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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Bilontra era quem levasse a política a sério

Resenha de CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Kellen Araújo Sousa¹

O livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho, é um clássico da historiografia brasileira no que se refere ao estudo da prática de cidadania entre o povo brasileiro no início da República. Utilizando-se de inúmeras fontes, que vão desde revistas e jornais da época a documentos oficiais, desde artigos e teses a livros conceituados, o autor constrói seu trabalho de maneira singular. O trabalho é dividido em cinco capítulos, além da conclusão, notas, caderno de fotos e bibliografia no final. São ao todo 196 páginas muito bem utilizadas, e que vale a pena serem lidas.



Na introdução da obra o autor, como bom historiador que é, nos informa o recorte espaço-temporal de seu estudo: a cidade do Rio de Janeiro no período de transição do Império para a República até o governo de Rodrigues Alves. É também na introdução que ele lança o questionamento que buscará responder no decorrer do livro: por que o povo era considerado bestializado? Qual a razão de sua apatia política? Num primeiro momento, ao ler-se o título da obra, pensa-se até que o autor tratará da passividade do povo brasileiro, de sua inércia política. Mas seu objetivo é outro: é “tentar entender que povo era este, qual seu imaginário político e qual era sua prática política”.

O primeiro capítulo – O Rio de Janeiro e a República – traz uma descrição das mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais por que passou o Rio de Janeiro na transição entre os regimes monárquico e republicano, e as consequências delas advindas para a população. Também enfatiza o impacto do novo regime no que se refere à expectativa de maior participação política do povo. Mas tais esperanças foram logo traídas. O governo tratou de calar a população. Era preciso estabilidade política, a qual não seria possível se o negro, o pobre, o estrangeiro, o operário tivessem voz. A grande maioria da população foi excluída do processo eleitoral, mas o povo encontrou outros meios de inserção no sistema e participação política, embora não fossem nada formais. Este ponto será mais bem tratado nos capítulos seguintes.

No capítulo II – República e cidadanias – o autor trata das diversas concepções de cidadania nascidas no início da República. Vários setores da população foram despertados pela expectativa de expansão dos direitos políticos, como abordou Carvalho no capítulo anterior. Por sua vez, as diferentes ideologias e as próprias condições sociais dessa população diversificada, influenciaram a formação de múltiplos conceitos de cidadania.

Dentre essas concepções, Carvalho cita a dos conservadores ou o “setor vitorioso da elite civil”, que apoiavam o conceito liberal de cidadania (liberdade de pensamento, de reunião, de profissão, de propriedade etc.), mas ao mesmo tempo impedia a democratização com as inúmeras barreiras ao direito ao voto pela grande maioria da população. O autor destaca que houve até um retrocesso nos direitos políticos e sociais. A noção positivista de cidadania apoiava a ampliação dos direitos civis e sociais, mas não incluía os direitos políticos. O anarquismo repudiava qualquer tipo de autoridade e tinha aversão aos partidos políticos e eleições. A luta deveria ser direta, através de greves, boicotagem, manifestações públicas. Já os socialistas acreditavam na organização partidária, porém seus partidos não duraram muito.

Porém, como essas concepções eram muitas vezes abafadas pela elite governante, a reação dos excluídos foi a “estadania, ou seja, a participação, não através da organização dos interesses, mas a partir da máquina governamental, ou em contato direto com ela” (p. 65).

O terceiro capítulo – Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral – é dividido em três momentos. Primeiramente, o autor apresenta testemunhos da época sobre o comportamento político brasileiro, que era visto por estrangeiros e até por propagandistas da República como apático e sem expressão. Entretanto Carvalho nos adverte a examinar tais testemunhos com cuidado e não tomá-los como retratos da realidade, pois como vimos no capítulo anterior, eram várias as concepções de cidadania. O autor critica as afirmações acima, considerando-as exageradas, uma vez que havia intensa participação popular desde a Independência, e com a República, as manifestações, as greves, as passeatas, os quebra-quebras se tornaram cada vez mais frequentes. Os testemunhos dos contemporâneos eram baseados em percepção europeizada do cidadão: bem-educado, militante organizado. Não encontraram este tipo no Rio, ou melhor, o cidadão carioca não se enquadrava nos conceitos que os observadores tinham em vista.

Na segunda parte do mesmo capítulo, o autor utiliza como referências censos da época para analisar a população fluminense, cuja composição, segundo seus estudos, é em grande parte de trabalhadores informais e de imigrantes. Carvalho aponta que tais características dificultavam a cidadania política no Rio. No primeiro caso, porque era difícil para esse setor popular (trabalhadores mal qualificados) compreenderem os mecanismos que regiam a sociedade.

No segundo caso, porque a grande presença de estrangeiros também reduzia o envolvimento organizado na vida política da cidade.

Carvalho, no terceiro momento deste capítulo, busca compreender a participação do povo através dos canais oficiais, como o voto. O autor nos mostra que o eleitorado era bastante limitado. Apenas 20% da população do Rio podiam votar, e, dentre estes, poucos exerciam esse direito. O autor esclarece, que além da exclusão legal do processo eleitoral havia a auto-exclusão, cuja decisão era tomada por boa parte dos votantes, por saberem das fraudes eleitorais e do perigo de votar. Podemos entender isso como um meio de resistência a esse sistema corrupto.

Como a participação eleitoral era uma farsa e não lhe valia muita coisa, o povo buscou outras maneiras de se fazer ouvir. O capítulo IV – Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina – aborda exatamente essa questão. Primeiramente, o autor nos apresenta o contexto social do Rio antes da Revolta, tratando das obras públicas de reforma urbana e saneamento na cidade, como também da luta pela implantação da vacina obrigatória contra a varíola, liderada por Oswaldo Cruz. Vários setores da sociedade iniciam então a Revolta da Vacina, que é descrita pelo autor dia após dia. Tal revolta foi fragmentada, reflexo da sociedade também fragmentada da época, que não tinha a tradição de organização e luta como havia entre o operariado europeu, consequência também das características dos trabalhadores do Rio.

Porém, quando o povo entendia que o governo havia passado dos limites, seja no campo material (criação ou aumento dos impostos) ou no campo da moral (invasão de privacidade, desrespeito à honra da família, valores ameaçados), o povo reagia. A Revolta da Vacina foi um exemplo claro disso, “um movimento popular de êxito baseado na defesa do direito dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelo governo” (p. 139).

