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sexta-feira, 20 de julho de 2018

Cercado por livros

20.07.2018

Ramon Ribeiro 

Se tem uma área que o senhor José Xavier Cortez conhece bem essa área é a dos livros. Ele se dedica ao mercado livreiro desde os tempos que cursava Economia na PUC-SP e vendia livros para os colegas de classe até os dias de hoje, quando, aos 82 anos, segue à frente da Editora Cortez, fundada por ele em 1980. Nascido no Sítio Santa Rita, na zona rural de Currais Novos, Cortez construiu toda sua história como livreiro e editor em São Paulo, mas nunca deixou de visitar sua terra de origem.

José Xavier Cortez fala de sua trajetória como editor (foto: arquivo)

Fundador da Editora Cortez, o curraisnovense José Xavier Cortez está de férias pelo Rio Grande do Norte. Ele construiu sua vida como livreiro e editor em São Paulo, mas nunca deixou de visitar sua terra Natal, o Sítio Santa Rita, na zona rural de Currais NovosDe férias no Rio Grande do Norte, um de seus primeiros pontos de parada foi o centenário sítio da família. “Estive lá semana passada. Fui com minhas filhas e netos. Quis mostrar para os netinhos onde cresci. Fizemos uma festa de São João lá”, conta o editor.

Cortez também aproveitou a ida a Currais Novos para dar uma esticadinha no município vizinho, Lagoa Nova, e fazer uma das coisas que mais gosta, que é palestrar sobre a importância da leitura. “Desde que sai de casa a leitura passou a fazer parte do meu cotidiano. A leitura me levou a ser o que sou hoje”.

Nesta entrevista a TRIBUNA DO NORTE Cortez conversou um pouco sobre sua área, a dos livros, e sua terra, o Sítio Novo. Lembrou os passos que o levaram a entrar no mercado livreiro, contou de como deu um drible na censura durante a Ditadura Militar e também falou sobre as dificuldades enfrentadas pelas editoras brasileiras nos dias atuais. Sítio Santa Rita Sou nascido e criado no sertão do Seridó, no Sítio Santa Rita, distante 25 km do centro de Currais Novos. Esse sítio foi deixado pelo meu avô aos meus pais.

Fui criado no cabo da enxada, plantando milho, feijão. Era um trabalho duro lá e ainda tínhamos que ir para escola rural, onde aprendi a carta do ABC. No meu tempo não tinha biblioteca, não tinha livro, o método de ensino ainda era arcaico. A vida no sertão, com a seca, é muito difícil, principalmente para uma família com mais de 10 filhos como a nossa. Percebi que aquela terra não ia se multiplicar então quando completei 17 anos fui para Natal.

Passagem pela Marinha - Quando fiz 18 anos, servi na Marinha. Fiquei de 1955 até 1964, quando me expulsaram por questões políticas. Eu já estava morando no Rio de Janeiro, mas me mudei para São Paulo. Sai da roça, fui maquinista na Marinha, mas em São Paulo eu não tinha como trabalhar com nada disso. Comecei do zero trabalhando como lavador de carros num estacionamento. Até que em 1966 consegui entrar no curso de Economia da PUC-SP. Foi quando a minha vida mudou completamente. Vender livro na faculdade Na época da PUC eu morava do lado de uma editora de livros acadêmicos. Aproveitei para revender algumas obras para os meus colegas de classe.

Com o tempo a venda de livros estava me oferecendo condições financeiras melhores do que a que tinha numa empresa em que estava trabalhando (uma revendedora de peças de automóveis). Então passei a me dedicar inteiramente a venda de livros. Meu nome ficou conhecido na universidade, passei a ser procurado por estudantes e professores. Até que em 1968, fundei a livraria Cortez. A trajetória de livreiro até editor eu fiz sem conhecimento de mercado. Fui aprendendo na prática, abraçando as oportunidades que surgiam. Por exemplo, eu tinha um contato que me permitia trazer para o país livros proibidos pela Ditadura. As pessoas me viam com confiança, principalmente os professores. Nessa época, a PUC-SP era um dos espaços de resistência, abrigava intelectuais que combatiam o golpe, como Paulo Freire e Florestan Fernandes.

Esse período teve uma importância muito grande na abertura da livraria e da editora, definindo nossa linha editorial. Foco nas discussões contemporâneas Em 1980 eu começo a editora. As primeiras publicações foram de teses de mestrado e doutorado, em sua maioria de abordagens que divergiam do sistema da época. Até hoje mantemos essa linha progressista. É um perfil que não abdico. Sempre buscamos debater as grandes questões nacionais.

É importante ressaltar nesse nosso começo da editora que os professores foram os grandes responsáveis pelo meu amadurecimento na área. Eles participavam de conferências pelo país e levavam os livros. Driblando a censura Eu tinha medo da ditadura, mas nunca fui pego. Pra você ter uma ideia, eu não comentava que tinha passado pela Marinha. Me preocupava com dedo-duros, que alguém me caguetasse. Mas nunca cheguei a ter problemas com os Militares. O mais perto disso foi com a publicação de um livro de um autor argentino. O livro se chamava “Servicio Social Pueblo”. Quando estava indo pra gráfica, saiu na imprensa que a obra estava proibida. Mas demos um jeito. Tiramos a palavra povo do título, que era o que assustava as autoridades, e publicamos do mesmo jeito, sem os censores perceberem. Publicamos com o nome “Sete Estudos Sobre Serviço Social”. Foi bastante lido nos anos 70 e 80.

As dificuldades de manter uma editora De 2015 pra cá o mercado livreiro teve um baque muito grande. Pra você ter uma ideia, em 2014 a gente tinha 70 funcionários, hoje são apenas 30. As pequenas livrarias desapareceram. A nossa, fechamos em 2016. Ficamos só com a editora. Não tínhamos condições de sobreviver num mercado tão especulativo, com domínio das grandes redes que pedem descontos exorbitantes. Os governos, em todos os níveis, não compram mais livros. O papel tem o processo tabelado, definido por poucas empresas que dominam essa área. Outro problema são os atrasos no pagamento, que afeta toda a cadeia. O fato é que existe uma anomalia no mercado livreiro, e isso existe em detrimento da cultura nacional.

Educação é prioridade para o crescimento de qualquer pessoa. Livro não é custo. É investimento. Mas não é feito nada para mudar esse cenário. Raízes seridoenses Eu sempre visito o sítio da família. É muito bom poder conviver com as nossas origens. Quando vou no sítio me conecto com meu passado, encontro colegas que estudaram comigo na escola. Eu tenho a preocupação de que poderia estar melhor. Ainda há muitos analfabetos, muita ignorância. Mas eu nunca deixei de acreditar da força transformadora dos livros. Como eu sempre digo nas minhas rodas de conversa, desde que sai de casa a leitura passou a fazer parte do meu cotidiano. E foi ela que me levou a ser o que sou hoje.

Fonte: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/cercado-por-livros/417831

terça-feira, 15 de maio de 2018

Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador

14.05.2018

Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil. Outro tema na mesa era a reforma agrária

Amanda Rossi, BBC Brasil

Créditos da foto: Escravos trabalham em uma plantação de café no Brasil / THE NEW YORK PUBLIC LIBRARY

Em 13 de maio de 1888, há 130 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil. Outro tema na mesa era a reforma agrária.

O debate sobre a repartição das terras nacionais havia sido proposto pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. Sua ideia era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. O político Joaquim Nabuco, também abolicionista, apoiou a ideia. Já fazendeiros, republicanos e mesmo abolicionistas mais moderados ficaram em polvorosa.

"A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade rural", diz Alencastro. Foi aí que veio a aprovação da Lei Áurea, sem nenhuma compensação ou alternativa para os libertos se inserirem no novo Brasil livre. "No final, a ideia de reforma agrária capotou".

