miggiorin, Marco Luque, Juliana Didone, Christiano Cochrane, Daniele Valente, Otavio Mesquita, Germano Pereira, Nill Marcodes, Thogun e mais de 60 jovens com síndrome de Down. O desprezo do colunista da Folha de S. Paulo, retomando diversos ‘momentos’ da cinematografia mundial, que foram responsáveis por muita risada, revelou não ter percebido o esforço de superação, o desempenho dos atores, a linguagem hilária, sem perceber o ‘mote’ do filme e perdendo a capacidade de participar da alegria

E, sem isso, caímos na insensibilidade que ofende, no desacato sofisticado e suave (soft), no ataque do qual não podemos ser acusados, cujas consequências se estendem na memória dos sujeitos históricos aos quais não atribuímos valor. Como um editor da TV Globo que anunciou a morte do presidente Chávez com um sorriso irônico, enquanto as ruas de Caracas se transformavam num imenso mar vermelho. Incólume à última década.

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terça-feira, 23 de setembro de 2014

Resenha de filme: Narradores de Javé

Narradores de Passado
Resenha do filme ‘Narradores de Javé’

Valdir Coimbra*

Se em terra de cego, quem tem um olho é rei, imaginem um povoado em que a população não sabe escrever, lá o rei é quem sabe escrever. Pode-se dizer que essa é a ideia central do filme Narradores de Javé (dirigido por Eliane Caffé, com José Dumont, Gero Camilo, Luci Pereira, Nelson Xavier. Drama. Brasil, 2003. 100 min.).



Os moradores do povoado de Javé ficam sabendo que o mesmo será submerso pelas águas de uma represa. No entanto, eles não foram notificados e também não serão indenizados, pois não possuem registros nem documentos das terras. Inconformados e, tentando encontrar uma maneira de reverter a situação, descobrem que poderiam salvar o povoado se o local tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado em documento científico. 

Decididos a salvar o vale de Javé, resolvem escrever a história do povoado, mas poucos sabem ler e apenas um morador, o carteiro Antônio Biá,  sabe escrever. O problema é que no povoado ninguém gosta de Biá porque ele, para não perder seu emprego de carteiro num lugar onde ninguém escreve, decidiu inventar histórias sobre os moradores e escrever cartas contando essas histórias, o que deixou a população revoltada.

Mesmo diante da recusa de alguns, Biá foi eleito como o escrivão da história de Javé. O que gera uma grande confusão, pois todos o procuram para darem suas versões sobre a origem do povoado, com a intenção de terem seus nomes citados no livro. 

Assim, enquanto ouve as histórias do povo, o carteiro vai conhecendo as memórias, os sonhos e desejos daquela gente simples. Mas Biá não consegue escrever a história, pois cada narrador dava uma versão diferente sobre a origem do lugar.   Como não conseguiu escrever a história, Biá entrega um livro em branco para a população, que revoltada cobra o que ele havia prometido.

Essa atitude do carteiro mostra o quanto é difícil escrever uma história que tem muitas versões. Sem a história documentada, os moradores veem o povoado ser alagado, mesmo possuindo uma história muito rica.

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Ensino de Língua e Literatura (PPGL-UFT-Campus de Araguaína)

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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Resenha de filme: Fahrenheit 451

Lianja Soares Aquino*

O filme Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451. Direção de François Truffaut, com Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack. Ficção científica, França/Reino Unido, 1966) transcorre numa cidade em que as casas são à prova de fogo, os bombeiros se destinam a que função? Queimar livros. Assim, inicia-se o filme Fahrenheit 451, dirigido pelo francês François Truffaut. O filme é uma adaptação do romance de Ray Bradbury, estadunidense e escritor de contos de ficção-científica. A trilha sonora usada no filme é de Bernard Hermann, compositor que também teve participação em filmes como, Psicose (Psycho, 1960) de Alfred Hitchcock; Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino e Taxi Driver (1976), de Martin Scorcese.  



Direção e trilha sonora são brilhantes, de acordo com os recursos da época, mas o mais significativo é a reflexão que o filme provoca sobre a manipulação dos programas de TV que incentivam o consumismo, a superficialidade e impõe regras de conduta social para controlar o comportamento da população. A proibição de livros como: novelas, biografias, aventuras, romances e filosóficos é obrigatória neste contexto, com a argumentação de que “A única maneira de ser feliz é garantir que todos sejam iguais, por isso a necessidade de se queimar os livros”.  