No capítulo V – Bestializados ou bilontras? – o autor procura explicar o comportamento político do Rio de Janeiro. De um lado, percebia-se um comportamento participativo na religião, na assistência mútua e nas grandes festas, em que a população parecia reconhecer-se como comunidade. Porém, de outro, havia a indiferença pela participação na política e ausência de visão do governo como responsabilidade coletiva.

Uma forte razão para isso, segundo o autor, era o peso das tradições escravista e colonial que viciaram a relação dos cidadãos e o governo. “O Estado aparece como algo a que se recorre, como algo necessário e útil, mas que permanece fora do controle, externo ao cidadão” (p. 146). Até porque a elite utilizou de vários mecanismos para alienar esse povo, para este permanecer quieto e passivo.

Porém, o autor nos mostra que essa atitude da população era também uma forma de resistência. A população logo descobriu que o novo regime não havia trazido avanços a liberdade e a participação. Então, “perante tal Estado, a cidade reagia seja pela oposição, seja pela apatia, seja pela composição” (p. 155).

Os casos de apatia e oposição foram abordados nos capítulos III e IV. Os de composição referiam-se  a exatamente a estadania, a aproximação do Estado, para reclamarem e conseguirem direitos que acreditavam serem da alçada do governo, como segurança, limpeza pública, transporte, arruamento. Todas eram maneiras de o povo atuar, reivindicar, reclamar, já que sabiam que não havia outros caminhos oficiais de participação. A República não era para valer. O discurso bonito do Estado não condizia com a realidade. Quem percebia isso não era bestializado. “Bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação (...) Quem apenas assistia, como fazia o povo o Rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era bilontra [gozador, espertalhão].” (p. 160).

Em sua conclusão o autor explica que como não aconteceu uma República real, ou seja, o governo nunca foi uma coisa pública, a cidade não teve cidadãos, nesse sentido. Estes se relacionavam com o Estado da maneira que conseguiam. Como a cidade foi impedida de ser República, foram formadas várias repúblicas, onde os cidadãos foram construindo a sua identidade coletiva.

Por tudo isso apresentado até aqui, vemos o trabalho excepcional do historiador José Murilo de Carvalho, sobre o povo brasileiro e sua prática política. No decorrer da leitura nos surpreendemos com a sua análise, que se mostra muito bem estruturada. A maneira pela qual ele constrói seus argumentos, não nos deixa perdidos na leitura. Os capítulos são sempre construídos de forma a darem suporte ao seguinte, de modo que o leitor consegue acompanhar sua linha de raciocínio. Ao final do livro, o autor conclui retomando todas as ideias anteriores, e solidifica ainda mais a nossa compreensão.

José Murilo de Carvalho não se mostra apenas como um bom escritor, mas também como um exímio pesquisador. As dez páginas de citação de fontes e referências bibliográficas ao final do livro, já nos dá uma boa impressão do trabalho. Jornais, revistas, almanaques, documentos oficiais, livros científicos e literários, artigos e teses foram utilizados pelo autor para construir esse trabalho. Porém, não só pela quantidade, mas também pela qualidade e inteligência que ele apresenta no uso dessas fontes, podemos perceber a confiabilidade de sua obra.


¹ Graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura em História, pela Universidade Federal de Roraima.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Quarto de empregada

Lianja Soares Aquino*

Sentada em minha sala confortável, idealizada para os meus estudos de mestrado, li Quarto de despejo: diário de uma favelada. Ao lado do livro a caneca de chá para aquecer o corpo e a música calma foi pano de fundo dessa experiência literária. Diferente de Carolina Maria de Jesus, autora e protagonista de Quarto de despejo.


O livro, publicado em 1960, trata-se de um diário escrito entre os anos de 1955 e 1960 por uma mulher negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que catava papéis para sobreviver à fome. Diferente da atmosfera narrada acima, a autora do livro, não foi prestigiada com uma sala confortável para escrever o seu diário e tampouco havia uma caneca de chá quente aquecendo-a do frio. Ao contrário, a fome, o frio e o cansaço eram companheiros em suas escritas e mesmo diante de todas as dificuldades o fazia por um ideal: mostrar ao mundo, através da escrita, as condições dos moradores da favela de Canindé, São Paulo, que viviam a margem da sociedade, esquecidos e famintos de políticas publicas que os arrancassem da miséria. “... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” (p.24)

As intrigas entre os moradores, os vícios, as mortes prematuras das crianças que sofriam maus tratos de pais alcoólatras, os políticos que visitam a favela em períodos de campanha com promessas de melhorias para a comunidade, as doenças advindas da falta de saneamento básico, as comidas recolhidas nos latões de lixo pelos moradores da favela, o racionamento de energia e de água, são denuncias sociais retratadas no livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, que carrega em seu título uma metáfora sobre o que a autora e protagonista considera ser a favela: o quintal de São Paulo.

           Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
           seus tapetes de viludos, almofadas de citim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um
          objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Sou reboalho. Estou no quarto de        
          despejo, e o que está no quarto de despejo ou se queima ou se joga no lixo. (p.31-32)

Com cadernos achados na lixeira, Carolina vai desenhando o seu mundo para que todos vejam. Através da literatura, Carolina vai sensibilizando os leitores, chamando atenção para aqueles que como ela, passam fome, e que como última alternativa trocam o pão por uma dose de pinga na esperança de aliviar a dor de pertencer a um espaço degradante e esquecido pelos políticos.

Nesta linha de pensamento, o contraponto dos espaços dos sujeitos revelados neste texto deixa transparecer o abismo entre a leitora e a escritora, ao mesmo tempo em que é estabelecida a fronteira, definida por Bhabha (Introdução in: O Local da Cultura), que os aproxima. Embora fique patente a distância no jeito de viver de cada uma, a aproximação é permitida sendo patrocinada pelas manifestações literárias, quando a escritora no seu Quarto de Despejo provoca a leitora em sua zona de conforto, que absorve as mensagens com a naturalidade própria de quem traduz em leveza a dureza das palavras daquela mulher: negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que fala da vida de seu cotidiano e acena com projetos políticos efetivos feitos de preferência por alguém que já tenha passado fome por acreditar que esse saberia definir as melhores propostas para o próximo e para as crianças.

O cenário da favela revela o quadro social compartilhado com a protagonista e leva à constatação de que a força literária quando brota da mente ou coração de uma leitora de seu próprio mundo, materializa-se numa palavra escrita singular, sensibilizando seus leitores.