Nesta entrevista para a BBC Brasil, o historiador fala ainda sobre a origem da violência do Estado atual contra os negros, afirma que a escravidão saiu da pauta e passou a ser vista como um passado distante, apesar de não ter acabado há tanto tempo assim, e critica o uso da palavra "diversidade" para se referir aos negros. "Falar de diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria. É muito mais que diversidade, é democracia".

Alencastro é hoje professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. É também professor emérito da universidade de Paris Sorbonne, onde lecionou por 14 anos, e autor do livro "O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul". Veja abaixo os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil - Como entender que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravidão nas Américas?

Luiz Felipe de Alencastro - O Brasil foi o último porque foi o que mais importou africanos - 46% de todos que foram trazidos coercitivamente para as Américas. Esse volume assombroso de africanos que chegou aqui acorrentado era considerado como uma propriedade privada. Isso cria uma dinâmica em que a propriedade escrava era muito importante. Muita gente tinha escravos. Nas cidades havia gente remediada que tinha um ou dois escravos. Os estudos mostram que a propriedade escrava no Brasil era muito mais difundida que na Jamaica ou no Sul dos Estados Unidos. Assim, muita gente, e não só os fazendeiros, achava que o país ia se arruinar se parasse de trazer africanos. Quase tudo dependia do trabalho escravo e da chegada dos africanos.

O Haiti é um caso limite, porque é primeiro país americano que chega à independência, com uma revolução feita pelos escravos (iniciada em 1791). É a única insurreição de escravos que chega ao poder no mundo. Já nos outros países em volta do Brasil, a escravidão não era importante. E era importante no Sul dos Estados Unidos.

Qual a diferença do processo de abolição no Brasil e nos Estados Unidos, em 1863?

No Brasil, a escravidão não era como nos Estados Unidos. Lá, a escravidão era regional, no Sul. No restante do país, havia uma economia agrícola independente e movimentos abolicionistas. Já no Brasil a escravidão era nacional, no país inteiro, e não havia um setor camponês independente. Por isso, o abolicionismo não tinha como crescer em regiões circunvizinhas às zonas escravistas. Como foi nos Estados Unidos? O norte do país, não escravista, elegeu Abraham Lincoln, do partido republicano, e que era contrário à expansão do escravismo nos novos territórios dos EUA e buscava uma solução negociada para extingui-lo nos estados onde ele existia. Isso causou a ruptura dos estados sulistas com a União. Ocorreu então uma guerra civil para acabar com a escravidão, uma guerra sangrenta, que traumatiza até hoje o país. Aqui não existia nenhuma parte do território em que a escravidão fosse ilegal. Então, mesmo que houvesse 60 escravos no Amazonas na mão de alguns senhores, esse grupo fechava com o partido escravocrata no Parlamento. Havia uma espécie de união nacional em torno do tráfico negreiro e da escravidão.




Já se disse que as grandes transformações do Brasil ocorreram sem participação popular, pelas mãos da elite política e econômica. A independência, a abolição, a República. Mas isso é verdade para a abolição?

José Bonifácio de Andrada, que era uma espécie de primeiro-ministro logo depois da independência do Brasil, mandou um projeto para a Assembleia Constituinte, prevendo a abolição progressiva do tráfico e da escravidão. Já naquele momento, a classe dirigente, o corpo da administração imperial tinham perfeita noção de que manter o tráfico de escravos criaria um impasse. Porque a Inglaterra deixara claro que só reconheceria a independência se o Brasil acabasse com o tráfico. E o governo inglês, nessa época, tinha uma importância enorme. Era como se fosse a ONU (porque garantia o reconhecimento diplomático internacional), o FMI (porque emprestava dinheiro para o governo) e a OIT (porque vetava a importação de africanos, mão-de-obra essencial no Brasil) juntos, com uma força naval que desde a batalha de Trafalgar (1805) mandava em todos os mares.

Quando a Inglaterra começou a pressionar mais fortemente, os dirigentes brasileiros cederam, prometendo acabar com o tráfico a médio prazo. Em 1831 é votado o fim do tráfico. Porém, sobretudo no Rio, e em menor medida na Bahia e no Recife, se organizam redes comércio semiclandestino de escravizados africanos. Só em 1850 , o comércio de africanos acabou de fato. Acabou de uma vez. Caiu de 60 mil africanos desembarcados em 1849 para 6 mil em 1851. Como? Porque houve um conchavo entre traficantes e governo. Se amanhã acabar o tráfico de cocaína na Colômbia, não é porque o consumo de cocaína acabou e de um dia para o outro os policiais ficaram virtuosos.

Que conchavo foi esse?

Os traficantes foram prevenidos antes que o tráfico ia acabar e foram tirando o dinheiro. Houve uma negociação entre a classe dirigente (a administração imperial) e a classe dominante (os fazendeiros, as oligarquias regionais). O governo propôs uma lei de imigração para trazer trabalhadores rurais, uma estrada de ferro na região cafeeira - porque o transporte era feito em lombo de mula - e a redução das tarifas de exportação de café.

Depois que o tráfico acabou, qual passou a ser a estratégia do Império?

Quando acaba o tráfico de escravos, acaba a fonte de reprodução externo do sistema escravista. Depois há a Lei do Ventre Livre em 1871 (que declarou livres os filhos de mães escravas que nascessem a partir daquela data). Isso estanca outra fonte de reprodução da escravidão, que é a reprodução demográfica interna. Dessa forma, houve uma estratégia gradualista para acabar com a escravidão.

Este gradualismo se resume nesta ideia: a escravidão acaba quando o último escravo morrer. Essa era a estratégia do Império. Aí ninguém perde dinheiro. Mas surge então o abolicionismo. É um movimento como as Diretas já!: abolição já! Não tem que esperar até o último escravo morrer para acabar com a escravidão. Vamos abolir já, e sem indenização para os proprietários de escravos. Joaquim Nabuco (político abolicionista) afirmou que o Brasil não tinha dinheiro para pagar os crimes que cometeu.




Qual foi a participação do movimento abolicionista? E o povo, participou?

O abolicionismo se acentuou na década de 1880. Há importante liderança negra. Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, que se batiam nos tribunais e nos jornais. Esses são os heróis. Também há muita gente anônima que participou. Houve movimentos organizados para dar fuga a escravos, por exemplo. Aqui em São Paulo, havia o grupo do Antônio Bento, os Caifazes. Havia um grupo em Recife, que ajudava os escravos a fugirem para o Ceará, onde a maioria dos municípios já não tinha mais escravos desde 1884, onde os escravocratas eram minoritários . Já o Rio de Janeiro era a província onde o escravismo era mais renitente. Em São Paulo, o oeste do Estado já estava apostando na imigração porque havia muita fuga, e a fuga é uma forma de revolta, dos escravos comprados no Nordeste. Essas ações acentuaram a crise do escravismo.

Também se falava de reforma agrária, dar terras para os ex-escravos.

A reforma agrária não estava na pauta da maioria dos abolicionistas. Foi uma radicalização de uma parte minoritária. André Rebouças, um engenheiro negro com muito prestígio, tinha um programa para criar um imposto territorial sobre as fazendas improdutivas e fundar cooperativas de pequenos camponeses. Nabuco, nos anos 1880, foi porta-voz dessas reivindicações. Mas no final, a ideia de reforma agrária capotou.

Por quê?

A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para trazer imigrantes que trabalhassem nas fazendas e não mexer na propriedade rural. Essa virada dos republicanos jogou Nabuco, Rebouças e outros no escanteio e os fez apoiar a monarquia até o fim. Depois disso, (no livro) "Minha Formação" (1900), Nabuco renega sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira: "Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio".




O projeto de reforma de Rebouças e Nabuco poderia ter ido para frente?

A relação de forças não era favorável. Não havia um movimento camponês a favor da reforma agrária, ou uma base popular lutando pelo o direito à terra. No final das contas, o Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária.