A genialidade do filme está em sua atemporalidade. Produzido e divulgado nos anos sessenta (1966), momento de grandes transformações culturais, apoiadas em movimentos como o da geração beat, iniciada pelo escritor Jack Kerauac contra o moralismo rígido do começo dos anos 50, garante ainda, nos tempos atuais, um debate relevante sobre a obra e as relações humanas. A TV, também nesse período, tornou-se um meio de comunicação de massa e os movimentos feministas começaram a eclodir. 

Com a avançada tecnologia dos dias atuais, algumas pessoas arriscam dizer que estamos chegando num período em que os livros impressos sumirão das prateleiras. Outra discussão ainda é o controle das massas através de mídias manipuladoras de opinião. Entre os anos de 1950 e 2014 muitas coisas mudaram, mas os temas propostos pelo filme parecem não ter vencido as barreiras do tempo.  

Nesse ínterim, Montag, protagonista do filme, exerce a função de bombeiro e, junto a sua equipe, queima livros. Montag é objetivo em suas palavras, não questiona as ordens do chefe e é casado com Linda, uma mulher que passa os dias na frente da TV, tomando pílulas e seguindo o sistema vigente. Tudo é muito controlado: horários, trabalho e família. Mas Montag conhece Clarisse. 

Numa conversa informal Montag é questionado por Clarice se nunca havia desejado ler algum livro que queimava. Esta pergunta seria o inicio de uma vida considerada transgressora para Montag, mas despertou sua curiosidade. Ele rouba um livro intitulado “A história pessoal de David Copperfiel, por Charles Dickens” e não conseguiu parar de ler e de roubar outros livros. As histórias que Montag lê e sua relação com os livros levam a questionamentos sobre sua condição de bombeiro e marido. A partir dessas reflexões, as suas atitudes começam a mudar. 

O desfecho do filme não pode ser revelado aqui, pois o lirismo militante em questão é de encher os olhos e alma. O fato é, como disse Jorge Luis Borges, em seu texto A biblioteca de babel: “A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.” E é com esta esperança de poder ser livre, enquanto leitor e construtor de cultura, que Montag escolhe seguir. 

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*Graduada em Letras e mestranda em ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins, UFT, Campus: Araguaína

Destaque: filme Getúlio

Antonio Carlos Ribeiro

O filme Getúlio (Getúlio. Dir. João Jardim, com Tony Ramos, Drica Moraes, Alexandre Borges. Drama. Brasil. 2014) conta a história do governante que mais tempo exerceu o poder presidencial na história do país, instaurando o trabalhismo e, como estancieiro, virando as costas à reforma agrária.



A obra, que culmina com sua morte em 24 de agosto de 1954, é o ápice do relato dos seus últimos 19 dias, fazendo prevalecer a leitura dramática em detrimento da leitura política do golpismo que, nas palavras de Tancredo Neves, à época Ministro da Justiça, se revelariam nos mesmos líderes do golpe de 1964 - instalando a mais longa ditadura brasileira e a primeira das diversas que sangraram o continente por duas décadas. A trama dispensa um conjunto de elementos fundamentais para entender o golpismo, não dando elementos para uma compreensão histórica e politicamente mais objetiva.

Sua personalidade populista foi cristalizada na imagem do povo carregando seu caixão, do Palácio do Catete até o Aeroporto Santos Dumont - histórica dentro da obra ficcional - que rivalizava com o político-jornalista, Carlos Lacerda - que exerceu a profissão e o mandato com seus piores vícios - perenizando na imprensa o mesmo comportamento udenista dos nossos dias, mas só conseguindo derrubar ainda o Presidente João Goulart, até a atual impotência desesperada.