O Quarto de despejo: diário de uma favelada provocou esta leitora a escrever este texto e colocar outros mais em “incubação” tais como: feminismo, discriminação racial, religiosidade e suicídio.

E a fronteira deixa duas mulheres, cada uma de um lado, frente às dores e os sonhos expressos pela protagonista, permitindo que ela cruzasse essa linha, tocando a emoção da leitora com a singeleza dos registros em seu diário escrito no Quarto de Despejo.

*Graduada em Letras, 2011, UFT. Mestranda em Ensino de Língua e Literatura, UFT, 2014.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Katiuscia de Sá

Um casamento fugitivo que dera origem a sete gerações da família “Buendía-Iguarán” é o ponta-pé inicial para abordagens viscerais acerca das relações humanas. Um enlace entre primos legítimos, jovens apaixonados que tinham medo de que seus filhos nascessem com um “rabo de porco”, caso mantivessem relações sexuais. Em meio a esse temor, José Arcadio Buendía rapta e casa-se com sua prima Úrsula Iguarán, dão vida a três filhos saudáveis e sem o tal “rabo de porco”.

Imagens mágicas e poéticas são traduzidas como representações da condição humana, contendo as angústias, revoltas e esperanças dos moradores da cidade fictícia de “Macondo”.
O romance fantástico-realista começa quando “as coisas não tinham nome” e segue até o período da chegada do telefone. José Arcadio Buendía atravessa pântanos, terras encantadas e perigosas para fundar sua própria cidade e ser feliz com sua recém criada família – surge fora do mapa, a mítica cidadela de “Macondo”, onde vez por outra aportavam ciganos trazendo as novidades, estranhezas inventadas por seu povo e notícias do mundo afora.

Um deles – Melquíades, ensina ao patriarca dos Buendía alguns segredos de Alquimia. Os experimentos e invenções dele ficam registrados numa língua estrangeira e dão corpo e vida a um livro velho e inacabado, que no futuro será decifrado por um dos descendentes da sétima geração da família Buendía (um filho bastardo: Aureliano Babilônia). O rapaz virá a receber “aulas” e pistas, diretamente do espectro de Melquíades, para decifrar o enigma contido no acervo. As escrituras contêm a saga de seus antepassados e um segredo profético para a própria linhagem dos Buendía.

Uma narrativa romântica e épica fascinante, caracterizada por alguns estudiosos como uma “enciclopédia do imaginário” e também como “realismo fantástico”. A trama é composta por 28 personagens semi-centrais (linhagem da família Buendía), sendo os patriarcas os principais da saga. As demais histórias giram em torno das personagens-protagonistas – José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, com tamanha importância quanto.

A maneira fenomenal de (d)escrever e(re)inventar “Macondo” e as personalidades e situações vividas pelos Buendía é o que mais chama atenção. O escritor colombiano Gabriel García Márquez presenteia leitores do mundo inteiro com o dom de sua imaginação e poder simbólico através da escrita, essa é a genialidade e valor inestimável de Cem Anos de Solidão, que foi considerado, em março de 2007, no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, como a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando atrás apenas de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.

Para penetrar nos segredos contidos em Cem Anos de Solidão, o leitor deverá compreender um pouco sobre a própria história política da Colômbia e do escritor. Gabriel García Márquez utiliza muitas histórias da sua época de infância, contadas pelo seu avô materno (Nicolás Márquez), veterano da “Guerra dos Mil Dias”. Seu avô tinha muitos relatos, fatos… memórias que alimentaram a imaginação do menino Gabriel, que muitos anos depois, ao tornar-se escritor, dissera certa vez: “todo escritor escreve sempre o mesmo livro – o livro de sua própria vida…”. O sobrenome de “Úrsula Iguarán”,  é o sobrenome da mãe de “Gabito” (apelido de García Márquez).

Segredos e fatos memoráveis da infância do escritor são descritos em Cem Anos de Solidão, histórias incríveis narradas de maneira tão sobrenatural com toques de verossimilhança, que o leitor se pega construindo visualmente cenas como borboletas amarelas seguindo os passos de um rapaz por onde quer que ele vá;  a epidemia de “perda de memória”, em decorrência da insônia coletiva que assola os moradores de “Macondo” durante muito tempo; o desaparecimento a olhos vitos de uma moça (“Remédios, a Bela”), que à frente dos seus simplesmente “ascende” aos céus devido uma experiência transcendental… e por aí vai.

O importante na obra é observar como García Márquez coloca as personagens dentro do contexto sociocultural da Colômbia, os personagens carregam pequenas críticas sobre o comportamento social ao longo da história do País latino. Esse aspecto aparece tão sutilmente mascarado pela maneira de escrever, que pouco (ou nada) se percebe. A personalidade da protagonista – a matrona “Úrsula Buendía”, uma mulher forte dos pensamentos e de força física, cuida do lar e da prole com tamanha dedicação e paciência, enquanto o marido largava-se em uma consumida “atividade febril dos nervos” em torno de seus experimentos alucinantes… A mulher da casa e as crianças esqueciam-se a cuidar da horta, cultivando a matéria-prima para o preparo dos bolinhos com os quais Úrsula gerava  a renda da família.



Comportamentos culturais bastante comuns em núcleos campesinos colombianos dão os aspectos de “realidade” dentro do épico, de modo que na vida de García Márquez, tal aspecto foi presenciado no momento em que sua família deixa a cidade de Aracataca para morar em outro lugar, devido à crise nas plantações de banana, desdobramento que afetara a economia local forçando a migração das pessoas para outras possibilidades. A migração é um fator bastante explorado no livro através das atitudes das personagens (os moradores de “Macondo” chegavam de outros lugares para se estabelecerem na cidadela em busca de melhores condições de vida, como aconteceu com a família de “Remédios”, por exemplo).

A intrigante abordagem de fatos sociais globais, ora de maneira bizarra, ora envolvidos por uma aura mágica embebida de místérios e fascínios próprios das lendas e costumes dos iíndos colombianos, gerou essa linha compreendida como “realismo fantástico”, introduzida na América Latina por Gabriel García Márquez a partir da publicação de Cem Anos de Solidão (maio de 1967).