Além do campo, também havia muita escravidão nas cidades?

Se você somar a proporção de escravos no Rio com Niterói, você tem uma concentração urbana de escravos que não existiu em nenhum outro lugar no mundo, só no Império Romano. No Brasil, a escravidão também tinha essa característica urbana, em uma escala que não ocorreu nas Américas. A escravidão marcava as cidades. Em 1849, o Rio tinha 260 mil habitantes, 110 mil dos quais eram escravos. Isso dá 42% da população.

Como foi o dia seguinte à abolição? O que aconteceu com os escravos que se viram livres em 13 de maio de 1888, mas sem compensações, sem apoio do Estado para começar uma vida nova?

Na sequência da abolição, a mão de obra imigrante vai aumentando. Muitos ex-escravos ficam fora do mercado de trabalho na zona rural e, em parte, nas cidades. Mesmo sendo brasileiros, os ex-escravos não tiveram cidadania plena, porque a sua quase totalidade era analfabeta, e o voto do analfabeto foi proibido em 1882, ainda no Império. Este ferrolho para excluir os negros livres e os ex-escravos também atingiu os brancos pobres e analfabetos, como é óbvio. Até 1985, quando o voto deles foi permitido.

A escravidão foi um processo de muita violência. Essa violência usada contra os negros acabou quando a escravidão chegou ao fim?

A Constituição brasileira de 1824, no art. 179, proibiu punir crimes com castigo físico. A partir daquele momento, não se podia mais torturar - a inquisição portuguesa havia institucionalizado a tortura como prova, até a pessoa confessar. Vem então o Código Criminal de 1830 que especifica no art. 30: se o condenado for escravo ele não vai para a cadeia, a pena é transformada em açoite. Isso porque se o escravo fosse para cadeia, causaria uma perda de mão-de-obra e dinheiro para o seu senhor. Assim, o escravo era açoitado publicamente, humilhado, torturado. Depois, semanas depois, quando estivesse restabelecido (do açoitamento), o escravo voltava a trabalhar. Então, a tortura foi legal no Brasil até 1888, mas só para os escravos. Quando a abolição ocorre, a polícia já estava habituada a bater neles. Neles e nos brancos desfavorecidos. Como no caso do voto do analfabeto citado acima, os mecanismos da repressão escravista contaminam a sociedade inteira.




4,8 milhões de africanos aportaram como escravos no Brasil. É muito mais que em qualquer outro lugar no mundo. Nos Estados Unidos, foram menos de 400 mil. Por que a vinda de escravos para o Brasil foi tão grande?

São vários fatores. Do ponto de vista da navegação, há um sistema de correntes e ventos que aproxima muito o Brasil da África. A viagem de ida e volta para os portos brasileiros era 40% mais curta do que a dos navios saindo das Antilhas ou dos Estados Unidos, os quais enfrentavam turbulências na ida e na volta, quando atravessavam a zona equatorial. O Brasil também tinha mercadorias que eram trocadas por escravos, como tabaco e cachaça. Outro fator importante são as conexões do Brasil com os portos africanos. Quando a Corte portuguesa veio para cá, o Rio de Janeiro se tornou a capital do império português - isso incluía Angola, Moçambique... Também havia bases mercantis de interesse brasileiro lá - muito mais associadas ao Brasil do que a Portugal. Isso os americanos nunca tiveram. O negócio negreiro dos Estados Unidos era muito mais controlado pelos ingleses.

O terceiro fator é o boom do café, que aumentou muito o tráfico negreiro para o Centro-Sul do Brasil. Quem estava financiando isso em última instância? O operário e a classe média inglesa, francesa, russa, que estavam tomando café mais frequentemente. O café do Brasil não tinha concorrência. A partir de 1840, o Brasil vira o maior produtor mundial de café - e é o maior até hoje. Não foi assim com o ciclo do açúcar, que sofria concorrência das Antilhas.

Os próprios africanos participaram do comércio de escravos, não?

Os africanos desenvolviam comércio de escravos localizado, limitado aos circuitos regionais das zonas econômicas africanas. A articulação desse comércio interno ao comércio Atlântico - que era um dos setores mais dinâmicos da economia mundial, com companhias formadas, com acionistas investindo pesado - criou uma demanda de escravos que exacerbou o tráfico interno africano. Também houve a importação de armas europeias, dando maior impacto aos conflitos internos, que eram os mecanismos de criação mercantil de escravos. O comércio atlântico negreiro era um comércio totalmente europeu e brasileiro. Nunca houve um navio africano vendendo escravo nos portos das Américas.

Como a escravidão explica o país e a sociedade que o Brasil se tornou?

O tráfico negreiro em si explica muita coisa. Explica a unidade nacional, por exemplo. Quem quisesse se separar do governo do Rio de Janeiro, da Coroa, já sabia por antecipação que ia sofrer pressão da Inglaterra quando ficasse independente e teria que acabar com o tráfico. Quem estava melhor posicionado para moderar a pressão inglesa contra o tráfico transatlântico de africanos? O governo do Rio de Janeiro. Uma monarquia que tinha corpo diplomático bem plantado na Europa e era a única representante do sistema monárquico europeu nas Américas. A unidade nacional brasileira é um fenômeno inédito nas Américas. Falava-se a mesma língua. Mas da Patagônia até a Califórnia também se falava a mesma língua, o espanhol e os 4 vice-reinos espanhóis se fragmentaram virando 19 países.

Mas não é só. O tráfico também explica boa parte da diferença entre o Centro-Sul e o Nordeste do Brasil. O sucesso do primeiro não é porque teve mais espírito comercial. É por causa do café, mas também porque a rede negreira fluminense era mais extensa e mais eficaz na África que a dos negreiros pernambucanos ou baianos. Por isso, o café pode se expandir tanto.

130 anos é pouco tempo, só cerca de quatro gerações. Mesmo assim, parece muito distante. Por que temos a impressão de que a escravidão é um passado tão longínquo?

Eu conheci gente em Goiás que falava do tempo da escravidão. E há depoimentos de ex-escravos colhidos no Paraná, nos anos 1950. Por que parece que é tão longe? Logo depois da abolição o assunto saiu de pauta. Salvo para se ensinar que a abolição foi uma generosidade da Coroa, do governo, da redentora princesa Isabel. Daí o motivo do movimento negro ter proposto a troca do 13 de maio pelo 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), da princesa Isabel por Zumbi - numa luta política significativa. E depois veio também a imigração, criou-se uma outra história popular que não deixava muito espaço para a história dos afro-brasileiros.

A abolição foi uma farsa?

A abolição teve limites. Mas ela ocorreu, não foi farsa. Seria como dizer que a República foi uma farsa, que não acabou com a monarquia. A abolição acabou com a aberração gerada por um quadro institucional e legal que permitia uma pessoa ter como propriedade outra pessoa e seus descendentes, de maneira perpétua. A abolição também não foi uma benevolência da princesa ou do governo. A monarquia já estava caindo, fez uma última manobra e caiu ao tentar captar a plataforma abolicionista para enfraquecer o movimento republicano




O senhor é defensor das cotas...

O meu argumento das cotas é que elas são fundamentais para os negros, para os índios e para os pobres e os brasileiros em geral. São elas que vão consolidar a democracia plena no Brasil, com acesso à educação e ao trabalho.

Há quem defenda cotas por renda, não por cor...

A cota social apareceu como um argumento substitutivo dos que não queriam apoiar a cota racial. Ninguém falava em cota social no Brasil antes do movimento negro levantar a bandeira da política afirmativa racial - a favor dos negros e também dos índios, é importante lembrar. Trata-se de uma política baseada nas estatísticas étnicas dos Estados. Na região amazônica a proporção de jovens de origem indígena é importante e as cotas favoreceram a entrada deles nas universidades federais.