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Assista hoje o filme Getúlio na TV Globo, às 22h45

*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) - Campus Araguaína

Resenha de Filme: Viva a Liberdade

Antonio Carlos Ribeiro*

O filme Viva a Liberdade (Viva La Libertà). Direção de Roberto Andò, com Toni Servillo, Valerio Mastandrea, Valeria Bruni Tedeschi. Comédia, drama. Itália, França, 2013. Conta uma história hilária e requintada, cujos detalhes de crueldade só aparecem quando comparados à realidade brasileira. Um político que exerce a função de primeiro ministro e ao mesmo tempo é o secretário-geral do partido, está envolvido em escândalos que impactam a sociedade economicamente, e por isso sofre hostilizações na rua, na TV e até na assembleia do partido político. Como na Europa a imprensa sofre menos influência das elites e mais pressões da população bem informada, não consegue pressionar o judiciário (Ação Penal 470) e nem invisibilizar escândalos (A Privataria Tucana), com os leitores do livro impresso e virtual. 



A história política da Itália – que tem escândalos conhecidos como os do primeiro ministro Silvio Berlusconi (maior rede de TV, máfia, pressões sobre diversos setores, prostituição e prostituição infantil) – resultam sempre em desvio de recursos de áreas fundamentais da cidadania. Essa temática é tratada de forma hilária nesta comédia de Roberto Andò, usando a capacidade artística do ator Toni Servillo, muito premiado pelo filme ‘A Grande Beleza’.

Ele assume a personalidade de irmãos gêmeos, que não se veem há 25 anos e são muito distintos, da formação ao caráter, passando pela profissão. Enrico Oliveri, o primeiro, representa o partido italiano nas eleições presidenciais, mas enfrenta uma crise de credibilidade - acentuada por certa esquizofrenia ideológica que ameaçam levar o partido ao caos – que lida com alto grau de rejeição popular, sem condições de apresentar qualquer alternativa para resolver crise grave. Diante da hostilidade, sem alternativas e sofrendo de depressão, decide desaparecer. 

Para resolver a crise de liderança, o assessor Andrea Bottini (Valerio Mastandrea) decide pactuar com a mulher do senador, Anna Oliveri (Michela Cescon), e chamam o irmão gêmeo do político, Giovanni Ernani, filósofo e professor, para substituir o irmão trânsfuga e deprimido, enquanto buscam uma solução. Mesmo tendo sido internado em manicômio, este assume a função e acaba mudando a vida do partido e dando esperança para a população.

A cultura filosófica e certos parâmetros éticos, além da autenticidade para a tarefa o fazem reconquistar a confiança popular. “Os partidos são medíocres porque as pessoas são medíocres; o partido é corrupto porque as pessoas também o são”. Fala a verdade, sai para dançar, responde sem medo, tem um discurso direto, a ponto de enfrentar as críticas e aflorar reflexões, mostrando-se um político democrático, voz do povo e símbolo da mudança. Enquanto o primeiro viaja pela França, hospeda-se na casa de uma amiga, casada com um diretor de cinema e com uma filha, muda ares e costumes, até sair da depressão, superar a apatia. 

A trama parece sugerir que na arte estão respostas à repetitiva vida política e aos intermináveis ciclos de corrupção, na vida dos dois irmãos – outra metáfora – como a insistir que o político corrupto, fustigado pelo povo, pressionado pelo partido que responderá a processos e o gestor público afeiçoado ao bem e amante da sabedoria (philo + sophia) podem habitar a mesma pessoa, cabendo a esta decidir como vai agir e que biografia terá. Quando Enrico busca um set de filmagem, pode buscar no discurso imagético um novo roteiro que o dignifique.

E quando Giovanni, agindo como Enrico, celebra um acordo com a embaixadora argentina dançando um tango, quer uma ética que parta da justeza dos corpos e dos movimentos precisos e chegue ao cotidiano da cidade, sem perder de vista que os pobres também têm direito ao belo, à saúde, à inteligência, a se verem como sujeitos de valor e a dar seu contributo à sociedade. Andò deixa um recado claro: a política pode ser inteligente – já que a corrupção é uma grande estupidez e o desprezo do povo que lhe confiou aquela tarefa é o máximo da insensatez. 

O talento da direção de Andò e a arte da representação de Servillo são uma denúncia do brilhantismo e da demência humana nos seus extremos. Um porque sabe dirigir e dar plena liberdade de criação do personagem ao ator. E outro porque sabe explorar sua arte, provoca a empatia do público que se vê no corrupto e no filósofo, e que ao encarnar os dois lados diametralmente opostos da condição humana sugere que a genialidade e a insanidade se encontrem em algum momento, devolvendo ao público a decisão sobre o perfil pelo qual desejam ser conhecidos.