A trajetória literária do escritor sofreu forte  influência de Metamorfose, de Franz Kafka e das Mil e Uma Noites (uma coleção de contos orientais compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI, obra clássica da literatura persa). Cem Anos de Solidão é leitura obrigatória a todo cidadão do mundo. Cheia de fascínio, magia e alusão à realidade, o livro nos remete a nossas próprias fantasias e memórias de infância.

http://www.argumento.net/cena-critica/literatura/cem-anos-de-solidao/

quinta-feira, 30 de abril de 2015

A mulher que matou os peixes - Clarice Lispector

Wandercy de Carvalho*

Uma nova edição do livro para crianças escrito por Clarice Lispector está disponível no mercado: A mulher que matou os peixes.  Com esse título, a Editora Rocco apresenta Clarice passeando pelo universo infantil, com uma habilidade parecida àquela de nossas avós que nos divertiam desfiando numerosas histórias em noite de lua cheia, no pátio da casa.  
Em A mulher que matou os peixes, Clarice tece uma rede de numerosos acontecimentos (sempre com animais), cuja finalidade principal é desculpar-se pelo descuido por ter deixado morrer de fome “dois peixinhos vermelhos dentro do aquário”.  Segundo a narradora, seu “crime” ocorreu em função de suas numerosas atividades.  E, assim como nossa mãe esquece uma panela no fogo, ela também esqueceu algo: não lembrou de alimentar os peixinhos que estavam, lamentavelmente, sob seus cuidados!
Desse modo, enquanto o filho da narradora está viajando, os peixinhos morrem.  Em razão disso, surge o motivo de ela sentar-se diante da máquina de escrever para declarar a sua mea culpa.  A qual resulta numa comovente narrativa que deve ser apresentada não só às crianças, mas também a todos aqueles que ainda possuem sensibilidade na alma, capazes de apreciar uma narrativa que, embora simples, é repleta de muitos elementos que ainda povoam o nosso mundo infantil.
Além dos numerosos episódios com diferentes animais domésticos (e outros nem tão domésticos assim), o livro traz muitas ilustrações coloridas, elaboradas por A. Soares, as quais ajudam a visualização das numerosas personagens que povoam o livro.  Na capa, existem dois peixinhos borbulhando em um aquário em cima da mesa (de estar?), parece que sonham com o mundo “lá fora”, o qual eles observam através de uma sugestiva janela desenhada com grades.
Enfim, A mulher que matou os peixes pode ternar-se uma agradável leitura recomendada a toda e qualquer idade.

*Professor do Colegiado de Letras da Universidade Federal do Tocantins - Campus de Araguaína

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Terra entre Rios

Antonio Carlos Ribeiro

O  livro  Terra  entre rios (Palmas: EDUFT, 2015), do Professor Walace  Rodrigues,  do  Colegiado  de  Letras  da Universidade Federal do Tocantins  (UFT),  Campus  de  Araguaína,   lançada pela Editora da UFT no  bloco  IV/Reitoria,  Campus de Palmas, em evento promovido pela  Pró-Reitoria  de  Pesquisa (Propesq), durante o Congresso dos Movimentos  Sociais  e Feira de Livros da Região Norte.

A obra de Walace Rodrigues começa com a capa e as ilustrações, de sua própria lavra, com a dedicatória simpática “a todos os tocantinenses, gente forte, gente de ribeirão, meio goiana, meio mineira, meio nordestina, meio amazônica, mas inteira na alma”.

O prefácio cumpre seu papel de apresentar essa coletânea de poesias, mapeando sua origem, dando detalhes da qualidade textual, explicando as razões do estilo, as menções ao povo tocantinense – dos que aqui já estavam aos que chegaram para viver, trabalhar, estudar e dar sua contribuição na educação – sem esquecer os mestres múltiplos e fontais em que o autor sacia suas sedes, para devolver saberes poeticamente elaborados, marcados por terras vermelhas e muitas águas.

Os temas variam e pululam nas 66 poesias de suas páginas. Começa com os mestres como Cartola, Oiticica, García Lorca, Cora Coralina, Caetano, Adélia, Drummond, Ledo Ivo, Van Gogh e a alma azulada do Bispo do Rosário. Com total liberdade para deixar ao leitor a descoberta da influência a cada texto ou revelar-se, neologizando: ‘Oiticicar’, ‘Cora, a Coralina’, e ‘Vangoghiando’. Em Adélia, diz ter visto que ‘vida de mulher é coisa doida e santa’.

Na homenagem aos tocantinenses, devaneia-se na primavera com bebida, comida, ‘pouquidão’, carinho e clareza. Lembra os rios violentamente fortes, a quem diz dever suas poesias e declara-se em ‘Terra entre Rios’.
Mergulhar num mar de terra vermelha.
Chuva forte, rio cheio.
Durmo em rede em penso em nós.
Ararinhas sobrevoam minha vida.
 Meu coração se encontra aqui e lá.
Lua, noite, estrelas e mais estrelas.
Céu aberto e cantos longínquos de indígenas.
Nesta terra entre rios encontrei minha alma.

Sente-se afetado por ‘saudade’, ‘Lutas’, ‘Visita dos anjos’, ‘Na Lagoa santa’, ‘Mundão doido’, ‘Juntos’, ‘Casa rosa’, ‘Imagens da loucura’, ‘Afetação’, ‘Passado de quimeras’, ‘Celestial’, ‘Talvez’, ‘Vou ficar famoso...’, ‘Invejosos quintanescos’, ‘Aprender’, ‘Sonhos’.

Em ‘Lugares de Poesia’ traz poesias sobre a poesia, destacando a suavidade, a definição, o poeta, a literatura, o livro torto, a língua portuguesa, o riso, a poesia como literatura de imagens, a neblina, a palavra (concreta) e a poesia mineira. Na profecia, lembra o Bispo do Rosário e Santa Teresa d’Ávila, os sertanejos e mergulha nos Céus, experimentando o Mysterium Tremendum ao chorar os pecados e compreender a miséria humana, e o Mysterium Fascinosum, com os brilhos de luar e dourados do sol, recebidos de presente.

A última sequência é dedicada à memória do professor Cleides Antônio Amorim, da dor da perda à incompreensão!


terça-feira, 11 de novembro de 2014

Quarto de Despejo: diário de uma favelada

Lianja Soares Aquino

Sentada em minha sala confortável, idealizada para os meus estudos de mestrado, li Quarto de despejo: diário de uma favelada. Ao lado do livro a caneca de chá para aquecer o corpo e a música calma foi pano de fundo dessa experiência literária. Diferente de Carolina Maria de Jesus, autora e protagonista de Quarto de despejo.