O Supremo Tribunal Federal votou unanimemente pela constitucionalidade das cotas, em 2012. Raras decisões do Supremo são unânimes. Juridicamente, a situação estava definida: os negros não sofrem descriminação legal, mas há mecanismos informais que os descriminam e desqualificam de forma óbvia. O censo de 2010 mostrou que a maioria da população é negra. Esse dado deve ser bem observado pela maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria.

O senhor também defende o ensino de história da África nas escolas.

A maioria das pessoas que chegaram aqui são africanos. É esse o dado que os professores têm que dar em reunião de pais e mestres, quando perguntam por que perder tempo com história da África. Ora, porque a África é mais importante para a formação do povo brasileiro do que a Ásia e boa parte da Europa e das Américas.

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Abolicao-da-escravidao-em-1888-foi-votada-pela-elite-evitando-a-reforma-agraria-diz-historiador/4/40223

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”

10.05.2018

Borja Hermoso, El País

Prestes a completar 89 anos, o filósofo vivo mais influente do mundo está em plena forma. O velho professor alemão, discípulo de Adorno e sobrevivente da Escola de Frankfurt, mantém mão de ferro em seus julgamentos sobre as questões essenciais de hoje e de sempre, que continua destilando em livros e artigos. Os nacionalismos, a imigração, a Internet, a construção europeia e a crise da filosofia são alguns dos temas tratados durante este encontro na sua casa em Starnberg.

Jürgen Habermas e a crise da intelectualidade (Foto: Gorka Lejarcegi)

Ao redor o lago de Starnberg, a 50 quilômetros de Munique, se amontoam sucessivas fileiras de chalés de estilo alpino. A única exceção às esmagadoras doses de melancolia, madeira escura e flores nas sacadas surge na forma de um bloco branco e compacto de cantos suaves, com janelas grandes e quadradas como única concessão à sobriedade. É o racionalismo feito arquitetura no país da Heidi. A Bauhaus e sua modernidade raivosa no meio da Baviera eterna e conservadora. Uma minúscula placa branca sobre uma porta azul confirma que ali vive Jürgen Habermas (Düsseldorf, 1929), sem dúvida o filósofo vivo mais influente do mundo por sua trajetória, sua obra publicada e sua atividade frenética até hoje, quando falta um mês e meio para que complete 89 anos. Sua esposa há mais de 60 anos, a historiadora Ute Wesselhoeft, nos recebe no pequeno vestíbulo e demora apenas alguns segundos para girar a cabeça e exclamar: “Jürgen, os senhores da Espanha chegaram!”. Ambos habitam esta casa desde 1971, quando Habermas passou a dirigir o
Instituto Max Planck de Ciências Sociais.

O discípulo e assistente de Theodor Adorno, além de membro insigne da segunda geração da Escola de Frankfurt e ex-catedrático de Filosofia na Universidade Goethe de Frankfurt, avança vindo do seu escritório, uma adorável bagunça de papéis e livros em estado de caos, cujos janelões dão para uma floresta. Aperta a mão com força. É muito alto, caminha muito ereto e tem uma espetacular mata de cabelos brancos como a neve. Cumprimenta afável e convida a sentar num dos grandes sofás. O cômodo está decorado em tons brancos e areia e acolhe uma pequena coleção de arte moderna que inclui pinturas de Hans Hartung, Eduardo Chillida, Sean Scully e Günter Fruhtrunk e esculturas de Oteiza e Miró (esta última simboliza o Prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais recebido em 2003). Abre-se imponente ao visitante a biblioteca de Habermas, que aloja velhos volumes de Goethe e de Hölderlin, de Schiller e de Von Kleist, e fileiras inteiras de obras de Engels, Marx, Joyce, Broch, Walser, Hermann Hesse e Günter Grass, entre uma infinidade de escritores e pensadores.

“Não pode haver intelectuais comprometidos se já não há mais leitores a quem continuar alcançando com argumentos”

O autor de obras imprescindíveis do pensamento, da sociologia e da ciência política do século XX, como Mudança Estrutural da Esfera Pública, Conhecimento e Interesse, O Discurso Filosófico da Modernidade e Teoria da Ação Comunicativa, troca impressões com o EL PAÍS a respeito de alguns dos temas que lhe preocuparam durante seis décadas e continuam a preocupá-lo. Com uma exceção: o entrevistado preferiu evitar qualquer questão relacionada ao passado nazista de seu país e à sua própria experiência a respeito (foi membro das Juventudes Hitlerianas — por obrigação, como tantos compatriotas seus). Habermas está furioso. “Sim…, continuo furioso com algumas das coisas que ocorrem no mundo. Isso não é ruim, não é?”, brinca.

Borja Hermoso - Professor Habermas, fala-se muito na decadência da figura do intelectual comprometido. Considera justo esse julgamento? Não é frequentemente um mero tema de conversa entre os próprios intelectuais?

Habermas: a esfera pública de Zola a Sartre e Bourdieu sofrem acelerado processo de deterioração
(Foto: Gorka Lejarcegi)

Habermas: Para a figura do intelectual, tal como a conhecemos no paradigma francês, de Zola até Sartre e Bourdieu, foi determinante uma esfera pública cujas frágeis estruturas estão experimentando agora um processo acelerado de deterioração. A pergunta nostálgica de por que já não há mais intelectuais está mal formulada. Eles não podem existir se já não há mais leitores aos quais continuar alcançando com seus argumentos.

“A única forma de fazer frente às ondas mundiais de emigração seria combater suas causas econômicas nos países de origem”

É possível pensar que a Internet acabou por diluir essa esfera pública que antes talvez fosse garantida pela grande mídia tradicional e que isso afetou a repercussão dos filósofos e dos pensadores?

Sim. Desde Heinrich Heine, a figura histórica do intelectual ganhou importância junto com a esfera pública liberal em sua configuração clássica. No entanto, esta vive de certos pressupostos culturais e sociais inverossímeis, principalmente da existência de um jornalismo desperto, com meios de referência e uma imprensa de massa capaz de despertar o interesse da grande maioria da população para temas relevantes na formação da opinião pública. E também da existência de uma população leitora que se interessa por política e tem um bom nível educacional, acostumada ao processo conflitivo de formação de opinião, que reserva um tempo para ler a imprensa independente de qualidade. Hoje em dia, essa infraestrutura não está mais intacta. Talvez, que eu saiba, se mantenha em países como Espanha, França e Alemanha. Mas também neles o efeito fragmentador da Internet deslocou o papel dos meios de comunicação tradicionais, pelo menos entre as novas gerações. Antes que entrassem em jogo essas tendências centrífugas e atomizadoras das novas mídias, a desintegração da esfera populacional já tinha começado com a mercantilização da atenção pública. Os Estados Unidos com o domínio exclusivo da televisão privada é um exemplo chocante disso. Hoje os novos meios de comunicação praticam uma modalidade muito mais insidiosa de mercantilização. Nela, o objetivo não é diretamente a atenção dos consumidores, mas a exploração econômica do perfil privado dos usuários. Roubam-se os dados dos clientes sem seu conhecimento para poder manipulá-los melhor, às vezes até com fins políticos perversos, como acabamos de saber pelo escândalo do Facebook.

O pensador alemão aparece numa janela da casa onde vive com sua esposa, Ute, desde 1971.
(Foto: Gorka Lejarcegi)

O senhor acredita que a Internet, para além de suas indiscutíveis vantagens, criou uma espécie de novo analfabetismo?