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*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) - Campus Araguaína

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Resenha de filme: Livro, amores e ditaduras

Antonio Carlos Ribeiro

O filme Trem noturno para Lisboa (Night Train to Lisbon), dirigido por Bille August, diretor dinamarquês de As melhores intenções e que estreou dia 29 de novembro, mostrando um professor de filosofia, notívago e culto que, ao impedir o suicídio de uma jovem é sugado para dentro de uma trama intensa e atual.

Ao abandoná-lo, ela deixa um casaco, um livro e uma passagem de trem. Ele embarca para Lisboa. A viagem o leva não apenas da Suíça para Portugal, mas para as vidas que fizeram sentido ao participar da resistência, se manifestarem e viverem emoções inusitadas, no fim da mais longa ditadura da Europa moderna, de quase meio século, com a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.



O leitmotiv foi o livro que o fez defrontar-se com a história de um jovem estudante de medicina da Universidade de Coimbra, Amadeu de Almeida Prado – de personalidade densa como a situação histórica, determinado a usar sua formação, condição social e memória para não sucumbir – e a atuação de um colega do curso de Farmácia e da rede de resistência política.

As frases de Prado em seu livro despertam a atenção do professor, pela força que continham, pelo senso prático e pela cosmovisão que mostravam. A viagem não foi apenas do sul ao oeste europeu, mas pelas páginas do livro, que deixaram Raimund Gregorius encantado com a intensidade da vida destes jovens, rompendo com a ideia de ser metódico, culto e às vezes entediante.

O discurso de Prado na formatura da escola provoca reações claras de reprovação dos que deixaram o auditório, do padre Bartolomeu (Christopher Lee) que confirma sua agudeza e capacidade de expressão, e do pai, um juiz e sempre crítico de suas opções. É dessas pessoas que angariam respeito porque rompem paradigmas, amam, sofrem e pagam preços altos, sem perder a dignidade, perturbadoramente íntegra.

Nessas circunstâncias, o professor de Filosofia fica impressionado com garoto genial de 17 anos, que estuda numa escola católica, escreve um diário para não ser engolido pelos dias e discursa na formatura: ‘querias ser imortal? Mas apenas através da morte a vida tem valor’, ‘o que faremos com o tempo que teremos pela frente em aberto e sem forma, leve como uma pluma em sua liberdade e pesado como chumbo em sua incerteza?’

‘É um desejo, um sonho nostálgico, voltar a um determinado ponto da vida e poder tomar um rumo completamente diferente daquele que fez de nós quem somos’, filosofa o jovem médico, ‘estamos fazendo o bastante?’ e ‘estamos lutando pela vida em sua plenitude?’, ‘Se é verdade que vivemos apenas uma parte da vida que há em nós, o que acontece com o resto?’ Seus gritos arrancam do tempo as respostas que este reluta em dar.

Depois de desatar os nós da trama, clarear as reviravoltas existenciais e entender as loucuras das paixões, Gregorius desabafa para Martina, a oftalmologista que prescreve seu novo óculos: ‘Ele fala de coisas que sempre me preocuparam por anos’, ‘suas palavras e seu mundo são tão fortes que fazem o meu parecer insignificante’ e ‘eles viveram’.

Nos entrecortes, algumas cenas são intrigantes, como a que salva a vida do ‘carniceiro de Lisboa’ e é hostilizado pela vizinhança. Quando a circunstância o coloca diante deste dilema, ele opta por não se trair. É movido por duas paixões, a profissão e o ideal revolucionário, por isso cometer um crime seria negar as duas, e ainda sucumbir àquilo que mais nega. Vive as duas contradições em dilema intelectual, só encontrando respostas na prática.

Outra cena é a da reunião da resistência, a convite do melhor amigo, cuja namorada – Estefânia – sente uma paixão arrebatadora por Prado, a partir de suas intervenções. Sua beleza arrebata sentidos, a faz incisiva ao perguntar sobre o pai – um juiz da ditadura – e a faz movimentar-se com um planeta em torno do sol.