O livro, publicado em 1960, trata-se de um diário escrito entre os anos de 1955 e 1960 por uma mulher negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que catava papéis para sobreviver à fome. Diferente da atmosfera narrada acima, a autora do livro, não foi prestigiada com uma sala confortável para escrever o seu diário e tampouco havia uma caneca de chá quente aquecendo-a do frio. Ao contrário, a fome, o frio e o cansaço eram companheiros em suas escritas e mesmo diante de todas as dificuldades o fazia por um ideal: mostrar ao mundo, através da escrita, as condições dos moradores da favela de Canindé, São Paulo, que viviam a margem da sociedade, esquecidos e famintos de políticas publicas que os arrancassem da miséria. “... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” (p.24)
As intrigas entre os moradores, os vícios, as mortes prematuras das crianças que sofriam maus tratos de pais alcoólatras, os políticos que visitam a favela em períodos de campanha com promessas de melhorias para a comunidade, as doenças advindas da falta de saneamento básico, as comidas recolhidas nos latões de lixo pelos moradores da favela, o racionamento de energia e de água, são denuncias sociais retratadas no livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, que carrega em seu título uma metáfora sobre o que a autora e protagonista considera ser a favela: o quintal de São Paulo. 

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de citim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Sou reboalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou se queima ou se joga no lixo.” (p.31-32) 

Com cadernos achados na lixeira, Carolina vai desenhando o seu mundo para que todos vejam. Através da literatura, Carolina vai sensibilizando os leitores, chamando atenção para aqueles que como ela, passam fome, e que como última alternativa trocam o pão por uma dose de pinga na esperança de aliviar a dor de pertencer a um espaço degradante e esquecido pelos políticos. 

Nesta linha de pensamento, o contraponto dos espaços dos sujeitos revelados neste texto deixa transparecer o abismo entre a leitora e a escritora, ao mesmo tempo em que é estabelecida a fronteira, definida por Bhabha, que os aproxima. Embora fique patente a distância no jeito de viver de cada uma, a aproximação é permitida sendo patrocinada pelas manifestações literárias, quando a escritora no seu Quarto de Despejo provoca a leitora em sua zona de conforto, que absorve as mensagens com a naturalidade própria de quem traduz em leveza a dureza das palavras daquela mulher: negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que fala da vida de seu cotidiano e acena com projetos políticos efetivos feitos de preferência por alguém que já tenha passado fome por acreditar que esse saberia definir as melhores propostas para o próximo e para as crianças. 

O cenário da favela revela o quadro social compartilhado com a protagonista e leva à constatação de que a força literária quando brota da mente ou coração de uma leitora de seu próprio mundo, materializa-se numa palavra escrita singular, sensibilizando seus leitores. 

O Quarto de despejo: diário de uma favelada provocou esta leitora a escrever este texto e colocar outros mais em “incubação” tais como: feminismo, discriminação racial, religiosidade e suicídio. 

E a fronteira deixa duas mulheres, cada uma de um lado, frente às dores e os sonhos expressos pela protagonista, permitindo que ela cruzasse essa linha, tocando a emoção da leitora com a singeleza dos registros em seu diário escrito no Quarto de Despejo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Resenha de livro: Diversidade Cultural e Ensino de Língua Estrangeira

DOCES BÁRBAROS: REFLETINDO SOBRE ALTERIDADE, LÍNGUA E CULTURA

Valéria da Silva MEDEIROS

     Em 23 de janeiro de 2013, entre 3000 e 5000 pessoas marcharam, em Atenas, contra o racismo e o aumento da violência xenófoba na Grécia. A manifestação foi convocada na sequência da morte de um imigrante paquistanês, esfaqueado por dois homens, nos subúrbios da capital, quando seguia de moto para o trabalho na manhã do dia 20. Dois gregos, de 25 e 29 anos, foram detidos pela polícia que, para além-armas brancas e munições, encontrou inúmeros panfletos do partido de extrema-direita radical “Aurora Dourada” na casa de um dos suspeitos.



     A Grécia é a porta de entrada para mais de 80% dos imigrantes ilegais que chegam anualmente à União Europeia. Os ultranacionalistas do “Aurora Dourada”, que defendem a expulsão dos imigrantes ilegais, alcançaram 7% dos votos nas últimas eleições e entraram pela primeira vez no parlamento. As últimas sondagens colocam o partido como terceira força política grega com mais de 10% das intenções de voto.

   Por um lado, o episódio vem somar a muitos outros nos últimos anos, envolvendo repúdio a imigrantes em uma Europa cada vez mais abalada pela crise econômica mundial, e as reações aos pedidos de ajuda dos países pertencentes ao grupo conhecido como PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) ao Fundo Monetário Internacional. Por outro, evoca a imagem de hordas de estrangeiros (fugindo da miséria e em busca de segurança econômica) pressionando as fronteiras de países do Velho Mundo, usando o termo renascentista, e corrompendo sua civilização – tal quais os povos bárbaros destruindo o Império Romano no século V.

   Mas que nova ameaça é essa que se espelha em imagens difundidas a partir do século V? Que bárbaro é esse, ou melhor, bárbaro para quem – quem é o eu e quem é o outro no encontro entre culturas?

   Edward Gibbon, no célebre Declínio e queda do Império Romano publicado em 1952, descreve a fúria dos hunos e a ameaça à liberdade e à segurança que as chamadas Invasões Bárbaras representaram até a historiografia mais recente. Estes povos viriam a ser amalgamados na imagem de Átila, uma lenda em vida cujos adversários temiam a ponto de render-se sem combater, responsável por trazer a selvageria e a infelicidade às portas do civilizado mundo antigo (em enorme parte romano ou romanizado): 

   No desastroso período da queda do Império Romano, que pode ser justificadamente datada do reinado de Valente, a felicidade e a segurança de cada indivíduo era atacada, e as artes e obras de séculos rudemente desfiguradas pelos bárbaros da Cítia e da Germânia. A invasão dos hunos impeliu, nas províncias do Oriente, a nação gótica, que em menos de quarenta anos avançou do Danúbio ao Atlântico e abriu caminho, pelo sucesso de suas armas, às invasões de tantas tribos hostis, mais selvagens do que ela própria (GIBBON, 2005, p.446-7).

   Um olhar sobre os diversos campos disciplinares das ciências humanas, sociais e naturais revela, com mais ênfase desde os anos 70, a disseminação de transformações que se situam, sobretudo nos pressupostos epistemológicos que orientam a produção do conhecimento nestas áreas.

   Em certos casos, as mudanças mobilizaram comunidades científicas que levantaram a bandeira de uma revolução paradigmática e demandaram uma revisão de seus próprios fundamentos. Esta crise pôde ser compartilhada de modo exemplar no campo da história e se manifestava, antes de tudo, no questionamento de pressupostos positivistas que legitimavam a produção científica do historiador. Com a sua tarefa, vinculava-se, muito claramente, a demanda de contar o que efetivamente ocorreu. Em outras palavras, essa tarefa – traduzida em sua visão mais famosa por Leopold Von Ranke no século XIX – obedecia aos postulados privilegiados por uma comunidade coesa em torno de certos princípios básicos, entre eles, a convicção da existência de uma realidade anterior e exterior à observação do historiador, cujo ofício se expressava na transformação de dados empíricos em escrita.

   Subjacente a este tipo de postura encontrava-se o modelo dicotômico que localiza em esferas opostas o historiador e o objeto de sua investigação. Esse observador de primeira ordem encontra a sua tradução modelar, como vimos no cientista-detetive empenhado no desvendamento de enigmas, um processo que lhe permita penetrar na suposta essência das coisas.

    Quando Jacques Le Goff e Pierre Nora publicaram em 1974 Faire de l’histoire, em três volumes, a coletânea - de autoria de um grupo de historiadores que convergiam em seus questionamentos de uma história positivista – foi recebida como manifesto-programa para uma nova orientação da história. O conjunto da proposta acentuava, respectivamente, novos objetos, novas abordagens, novos métodos.

   De modo geral, o problema poderia ser colocado nos termos da perda da convicção e do desaparecimento deste modelo de História do campo de inquietações, tanto dos chamados “novos historiadores”, quanto dos pensadores contemporâneos em geral. Neste horizonte de novas perspectivas e expectativas alteradas, emerge igualmente ao longo das últimas décadas, a questão da sobrevivência de um modelo historiográfico em sintonia com pressupostos epistemológicos questionadores. O espaço da historiografia tradicional, hoje entendida como suposta correspondência ao real, vem sendo ocupado por perspectivas motivadas pelas implausibilidades desta escrita historiográfica convencional. Trata-se, segundo Heidrun Krieger Olinto, em “Como falar de histórias (de literatura) hoje?”, de um novo espaço ocupado por noções de “histórias-problema” que, questionando a permanência da herança anterior, seus usos e projetos, desobrigam-se da pretensão teleológica expressa em conceitos como causalidade, linearidade e continuidade progressiva, por exemplo.

   Neste sentido, estas novas formas de escrita e os seus conteúdos privilegiados atestariam estas hipóteses e também “as expectativas alteradas de seus leitores, ao firmarem novos pactos e novos termos baseados, por assim dizer, na minimização ou eliminação de cláusulas incontornáveis em pautas antigas” (OLINTO, 2001, p.115). Elas se caracterizam como tentativas de reavaliação de modos específicos da compreensão, da função e das formas de representação diante de convicções atualmente indefensáveis, como a forma narrativa de sua conformação anterior e sua premissa tácita de estruturação da ação de personagens em uma sequência lógica, linear e progressiva. Estes tipos de experimentos historiográficos traduzem, de modo enfático, as reflexões epistemológicas, teóricas e metodológicas, que têm mobilizado teóricos e historiadores da literatura desde a década de 70.

   Nesta perspectiva, as invasões bárbaras não devem ser entendidas como grandes deslocamentos em massa de populações para destruir o Império Romano que caiu, de fato, por si só, corroído por contradições internas (VEYNE, 2009). Não nos cabe aqui aprofundar estas contradições, mas lançar alguma luz sobre as imagens criadas pelo fim de um mundo que deixa espaços, que poderão ser preenchidos por outros povos, guiados pela Nova História.

   Tomemos como exemplo, dentre as diversas tribos que avançaram sobre o Império Romano do Ocidente, intermitentemente, por mais de dois séculos, os vândalos. Estes não foram mais ou menos violentos ou destruidores do que os demais povos bárbaros. Eram cristãos arianos que perseguiram implacavelmente os católicos quando dominaram a África romana e, por isso, tiveram seu nome associado pelos intelectuais da Igreja Católica a um comportamento violentamente desprezível e à destruição de uma cultura ou bem alheio em retaliação. Mas foi apenas no século XVIII, mais precisamente em 1794, que o abade Gregório usa o termo “vandalismo” para repudiar os danos causados pelos revolucionários franceses ao patrimônio que pertencia, de fato, ao povo francês (LOGEAY, s/d., p. 12-13). Apesar de os vândalos respeitarem as tradições romanas, sua cultura tornou-se sinônimo, e deu nome aos atos de depredação contra bens públicos.

   Mas se no século V, o Império Romano perde suas províncias ocidentais, onde os bárbaros delimitam reinos; sua continuação, reduzida à sua metade oriental, é assegurada pela civilização bizantina. O que permanece (ainda que transformada gradativamente pela passagem do tempo) é a cultura ática, pois, em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo do meio milênio de aculturação; desde sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos helenizada que outras cidades da Etrúria (VEYNE, 2009, p.12-13).

   Foi Homero quem utilizou repetidamente na Ilíada a palavra barbarófono, àquele que fala como um bárbaro – mais especificamente os aliados dos troianos que falavam grego incorretamente, corrompendo a língua.

   As Guerras Médicas (conflitos bélicos entre os antigos gregos e o Império Persa durante o século V A.C.) tiveram pelo menos três importantes consequências: Atenas emerge como cidade grega hegemônica, a expressão “bárbaro” deixa de ser uma generalização e passa a identificar um povo específico (os persas) e cria-se a mentalidade de divisão do mundo entre Oriente e Ocidente. Como os persas dominavam regiões do Oriente, os gregos associaram a região aos bárbaros e o Ocidente à civilização, um conceito que ainda persiste mesmo que de forma subliminar.