O senhor se refere às controvérsias agressivas, às bolhas e às histórias falsas de Donald Trump em seus tuítes. Deste indivíduo não se pode dizer sequer que esteja abaixo do nível da cultura política de seu país. Trump baixa esse nível constantemente. Desde a invenção do livro impresso, que transformou todas as pessoas em leitores potenciais, foi preciso passar séculos até que toda a população aprendesse a ler. A Internet, que nos transforma todos em autores potenciais, não tem mais do que duas décadas. É possível que com o tempo aprendamos a lidar com as redes sociais de forma civilizada. A Internet abriu milhões de nichos subculturais úteis nos quais se troca informação confiável e opiniões fundamentadas. Pensemos não só nos blogs de cientistas que intensificam seu trabalho acadêmico por este meio, mas também, por exemplo, nos pacientes que sofrem de uma doença rara e entram em contato com outra pessoa na mesma condição em outro continente para se ajudar mutuamente com conselhos e experiências. Sem dúvida, são grandes benefícios da comunicação, que não servem só para aumentar a velocidade das transações na Bolsa e dos especuladores. Sou velho demais para julgar o impulso cultural que as novas mídias vão gerar. O que me irrita é o fato de que se trata da primeira revolução da mídia na história da humanidade que serve antes de tudo a fins econômicos, e não culturais.

No cenário hipertecnologizado de hoje, onde triunfam os saberes úteis, por assim dizer, qual o papel e sobretudo qual o futuro da filosofia?

Veja, sou da antiquada opinião de que a filosofia deveria continuar tentando responder às perguntas de Kant: o que é possível saber?, o que devo fazer?, o que me cabe esperar? e o que é o ser humano? No entanto, não tenho certeza de que a filosofia, como a conhecemos, tenha futuro. Atualmente segue, como todas as disciplinas, a corrente no sentido de uma especialização cada vez maior. E isso é um beco sem saída, porque a filosofia deveria tentar explicar o todo, contribuir para a explicação racional de nossa forma de entender a nós mesmos e ao mundo.

“Macron me inspira respeito porque, no paralisante cenário atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política e que demonstra coragem”

O que resta de sua orientação marxista? Jürgen Habermas continua sendo um homem de esquerda?

Estou há 65 anos trabalhando e lutando na universidade e na esfera pública em favor de postulados de esquerda. Se há 25 anos advogo pelo aprofundamento político da União Europeia, faço isso com a ideia de que apenas esse regime continental poderia domar um capitalismo que se tornou selvagem. Jamais deixei de criticar o capitalismo, nem tampouco de ter consciência de que não bastam diagnósticos vagos. Não sou desses intelectuais que atiram a esmo.

Kant + Hegel + Iluminismo + marxismo desencantado = Habermas. Essa equação é suficiente para resolver o “x” de sua ideologia e pensamento?

Se é preciso expressá-los de forma telegráfica, estou de acordo, apesar de ainda faltar uma pitada da dialética negativa de Adorno...

O senhor cunhou em 1986 o conceito político do patriotismo constitucional, que hoje soa quase medicinal diante de outros supostos patriotismos de hino e bandeira. É muito mais difícil exercer o primeiro do que o segundo, não?

Em 1984, pronunciei uma conferência no Congresso espanhol a convite de seu presidente, e no fim fomos comer em um restaurante histórico. Ficava, se não me engano, entre o Parlamento e a Porta do Sol, na calçada da esquerda. Seja como for, durante a conversa animada com nossos impressionantes anfitriões — muitos deles eram colegas socialdemocratas que tinham participado da redação da nova Constituição do país —, minha esposa e eu nos inteiramos de que nesse lugar tinha acontecido a conspiração para preparar a proclamação da Primeira República espanhola de 1873. Ao saber disso, experimentamos uma sensação totalmente diferente. O patriotismo constitucional exige um relato apropriado para que tenhamos sempre presente que a Constituição é a conquista de uma história nacional.

E nesse sentido o senhor se considera um patriota?

Me sinto patriota de um país que, finalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, deu à luz uma democracia estável, e ao longo das décadas subsequentes de polarização política, uma cultura política liberal. Hesito em declarar isso e, de fato, é a primeira vez que faço isso, mas nesse sentido sim, sou um patriota alemão, além de um produto da cultura alemã.

Jürgen Habermas lê na sala da sua casa em Starnberg, perto de Munique. 
(Foto: Gorka Lejarcegi)

De que cultura alemã? Só há uma ou há culturas alemãs?

Sinto-me orgulhoso dessa cultura também em relação à segunda ou terceira geração de imigrantes turcos, iranianos, gregos, ou de onde quer que tenham chegado, que aparecem de repente na esfera pública como cineastas, jornalistas e os apresentadores de televisão mais fabulosos; como executivos e os médicos mais competentes, ou como os melhores literatos, políticos, músicos e professores. Tudo isso constitui uma demonstração palpável da força e da capacidade de regeneração de nossa cultura. A rejeição agressiva dos populistas de direita contra as pessoas sem as quais essa demonstração teria sido impossível é uma bobagem.

Acredito que o senhor prepara um novo livro sobre a religião e sua força simbólica e semântica como remédio para certas lacunas da modernidade. Pode nos contar um pouco desse projeto?

Bem, na verdade este livro não fala tanto de religião, mas de filosofia. Espero que a genealogia de um pensamento pós-metafísico desenvolvido a partir de um discurso milenar sobre a fé e o conhecimento possa contribuir para que uma filosofia progressivamente degradada como ciência não esqueça sua função esclarecedora.

Falando de religiões e de guerra de religiões e culturas, levando-se em conta o atual nível de intransigência e os fundamentalismos de todo tipo, o senhor acredita que rumamos para um choque de civilizações? Será que já estejamos imersos nele?

Em minha opinião, essa tese é totalmente equivocada. As civilizações mais antigas e influentes se caracterizaram pelas metafísicas e as grandes religiões estudadas por Max Weber. Todas elas têm um potencial universalista, e por isso se construíram sobre a base da abertura e da inclusão. A verdade é que o fundamentalismo religioso é um fenômeno totalmente moderno. Remonta à alienação social que surgiu e continua surgindo em consequência do colonialismo, da descolonização e da globalização capitalista.

O senhor escreveu certa ocasião que a Europa deveria fomentar um islã ilustrado e europeu. Acredita que isso esteja ocorrendo?

Na República Federal Alemã nos esforçamos por incluir em nossas universidades a teologia islâmica, de forma que possamos formar professores de religião em nosso próprio país e não tenhamos de continuar importando-os da Turquia ou de outros lugares. Mas, na essência, esse processo depende de conseguirmos integrar verdadeiramente as famílias imigrantes. No entanto, isso nem de longe é suficiente para conter as ondas mundiais de imigração. A única maneira de enfrentar isso seria combater as causas econômicas nos países de origem.

E como se faz isso?

Não me pergunte como se faz isso sem mudanças no sistema econômico mundial do capitalismo. É um problema de séculos. Não sou especialista, mas leia o livro de Stephan Lessenich Die Externalisierungsgesellschaft [A sociedade da externalização] e verá que a origem das ondas que agora refluem para a Europa e o mundo ocidental está exatamente nisso.

“A Europa é um gigante econômico e um anão político.”
Assinado: Jürgen Habermas.

Nada parece ter ficado melhor depois do Brexit, dos populismos e extremismos, dos movimentos nazistas, das tentativas nacionalistas de separação da Escócia e Catalunha...

A introdução do euro dividiu a comunidade monetária em norte e sul, em vencedores e perdedores. A causa é que as diferenças estruturais entre as regiões econômicas nacionais não podem ser compensadas se não se avança no sentido da união política. Faltam válvulas, como por exemplo a mobilidade em um mercado de trabalho único ou um sistema de segurança social comum, e faltam competências europeias para uma política fiscal comum. A isso se acrescenta o modelo político neoliberal incorporado aos tratados europeus, que reforça mais ainda a dependência dos Estados nacionais em relação aos mercados globalizados. O elevado desemprego juvenil nos países do sul é um escândalo absurdo. A desigualdade aumentou em todos os nossos países e erodiu a coesão populacional. Os que conseguem se adaptar aderem ao modelo econômico liberal que orienta a ação em benefício próprio; entre os que se encontram em situação precária, espalha-se os medos regressivos e as reações de ira irracionais e autodestrutivas.

O senhor acompanha de perto o problema catalão? Qual a sua opinião e diagnóstico?

Realmente qual é o motivo de um povo culto e avançado como a Catalunha desejar estar sozinha na Europa? Não entendo. Me dá a sensação de que tudo se reduz a questões econômicas... Não sei o que vai acontecer. O que lhe parece?

Acredito que pensar em isolar politicamente uma população de cerca de dois milhões de pessoas com aspirações independentistas não é realista. E sem dúvida não é simples...

Sem dúvida é um problema, sim. É muita gente.

Jürgen Habermas fala com muita dificuldade, pois nasceu com fissura labiopalatina. Uma pequena tragédia pessoal para alguém cuja missão filosófica primordial sempre foi valorizar a linguagem e a dimensão social e comunicativa do homem como remédio de tantos males (tudo isso compilado em sua célebre Teoria da ação comunicativa). O velho professor se mostra realista e resignado quando, olhando pela janela, sussurra: “Já não gosto dos grandes auditórios nem dos grandes salões. Não entendo bem as coisas. Há uma cacofonia que me desespera”.

Professor, o senhor considera os Estados-nação mais necessários do que nunca ou, pelo contrário, acredita que de alguma forma estão superados?

Hum, talvez não devesse dizer isso, mas considero que os Estados-nação foram algo em que quase ninguém acreditava mas que precisaram ser inventados em seu tempo por razões eminentemente pragmáticas.

Sempre culpamos os políticos pelo fracasso da construção europeia, mas nós, cidadãos comuns da UE, não temos nossa parcela da culpa? Nós, europeus, realmente acreditamos na europeidade?

Vejamos... Até agora as lideranças políticas e os governos levaram adiante o projeto de maneira elitista, sem incluir as populações dos países nessas questões complexas. Tenho a impressão de que sequer os partidos políticos e os deputados dos Parlamentos nacionais se familiarizaram com a complicada matéria da política europeia. Sob o lema “mamãe cuida do seu dinheiro”, Merkel e Schäuble protegeram durante a crise, de forma verdadeiramente exemplar, suas medidas contra a esfera pública.

A Alemanha conserva uma vocação de liderança europeia? A Alemanha confundiu às vezes liderança com hegemonia? E a França? Que papel deve desempenhar o país liderado por seu querido presidente Macron?

Seguramente, o problema foi, na verdade, que o Governo federal alemão sequer teve o talento ou a experiência de uma potência hegemônica. Do contrário teria sabido que não é possível manter a Europa unida sem levar em conta os interesses dos demais Estados. Nas duas últimas décadas, a República Federal agiu cada vez mais como uma potência nacionalista no terreno econômico. No que se refere a Macron, continua tentando persuadir Merkel de que é preciso pensar em sua imagem com vistas aos livros de história.

Que papel o senhor acredita que a Espanha pode desempenhar na melhoria da construção europeia?

A Espanha simplesmente tem de respaldar Macron.

Em artigos recentes o senhor defendeu com paixão a figura do presidente Macron que, veja só, é filósofo como o senhor. O que mais o atrai nele? Acredita que é um bom político por ser filósofo?

Por Deus, nada de governantes filósofos! No entanto, Macron me inspira respeito porque, no cenário político atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política; que, como pessoa intelectual e orador convincente, persegue as metas políticas acertadas para a Europa; que, nas circunstâncias quase desesperadas da contenda eleitoral, demonstrou valor pessoal e que, até agora, em seu cargo de presidente, faz o que disse que ia fazer. E em uma época de perda de identidade política paralisante, aprendi a apreciar essas qualidades pessoais contrárias às minhas convicções marxistas.

No entanto, é impossível no momento saber qual é a ideologia dele... caso exista.

Sim, tem razão. Até o momento continuo sem ver claramente que convicções estão por trás da política europeia do presidente francês. Gostaria de saber se pelo menos é um liberal de esquerda convicto, e isso é o que espero.

Esta entrevista, que se pode realizar graças à colaboração do professor e escritor Daniel Innerarity, é um cruzamento de caminhos entre respostas oferecidas por escrito e trocas de impressões durante aquela manhã em Starnberg. Quando a conversa terminou, o único sobrevivente da segunda Escola de Frankfurt desapareceu de repente atrás da porta da cozinha de sua casa. Voltou com um sorriso cúmplice no rosto, trazendo uma garrafa de Rioja em uma mão e uma de Riesling na outra. Espanha e Alemanha, juntas na casa de Habermas.

Fonte: Jornal El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Edgar Morin: é preciso educar os educadores

Andrea Rangel

Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica nas relações internacionais.

Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 95 anos, defende que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin propõe um dos conceitos que o tornaram um dos maiores intelectuais do nosso tempo: o da complexidade.

Em entrevista, o pensador critica o modelo ocidental de ensino que, segundo ele, separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. Para Morin, as disciplinas fechadas ensinam o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas impedem a compreensão dos problemas do mundo e de si mesmo. Confira abaixo:


Fronteiras: Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?

Edgar Morin: A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal" de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor.

Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.

É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.

Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?

O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo.

O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.

Fronteiras 10 anos: Edgar Morin

O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?

Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.

Morin a complexidade do eu (https://www.youtube.com/watch?v=ExOqRgBKDKA)

Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana.

O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis.

A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.

O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?

As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa.

Morin: os limites do conhecimento na globalização (https://www.youtube.com/watch?v=_FmdI-UFW1U)

O meu livro O homem e a morte é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.


Morin: 'É preciso ensinar a compreensão humana'

Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?
Edgar Morin: É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional.

O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.

Veja mais Edgar Morin: "É preciso ensinar a compreensão humana"

A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?

Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento.

Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.

Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?

O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão.

Morin: Lições sobre a existência (https://www.youtube.com/watch?v=-7pZsHbuswY)

Assista a todos os vídeos com Edgar Morin no Fronteiras.com

Em vídeo extraído da conferência de Morin ao Fronteiras do Pensamento, o pensador reflete sobre as duas lições que considera mais importantes para reformar a vida: aprender a ser mais autônomo e, ao mesmo tempo, a conviver em comunidade; e aprender a lidar com as obrigações das quais não gostamos e, simultaneamente, a desenvolver nosso lado lúdico e poético.

Transcrito de http://www.fronteiras.com/entrevistas/entrevista-edgar-morin-e-preciso-educar-os-educadores

domingo, 30 de outubro de 2016

Em novo livro, Mia Couto retoma sua trilogia sobre a memória



Borboletas brilhantes tingiam de luz o rio durante a noite escura. “São as sombras da água”,
diz um personagem do segundo livro da trilogia As Areias do Imperador, chamado justamente
de Sombras da Água, em que o escritor moçambicano Mia Couto retoma a história de amor
entre a jovem africana Imani e o sargento português Germano de Melo. A história se passa no
fim do século 19, quando Moçambique está em guerra e o sul do país era governado por Ngungunyane, último líder do Estado de Gaza, o segundo maior império da África dirigido
por um africano. Sobre a obra, Couto respondeu por e-mail às seguintes questões.

Sua escrita sempre é marcada pela poesia na prosa. Como funciona o efeito poético em uma obra polifônica como essa?

A poesia é um modo de abrir portas a essa multidão que foi sendo silenciada dentro de cada um de nós. Fomos perdendo o acesso a essa alteridade, mas a vida insiste em construir em cada um de nós uma identidade múltipla. O que quer dizer que o trabalho do escritor se cruza em duas direções aparentemente contraditórias: por um lado, é imperioso que ele encontre a sua própria voz (que deve ser única e singular). Por outro lado, essa voz deve dar vazão à multitude de vozes que moram dentro de nós. No meu caso, tenho o privilégio de ter nascido e viver em um país que é uma nação onde vivem muitas nações. Todas elas pedem para ser faladas, lembradas e cantadas. Em qualquer lugar do mundo, a obra de arte é sempre polifônica. Mas, no caso de Moçambique, essa pluralidade é uma marca claramente vincada.

O colonizador português é mostrado de formas diferentes neste segundo volume, com Germano e Ayres de Ornelas. Por quê?

Pareceu-me que era preciso sublinhar que não existiu uma categoria chamada “o colonizador” ou “os portugueses”. Neste segundo volume, criei um diálogo entre dois militares para mostrar que, do lado do colonizador, ocorriam visões díspares e em conflito. E não apenas distintas visões, mas olhares particulares. Por razões da sua paixão por uma mulher negra e africana, o personagem do sargento vai-se afirmando como uma figura singular e em confronto com o seu mandato de militar europeu.

A captura de Ngungunyane significa a fragilidade de um povo?

Foi uma vitória colonial e uma derrota para a soberania dos africanos. Mas, uma vez mais, esse imperador africano que tanto perturbava o domínio português era um peso fatal para algumas das etnias que ele subjugava. Existiam diversas fragilidades que aqui se conjugam: a de diferentes Áfricas, mas também ironicamente a dos próprios portugueses que derrotaram militarmente esse poderia militar que lhe fazia frente no sul de Moçambique. Mas eram vencedores com vitória hipotecada. Porque era uma vitória apressada, sujeita a uma enorme encenação midiática, para que os ingleses vissem que Portugal merecia um fatia desse apetitoso bolo que era o território africano.

A trilogia trata de uma figura que foi mitificada tanto pelos portugueses como pelos africanos. Como descrever essa figura sem privilegiar um dos lados?

Tive que contrariar a facilidade de ir buscar inspiração apenas nos documentos escritos, que foram todos eles deixados pelos portugueses. Visitei profusamente os territórios de Inhambane e Gaza, no sul de Moçambique, para recolher depoimentos orais que preservam a lembrança desse conturbado período. No ano passado, passei três semanas na ilha dos Açores, lugar onde foi exilado e acabou por morrer o imperador e três dignitários da sua corte. Ali, nessas terras lusas, esses quatro africanos penaram, mas também amaram e fizeram filhos. Hoje, há descendentes desses africanos em território português, gente mestiça, mas de nacionalidade portuguesa.

Nós somos muito aquilo que já fomos, você disse certa vez. Como saber disso a partir de versões provavelmente distorcidas?

As versões do passado não têm sempre que ser interrogadas do ponto de vista da veracidade. Quase sempre elas são reinventadas. Sucede o mesmo quando revisitamos um sonho. O seu relato nunca é fiel. Porque o relato de um sonho pedia um idioma inventado. A única solução é aceitarmos que cada um de nós somos muitos. E somos assim múltiplos no presente porque, no passado, fomos sempre vários. O poeta moçambicano dizia: eu não sou dividido; sou repartido.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Luciano Da Ros: Não há um poder Judiciário no Brasil, mas 17.000 magistrados

Para Luciano Da Ros, Pesquisador da UFRGS, a autonomia sem transparência está na
raiz de ações de juízes contra jornalistas (Marco Santiago)

André de Oliveira

Em uma semana pulou de 37 para 45 o número de processos movidos por juízes e membros
do Ministério Público do Paraná contra jornalistas da Gazeta do Povo, que publicaram uma
série de reportagens, em fevereiro deste ano, tratando de supersalários no Judiciário do Estado.
Mas outras novidades relacionadas ao caso também aconteceram: o trabalho da equipe do
jornal recebeu o prêmio Liberdade de Imprensa da Associação Nacional de Jornais (ANJ), de
2016, e o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que a
moção das ações é um “suicídio institucional”.

Apesar das boas notícias para os jornalistas, contudo, a disputa judicial continua. Em entrevista ao EL PAÍS, o cientista político e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciano Da Ros, fala sobre problemas históricos do Judiciário brasileiro que, segundo ele, explicam em parte as ações movidas contra a Gazeta do Povo. Dedicando-se a diferentes campos de pesquisa, Da Ros tem um trabalho que foca na eficiência da Justiça no Brasil, levantando dados sobre gastos, transparência, celeridade etc.

El País - Você tem apontado que o Judiciário brasileiro é hoje o mais caro do mundo e que há muito pouco incentivo para que os Tribunais controlem seus gastos. Isso é uma exclusividade desse poder?

Da Ros - Não. É uma realidade comum à burocracia de forma geral, só que isso acaba sendo mais verdadeiro no caso de órgãos que têm uma autonomia muito grande, como é o caso do poder Judiciário no Brasil. Por exemplo, quando falamos em ajuste fiscal ou reformas no Estado, pensamos logo no Executivo, e nunca entram na lista o Legislativo ou o Judiciário. Quem acaba pagando a conta é o funcionalismo público do Executivo. Por quê? Porque existe certa facilidade no controle que vem de cima, da chefia do Executivo. Ou seja, dos governadores, prefeitos e presidentes eleitos. Só que esse comando centralizado e legitimado pela população não existe no poder Judiciário, até porque, em quase todos os casos, a liderança desses órgãos é eleita por seus próprios pares. A falta de incentivo para controle de gastos é generalizada, mas em órgãos com muita autonomia, cresce.


Nesse ponto, a imprensa tem papel de controle, não?

Sim. Eu diria que a maior parte das grandes reformas que a gente teve no Brasil para a melhoria da eficiência do poder Judiciário, que não envolvem apenas orçamento, mas também gestão de processos e outras coisas, não partiram de dentro dele. Posso exemplificar a partir de dois casos significativos. O primeiro, e mais recente, é a criação do Conselho Nacional de Justiça [CNJ]. Idealizado como um órgão de controle externo do Judiciário, sua criação fez parte da campanha presidencial de Lula, em 2002, e teve como principal defensor o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Só que a criação desse órgão era um tema que já tinha sido colocado lá na Constituinte, em 1988. O segundo, e mais antigo, é a implantação dos Tribunais de Pequenas Causas, hoje chamados de Juizados Especiais. A ideia por trás disso era dar maior celeridade e menor custo para o Judiciário. Embora existissem iniciativas em um ou outro Estado, o esforço para nacionalizar esse modelo partiu, assim como no caso da CNJ, de fora do Judiciário. Veio do então Ministério da Desburocratização. Ou seja, no caso do Judiciário, os esforços para reformas de grande impacto têm partido tanto do Executivo como a partir de mobilizações da opinião pública. As reformas aprovadas por iniciativa do próprio poder Judiciário existem, mas são mais incrementais. Aí, para voltar à questão, os meios de comunicação têm o papel fundamental de chamar a atenção para ineficiências da Administração pública e provocar o debate.

Como você avalia, então, a disputa judicial envolvendo magistrados do Paraná e jornalistas da Gazeta do Povo após a publicação de uma reportagem sobre rendimentos de servidores que acabam extrapolando o teto constitucional?

Diz-se, em todo o mundo, que a liberdade de imprensa deve estar apoiada em um Judiciário independente. E vice-versa: que a imprensa ajuda na autonomia da Justiça, enquanto o Judiciário garante que não haverá interferência de outros poderes no trabalho do jornalista. Se a abertura dessas múltiplas ações no Paraná é, ou não, caso pensado para intimidar a imprensa, o fato é que elas estão dificultando o trabalho desses repórteres. Seja como for, esse episódio faz a gente pensar se no Brasil essa relação entre Judiciário e imprensa não é o contrário do que deveria ser.

E o que está na raiz dessa briga judicial?