Situações imprevistas, mas possíveis, que trazem uma intensidade, uma catarse e uma autenticidade, pela expressão corajosa dos sentimentos, numa situação já tensa. Isto exige deles nada menos que plena humanidade, assumindo os riscos e a vulnerabilidade, levando muitas vezes a viver o momento (carpe diem – aproveite o dia), do latim da poesia romana, mas pouco interessante para adolescentes.

Um senão grave. Ouvir um filme que transcorre em Portugal com diálogos em inglês é ofensivo aos países lusófonos. Não bastasse o fato da língua portuguesa ser falada nos cinco continentes, é marca fundamental do período das grandes navegações. Se a acusação é a de serviço ao colonialismo, somos absolvidos. As demais também são. É a língua oficial de cinco países, a quinta mais falada no mundo – aproximadamente 268 milhões de pessoas – e a quarta do mundo ocidental. Enquanto os europeus desconhecem a língua que nos trouxeram, finjamos ouvir na língua de Camões o que aparece em inglês. A única falha de August foi grave, sobretudo pela co-produção portuguesa.

No diálogo de despedida com Martina, Gregorius se mostra encantado com a história desses jovens – ‘vidas cheias de vitalidade e intensidade’ – ‘tanta que os separou’, atalha a médica – ‘mas eles viveram’, interrompeu o suíço, julgando ter proferido a frase definitiva. Ela reage, firme e ritmada: ‘Por que você apenas não fica?’ ('Why don't you just stay), criando a possibilidade das paixões do passado no presente.

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*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Capes) - Campus Araguaína - e Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura

sábado, 9 de agosto de 2014

Resenha de filme: O olhar que encanta até a morte

Antonio Carlos Ribeiro*

O filme A menina que roubava livros (The Book Thief. Dir. Brian Percival, com Geoffrey Rush, Emily Watson, Sophie Nélisse, Ben Schnetzer e Nico Liersch. Drama. EUA /Alemanha, 2014. 131 min) é o tipo de filme que exige sensibilidade, inteligência e cultura histórica, até por sua simplicidade. O pano de fundo é uma pequena cidade da Alemanha no início da Segunda Guerra Mundial. Uma família errante foge da fúria nazista e a menina é entregue a um casal de pais adotivos, financiados pelo governo alemão.



A trama gira em torno de uma menina chamada Liesel Meminger, que vive nos arredores de Munique e furta livros. Com o apoio de seu pai adotivo, ela aprende a ler escrevendo nas paredes do porão da casa e a partilhar livros, incluindo sua leitura com amigos, como um rapaz judeu que lá mora clandestinamente. Resiste à subserviência da educação da época e sofre hostilização dos colegas na escola. No tempo que sobra, ela lê, escreve, estuda, entrega a roupa lavada e passada pela mãe adotiva, e brinca com o colega Rudy.

A narrativa é feita pela morte, de quem conquista a atenção por causa de sua criatividade diante das situações de horror, apesar de sua monumental presença no nazismo. Filha de mãe comunista e perseguida pelo governo nazista, de quem herdou a sensibilidade e a coragem para posicionar-se, Liesel carrega essa consciência crítica potencializada pela leitura, pela qual ingressa na pequena fatia de seu povo que resistiu ao nazismo.

A morte do irmãozinho na ida para a casa da família no subúrbio, leva-a a encontrar na neve um livro perdido pelo coveiro, fazendo-a retomar a sina do amor pela leitura, se descobrir parte dos seres humanos entre os pobres, tão vulneráveis aos ataques da força aérea dos aliados quanto aos soldados e oficiais nazistas, sempre ameaçando, espancando, conduzindo colunas de presos e matando, em nome do regime que lhes exige obediência cega.

Perturbada com o terror e os pesadelos, o demorado e relutante apoio da madrasta e a conivência do pai adotivo, ela enfrenta a saudade da mãe e do irmão. As lições de letramento e a leitura a fazem canalizar as urgências para a literatura, sobretudo em tempos de incêndios de livros – um fato paradoxal numa Reichkultur (cultura rica) – em que ela os salva assim como as pessoas comuns, das mais simples até aos intelectuais, salvam judeus, comunistas e homossexuais do morticínio bestial.