   Segundo Anne Bernet, no artigo intitulado “Bárbaro era quem não falava grego” (s/d), apesar de habitantes de cidades-estado rivais, os gregos antigos eram conscientes de que para além da língua comum compartilhavam uma religião, um conjunto de valores – a forma como concebiam o universo, a política e a cidadania. Livre e civilizado, o modelo grego não integrava o estrangeiro. Não se tratava da xenofobia em sua feição atual, mas a ideia de uma superioridade cultural que não permitia a assimilação do diferente – mas que também não significava ignorá-lo. O xenos, grego de outra cidade, deveria ser respeitado, acolhido e honrado – uma vez que protegidos por Zeus Xenos e Atena Xênia – porém seus valores e cultura não deveriam ser incorporados. O não-heleno, este não-grego que falava outra língua, ainda que não pudesse ser compreendido, continuava sem identidade e insignificante.

   A experiência da alteridade e o encontro entre culturas mobilizam esforços de diferentes áreas do conhecimento para compreendê-lo, especialmente no mundo globalizado. Passemos então, do breve percurso histórico desse outro que assume diferentes faces e nomes durante a história do Ocidente - mas sempre produzindo sensações de estranhamento e encantamento - à dimensão que foi critério, como vimos, para o estabelecimento de uma linha bem demarcada entre o eu e o outro na Antiguidade Clássica: a língua.

   No livro há ainda artigos de Miliane Moreira Cardoso VIEIRA, Amber Margaret JENNINGS, Michol Malia MILLER.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Resenha de livro: Em defesa de uma opinião pública democrática

Por uma opinião pública democrática no Brasil
O sistema de comunicações de massas, privatizado, altamente concentrado e oligopolizado, não serve à democracia do país e precisa ser regulado

Ana Paola Amorim, Juarez Guimarães e Venício A. de Lima

O livro "Em defesa de uma opinião pública democrática: Conceitos, entraves e desafios", Editora Paulus, 2014 (Coleção Temas de Comunicação), trata da maioria dos brasileiros nos últimos anos, sem desertar de suas convicções democráticas, mas em razão mesmo delas, já construíram amplamente um diagnóstico crítico do modo de funcionamento do atual sistema político no Brasil e anseiam por reformas políticas. Há muitas evidências de que já está se firmando em um número cada vez maior de brasileiros a consciência de que também o sistema de comunicações de massas, privatizado, altamente concentrado e oligopolizado, não serve à democracia do país e precisa ser regulado a partir de princípios republicanos e pluralistas.



Este livro, para o qual convergem os saberes, as reflexões e as pesquisas de filósofos, cientistas políticos e um conjunto de intelectuais com larga interlocução acadêmica e pública na área de comunicação, pretende contribuir para a formação desta nova consciência e desta nova linguagem em favor de uma opinião pública democrática no país. Como tal, se insere em um conjunto de obras recentes que, sob o prisma de uma convergência entre várias áreas de conhecimento, têm elaborado sobre o desafio da liberdade de expressão nas democracias contemporâneas.

A primeira entrevista, conduzida sob a forma de um diálogo com dois filósofos que frequentam a vanguarda das tradições nacionais e internacionais da cultura do republicanismo democrático, Newton Bignotto e Helton Adverse, pretende enfrentar os desafios intelectuais do uso contemporâneo desta linguagem para se travar a luta pública pela democratização das comunicações no país.

A construção de uma matriz brasileira do republicanismo democrático, como linguagem pública, ao mesmo tempo erudita e popular, é decisiva para quem luta pela liberdade de expressão por três razões.

Em primeiro lugar, porque esta tradição traz em sua identidade de formação e desenvolvimento um conceito forte e polarizador de liberdade, fundando a autonomia do indivíduo na própria ideia da democracia e da soberania popular. Uma campanha pela liberdade de expressão fracassará se não tiver em seu centro um princípio soberano de liberdade, a partir do qual não apenas possa refutar a censura do Estado, mas argumentar em favor das leis democráticas que a possam garantir, que possa defender o pluralismo das vozes sociais e ao mesmo tempo denunciar a censura que também se faz nas grandes empresas privadas de comunicação que hoje são dominantes no Brasil.

Em segundo lugar, precisamos de uma teoria, de uma linguagem e de conceitos que não separem comunicação de política ou que simplesmente as relacionem a partir de um princípio de interdisciplinaridade. Sem direito à voz pública – o direito de falar e ser ouvido – não se forma o cidadão livre. Sem opinião pública democrática o princípio da soberania popular não pode se estabelecer. A política depende sempre da formação do juízo e da opinião pública, mesmo quando mobiliza interesses ou até quando usa da coerção, legítima ou não. É preciso superar de vez aquelas pragmáticas políticas que desvalorizam ou marginalizam o valor central de uma opinião pública democrática, onde se formam e se transformam os valores e a cultura de uma sociedade.

Uma terceira razão é que precisamos inteiramente de uma linguagem política crítica e alternativa à linguagem política opressora do neoliberalismo, que identifica liberdade de expressão à lógica do “mercado de idéias”, que sacraliza a forma mercantil e demoniza mesmo as leis democráticas e pluralistas, para vincular a liberdade de expressão aos poderes incondicionados das grandes empresas de mídia.

A formação de uma matriz republicana permite, além de fazer esta disputa democrática com o neoliberalismo, dialogar com as tradições do socialismo democrático. Isto é, firmar um valor de esquerda, com toda a sua expressão nas classes trabalhadoras e populares, sem se confundir com as culturas autocráticas do socialismo, ontem dominantes e que eram, como se sabe, inimigas da liberdade de expressão. Possibilita, além disso, estabelecer um diálogo fértil, sem absorver os limites intrínsecos, das contribuições liberais democráticas ou cívicas que se opõem aos argumentos neoliberais a partir mesmo de dentro do pluralismo da tradição liberal em suas dimensões mais progressistas mas hoje fortemente minoritárias.

A segunda entrevista é um diálogo reflexivo já na área da Ciência Política, com Leonardo Avritzer, um intelectual brasileiro que exerce uma importante liderança acadêmica internacional na área dos estudos sobre democracia participativa, tendo sido nas últimas décadas uma das principais referências na crítica brasileira às chamadas culturas do “elitismo democrático”. Isto é, aquelas correntes típicas da ortodoxia da ciência política que concebem como inescapável, nas sociedades modernas, o governo das elites e a impossibilidade de uma participação cidadã informada e democrática.