Acredito que é o fato de que nós tivemos avanços pontuais na Justiça, mas que algumas questões básicas e fundamentais ainda não foram resolvidas. Uma delas é o fato de que o elevado nível de autonomia individual dos membros do Poder Judiciário no Brasil, que é benéfico para manter sua isenção e imparcialidade, pode ao mesmo tempo se tornar prejudicial para a boa administração da Justiça se não for acompanhado de mecanismos de transparência e responsabilização. Só isso é capaz de explicar tanto esse tipo de ação individualizada dos juízes do Paraná, que tem sido vista por setores da sociedade como cerceamento de liberdade de imprensa, como também um dos motivos do custo desproporcional que o Judiciário brasileiro tem.

Como assim?

Um dos efeitos desta enorme autonomia individual dos magistrados é que cada juiz decide da forma que entende e, desse modo, é impossível ter posições claras de como o Judiciário, institucionalmente, decide. A melhor forma de ilustrar isso é dizer que não existe um Poder Judiciário propriamente dito no Brasil, e sim 17.000 magistrados. Quer dizer, toda a ideia do poder Judiciário é que haja independência exatamente para que os juízes tenham isenção de julgar sem que seus próprios interesses afetem o conteúdo da decisão. Para isso, é necessário um bom salário e garantias de que o magistrado não será exonerado ou removido de seu cargo. Contudo, isso não significa que, necessariamente, cada juiz pode decidir um caso da forma como ele sozinho acredita que deve ser decidido. Ele tem que obedecer a legislação, mas também tem que levar em conta as decisões anteriores que foram tomadas em casos idênticos. No Brasil, como esses mecanismos de controle da jurisprudência são recentes e o grau de autonomia dos magistrados individuais é muito alto, ocorre de um juiz decidir de uma forma e, em uma vara vizinha, outro juiz decidir um caso idêntico de outra forma. Isso é terrível, porque toda a ideia de que precisamos da independência do juiz é para que ele possa aplicar a mesma lei aos mesmos casos, para que haja igualdade e não diferença.

Você disse que isso é capaz de explicar as ações dos juízes e também o alto custo do Judiciário. Como entra essa segunda questão?

Hoje no Brasil em diversos casos vale mais a pena tentar a sorte na Justiça do que compor uma solução negociada fora do poder Judiciário. Isso porque as partes envolvidas em um processo não tem segurança sobre qual é ou será a posição do Judiciário a respeito de um determinado conflito, pois não há posições únicas dentro do próprio Judiciário sobre um mesmo tipo de caso. Isso é seguramente uma das causas da explosão de processos no país. Em 1990 eram cinco milhões de novos processos a cada ano, agora são 30 milhões. Para se ter uma ideia, hoje existe cerca de um processo em andamento para cada dois habitantes. Por fim, isso acaba produzindo uma carga de trabalho enorme e a consequência é o Judiciário mais caro do planeta. Enquanto os gastos de países como Espanha, EUA e Inglaterra ficam entre 0,12% e 0,14% do PIB, o do Brasil está na casa do 1,3%.

Você acredita que esse aumento no número de novos processos também está refletido na alta influência do Judiciário na vida política brasileira?

Com certeza. O professor Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo, diz uma coisa muito verdadeira sobre o STF [Supremo Tribunal Federal] que é que não há um Supremo como instituição, mas 11 ministros e cada um deles têm enormes possibilidades de interferência sobre os processos com pedidos de vista, votos individuais, prazos pouco claros para levar os casos a julgamento, para incluí-los na pauta etc. Isso é visto no sistema judicial como um todo e é em parte por isso que os políticos têm levado as questões para a Justiça. É a mesma lógica: já que não se tem certeza das posições do Judiciário, vale arriscar. O problema é que existe pouca política institucional e muita atuação individual.

Mas então onde o Judiciário brasileiro tem sido bem sucedido?

Comparativamente com outros países da América Latina, por exemplo, ele é considerado um dos poderes mais bem estruturados, com maiores recursos, com garantias mais fortes de independência. Quer dizer, nós temos um Judiciário altamente profissionalizado. Há muitas discrepâncias regionais, claro. Por exemplo, no Estado do Maranhão, o primeiro concurso público para servidores aconteceu apenas em 2005, só depois do CNJ ser criado. Mas, de forma geral, temos um Judiciário que tem garantias de independência e atua com muitos recursos. Veja bem, a grande questão é que há pouco controle, pouca transparência e que, quando existe, essas práticas são muito recentes. Ninguém estuda, por exemplo, como funcionam as corregedorias da Justiça. Ou seja, como é que se punem magistrados para além do CNJ? Que tipos de punições existem? Há poucos estudos sobre isso e são questões essenciais para se compreender como se constrói um Judiciário íntegro e probo.


A independência, então, é essencial, mas, ao mesmo tempo fonte de problemas.

Se não houver controle e transparência, sim. Outro exemplo de uma coisa boa, mas que pode ter um reflexo ruim se não houver uma forma de fiscalização eficaz é a facilidade de acesso ao Judiciário. Nosso acesso ao poder Judiciário se ampliou muito ao longo dos últimos anos. E isso é ótimo. Ainda que vários problemas persistam, vários mecanismos foram criados ou se expandiram, como a assistência judiciária gratuita e a própria defensoria pública. Só que ao se diminuir as barreiras para se ter acesso ao Judiciário, um outro problema ficou escancarado: a desigualdade do tratamento de diferentes partes. Veja, por exemplo, a desigualdade expressa na dificuldade em condenar definitivamente um político por corrupção, por um lado, e o fato de que hoje temos 200.000 presos sem julgamento no Brasil, por outro. Esse tipo de desigualdade de tratamento é extremamente danoso em um poder do Estado que deve primar pela igualdade de tratamento. Enfim, para resumir, eu destacaria como pontos bons, embora longe de resolvidos: grau de independência, recursos e acesso. Pontos negativos: desigualdade de tratamento e ineficiência.

Alguns observadores têm apontado que o Judiciário é um dos poderes menos democráticos do Brasil. Isso teria raízes históricas relacionadas à ditadura militar. Você concorda?

A ditadura militar no Brasil operou, grosso modo, com essa arquitetura institucional do Poder Judiciário que está hoje aí, tanto que a LOMAN [Lei Orgânica da Magistratura Nacional] é de 1979. De igual forma, não houve grandes expurgos na magistratura durante a ditadura e basicamente essa máquina que existia agora, existia lá atrás. O nosso Judiciário, então, conviveu com a ditadura, mas conviveu em um sistema de acomodação. O Judiciário foi em grande medida conivente com a ditadura e a ditadura foi conivente com abusos dentro do Poder Judiciário, permitindo remunerações enormes, nepotismo, sistemas de loteamento de cargos e um conjunto de práticas que herdamos e que estamos tentando resolver até hoje.

E houve algum avanço?

Sim. Vem havendo uma enorme renovação dos quadros da magistratura, de forma que hoje a grande maioria dos integrantes do Poder Judiciário ingressou depois de 1988. Há uma mudança gradual da cultura institucional e uma diversificação crescente na magistratura, mas a arquitetura e as práticas institucionais ainda são herdeiras desse sistema de acomodação com os militares. Agora, o nosso Judiciário não é menos democrático necessariamente por ser fruto da ditadura. Ele é um poder menos democrático porque, em suma, ele é o mais independente e menos sujeito a controle. E isso, como já dito, é uma faca de dois gumes. Por fim, ele também é o único dos três poderes que não tem ninguém eleito. Não há mecanismos de legitimação popular. Em alguns países, como nos Estados Unidos, existem eleições, por exemplo. E em vários outros países, o Judiciário funciona por um sistema de indicações, como é com o nosso STF, que é um mecanismo indireto de legitimação popular dos juízes. No nosso sistema Judiciário isso ocorre para apenas alguns cargos. Na maior parte deles, é o próprio Judiciário que seleciona seus integrantes.

Transcrito de http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/16/politica/1466099536_355126.html