Sua sensibilidade eufemística e terna a leva a ler e mesmo a furtar livros na rica biblioteca do prefeito, à qual chegou pelas mãos da Frau Bürgemeister (esposa do prefeito), por tê-la identificado como a última pessoa a deixar a queima de livros dos cidadãos comuns, um espetáculo incendiário, precedido de discurso, palavras de ordem e palmas das mãos estendidas ao alto. Um tal amor pela leitura não a leva apenas a furtar e carregá-los incandescentes sob o casaco, mas certamente a lamentar a destruição deste tesouro da cidadania pelo mesmo regime ditatorial que saqueou bibliotecas e museus, na expectativa escatológica do Drittes Reich (Terceiro Reino) de que duraria mil anos. E não apenas os 12 a que sobreviveu.

O livro e filme estabelecem um conflito, possivelmente não percebido pelos alemães por causa das condições de miserabilidade, contra a qual o regime criou inimigos e estimulou o ódio. A realidade do culto a Hitler, a fragilização cultural extrema e a até a subserviência das igrejas da época denunciam o volume de forças que o nazismo conseguiu arregimentar. Lembra a ‘aparência do mal’, frente à qual Lutero mandou que os cristãos se persignassem três vezes – pouco mais de quatro séculos antes, no mesmo lugar – mas que não escaparam incólumes ao olhar da menina, que encantou até a morte.

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*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Capes) - Campus Araguaína - e Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura

sábado, 2 de agosto de 2014

Resenha de filme: Tarja Branca

Antonio Carlos Ribeiro*

O filme Tarja Branca – a revolução que faltava (Dir. Cacau Rhoden, com Domingos Montagner, Wandi Doratiotto e Antônio Nóbrega – Documentário, Brasil, 2014, 80 min) é composto de depoimentos de pessoas adultas e amadurecidas, de diferentes origens, profissões e gerações que descobriram que os momentos mais felizes, frutíferos e emocionalmente enriquecedores de suas vidas aconteceram quando puderam ‘brincar’.


Esse ato plural, sempre com dimensões sociais – por envolver pessoas, da família, da vizinhança, da escola, do trabalho e de diversas outras dimensões humanas – nos coloca em contato com os momentos mais felizes da nossa infância. Ao revivermos essas emoções, voltam à nossa memória as pessoas mais queridas, que nos amaram da forma menos pretensiosa, com quem partilhamos momentos inesquecíveis e que deixaram marcas indeléveis em nossa personalidade.

Voltar a esses momentos não é ‘perder tempo’, nem ‘desperdiçar energias com as saudades’ e menos ainda ‘remoer fatos do passado’, mas redescobrir o ato de brincar, pelo qual o ser humano adulto reencontra a criança dentro de si, reviver essa forma lúdica de enfrentar o cotidiano e utilizá-la como estratégia para as grandes conquistas, que invariavelmente começam com nossa harmonia e partilha de sentimento e trabalho.

O ato de brincar - dos mais ancestrais da raça humana – embora esquecido na atualidade, nos traz a chave emocional para melhor nos conhecer e nos relacionarmos com ‘os mundos’ à nossa volta. Mas, ainda mais primordial do que o que revela de nós e dos seres humanos, é o que mostra sobre o mundo em que vivemos.

Este documentário da Maria Farinha Filmes, dirigido por Rhoden, discorre e estimula o espírito lúdico, mostrando que em última instância as faces do homo (ser humano) socialis (social), aeconomicus (econômico), politicus (político), faber (produtivo), sapiens (sábio) podem ser regastadas no ludens (lúdico), sem confundir com atos grosseiros, violentos, desrespeitosos, discricionários, arrogantes que mostram à sociedade o homo demens (demente, estúpido).

Como nos ensinou o historiador holandês Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens, “a vida social moderna está sendo cada vez mais fortemente dominada por uma característica que tem alguma coisa em comum com o jogo e dá a ilusão de um fator lúdico fortemente desenvolvido. Julguei poder dar a esta característica o nome de ‘puerilismo’, que me pareceu ser o mais adequado para designar essa mistura de adolescência e barbárie que se tem vindo a estender pelo mundo no decorrer das últimas duas ou três décadas”.

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*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Capes) - Campus Araguaína - e Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura