O filme A menina que roubava livros (The Book Thief. Dir. Brian Percival, com Geoffrey Rush, Emily Watson, Sophie Nélisse, Ben Schnetzer e Nico Liersch. Drama. EUA /Alemanha, 2014. 131 min) é o tipo de filme que exige sensibilidade, inteligência e cultura histórica, até por sua simplicidade. O pano de fundo é uma pequena cidade da Alemanha no início da Segunda Guerra Mundial. Uma família errante foge da fúria nazista e a menina é entregue a um casal de pais adotivos, financiados pelo governo alemão.
A trama gira em torno de uma menina chamada Liesel Meminger, que vive nos arredores de Munique e furta livros. Com o apoio de seu pai adotivo, ela aprende a ler escrevendo nas paredes do porão da casa e a partilhar livros, incluindo sua leitura com amigos, como um rapaz judeu que lá mora clandestinamente. Resiste à subserviência da educação da época e sofre hostilização dos colegas na escola. No tempo que sobra, ela lê, escreve, estuda, entrega a roupa lavada e passada pela mãe adotiva, e brinca com o colega Rudy.
A narrativa é feita pela morte, de quem conquista a atenção por causa de sua criatividade diante das situações de horror, apesar de sua monumental presença no nazismo. Filha de mãe comunista e perseguida pelo governo nazista, de quem herdou a sensibilidade e a coragem para posicionar-se, Liesel carrega essa consciência crítica potencializada pela leitura, pela qual ingressa na pequena fatia de seu povo que resistiu ao nazismo.
A morte do irmãozinho na ida para a casa da família no subúrbio, leva-a a encontrar na neve um livro perdido pelo coveiro, fazendo-a retomar a sina do amor pela leitura, se descobrir parte dos seres humanos entre os pobres, tão vulneráveis aos ataques da força aérea dos aliados quanto aos soldados e oficiais nazistas, sempre ameaçando, espancando, conduzindo colunas de presos e matando, em nome do regime que lhes exige obediência cega.
Perturbada com o terror e os pesadelos, o demorado e relutante apoio da madrasta e a conivência do pai adotivo, ela enfrenta a saudade da mãe e do irmão. As lições de letramento e a leitura a fazem canalizar as urgências para a literatura, sobretudo em tempos de incêndios de livros – um fato paradoxal numa Reichkultur (cultura rica) – em que ela os salva assim como as pessoas comuns, das mais simples até aos intelectuais, salvam judeus, comunistas e homossexuais do morticínio bestial.
Sua sensibilidade eufemística e terna a leva a ler e mesmo a furtar livros na rica biblioteca do prefeito, à qual chegou pelas mãos da Frau Bürgemeister (esposa do prefeito), por tê-la identificado como a última pessoa a deixar a queima de livros dos cidadãos comuns, um espetáculo incendiário, precedido de discurso, palavras de ordem e palmas das mãos estendidas ao alto. Um tal amor pela leitura não a leva apenas a furtar e carregá-los incandescentes sob o casaco, mas certamente a lamentar a destruição deste tesouro da cidadania pelo mesmo regime ditatorial que saqueou bibliotecas e museus, na expectativa escatológica do Drittes Reich (Terceiro Reino) de que duraria mil anos. E não apenas os 12 a que sobreviveu.
O livro e filme estabelecem um conflito, possivelmente não percebido pelos alemães por causa das condições de miserabilidade, contra a qual o regime criou inimigos e estimulou o ódio. A realidade do culto a Hitler, a fragilização cultural extrema e a até a subserviência das igrejas da época denunciam o volume de forças que o nazismo conseguiu arregimentar. Lembra a ‘aparência do mal’, frente à qual Lutero mandou que os cristãos se persignassem três vezes – pouco mais de quatro séculos antes, no mesmo lugar – mas que não escaparam incólumes ao olhar da menina, que encantou até a morte.
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*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Capes) - Campus Araguaína - e Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura
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