A entrevista é importante também por três razões. Em primeiro lugar, porque há um diagnóstico hoje de uma nítida desvinculação entre as formas de participação democrática dos brasileiros que vieram se consolidando nas últimas décadas e o grau de democratização da comunicação de massas do país. Além disso, é certo que a luta dos brasileiros pela liberdade de expressão deve convergir e interagir com os seus exercícios de cidadania ativa e pela reforma política se quiser fugir de uma dinâmica isolada e corporativa.

Uma terceira razão consulta o diálogo necessário e enriquecedor entre as tradições e matrizes do republicanismo democrático e as chamadas culturas da democracia deliberativa, que se centralizam no conceito de “esfera pública”, desenvolvido na Modernidade por Hannah Arendt e atualizado em certa direção por Jurgen Habermas pode residir um ganho inestimável para as duas tradições que enfrentam, de um ponto de vista crítico, as razões fortes e midiáticas do neoliberalismo.

Concebido como uma cultura, uma política e uma linguagem em formação nos tempos longos da história brasileira, o republicanismo serve também para pesquisar, refletir e atualizar uma história dos impasses na formação de uma opinião pública democrática no país. Se na maior parte do tempo, tivemos uma república sem o princípio da soberania popular, isto é, sem democracia, hoje temos no Brasil um princípio democrático que está travado, em inúmeras dimensões estruturantes, pela formação antirrepublicana do Estado brasileiro. Isto é, questões chaves como a injusta e centenária concentração da propriedade agrária, a corrupção sistêmica, a estrutura tributária regressiva, um aparato de segurança anticidadã e antidireitos humanos, frequentam hoje ostensivamente a democracia brasileira. Não há como enfrentá-las sem entendê-las como impasses estruturais e históricos do longo processo de republicanização do país, isto é, da constituição de uma sociedade democrática onde os cidadãos e cidadãs tenham, de fato, direitos e deveres simétricos.

A não constituição de uma opinião pública democrática é hoje um destes impasses, central porque afeta estruturalmente a formação da legitimidade democrática em todas as áreas onde se requer transformações históricas decisivas.

A segunda parte do livro procura cobrir as origens deste impasse histórico desde a chamada revolução de 1930 até os dias de hoje. A contextualização de uma matriz republicana exige o trabalho da história em um sentido forte, isto é, exige pensar aquelas conjunturas decisivas em que os fundamentos de legitimação do Estado passaram por transformações decisivas.

O que esta pesquisa histórica já revela, através dos ensaios que compõem esta segunda parte, é que há uma continuidade de leis e de iniciativas do Estado em favor de um desenvolvimento incondicionado de um sistema privatista, concentrado e fortemente ancorado na reprodução de padrões conservadores e antipopulares da política brasileira que relega ao segundo plano a consolidação de um sistema público democrático de comunicação.

A reprodução desses padrões conservadores e antipopulares se expressa inequivocamente na posição editorial e de colunistas dos principais jornais brasileiros, desde a República Velha até os nossos dias.

Essas revelações são importantes, em primeiro lugar, para fugir de uma naturalização desta história, isto é, escolhas decisivas em momentos históricos decisivos se impuseram, moldando um perfil singular para a estrutura dos meios de comunicação de massa no Brasil. Além disso, demonstra o quando é falseada aquela narrativa que erige os poderes econômicos privados em favor da liberdade de expressão contra as pulsões repressoras e censórias do Estado. Na verdade, foram nos momentos mais autocráticos do Estado brasileiro que mais cresceram e se criaram estímulos para o crescimentos dos poderes midiáticos mercantis.

Além disso, esta afirmação de uma continuidade antirrepublicana e antidemocrática no campo da estrutura de comunicação de massas exige pensar, nos moldes de certa tradição de pesquisa histórica das políticas públicas, o efeito cumulativo das trajetórias, isto é, como certas decisões tomadas em certos períodos acabam por estruturar desenvolvimentos futuros, condicionando inclusive a prática dos atores envolvidos. No caso das comunicações, há inclusive o chamado efeito do “encarceramento da trajetória”: isto é, a partir do poder acumulado, os grandes empresários midiáticos passam a pressionar e deter um importante poder de chantagem sobre os atores políticos, condicionando-os e até constrangendo-os a votar leis e praticar iniciativas que beneficiam ainda mais os interesses empresariais midiáticos.

Como a praticar um princípio da esperança, de que toda crítica precisa de uma nova síntese, de abertura de sentidos e de possibilidade de transformação, a terceira parte do livro procura pensar experiências recentes na América Latina bem como o novo Marco Civil da internet, recém-aprovado no Congresso Nacional e que passa a compor uma inovação saudada internacionalmente como precursora e paradigmática.

Em suas razões, argumentos, pesquisas e polêmicas, este livro se propõe assim a enriquecer o entendimento de que lutar pela liberdade de expressão é já, em si mesmo, uma expressão da liberdade.

Transcrito de http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Por-uma-opiniao-publica-democratica-no-Brasil/12/31853

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

(Des) Aprisionamentos, de Janete Santos

Wandecy de Carvalho

Com este título, (Des) Aprisionamentos, a editora Scortecci apresenta Janete Santos passeando em outro universo, diferente daquele da sala de aula, onde a Drª Janete desenvolve pesquisa e ensino de língua materna (UFT, campus de Araguaína). Nesse mundo das letras existem seres (personagens típicos) que só ela conhece bem, por isso imprime no papel as imagens vistas ou idealizadas. No outro mundo de Janete (não deveria ser esse o título do livro?), o leitor vai encontrá-la narrando diferentes episódios da vida cotidiana, situações estas possíveis de serem vividas ou observadas nos mais diferentes centros urbanos.  E o mais importante é perceber que esses episódios são expostos a partir de uma cuidadosa elaboração artística, ocasião em que sobressai o trato com a linguagem. Em todos os textos existe um repertório de palavras selecionadas com rigoroso critério e talento.  Esses fatos fazem com que os textos fiquem bem elaborados, expondo, assim, a eficiente competência linguística da autora, e o rigor que a língua padrão exige.



O livro (DesAprisionamentos, além de um Prefácio escrito por Eunice R. Henriques, e uma Apresentação de José Francisco da Silva Concesso, está dividido em duas partes:

Na primeira, estão as crônicas, e elas foram expostas por uma narradora que, ao invés de sair de casa com uma máquina fotográfica, parece que sai com lápis e papel na mão, pronta para registrar os fatos que vive ou apenas observa.  O certo é que nada passa despercebido aos olhos dessa caçadora de fatos do cotidiano; de posse deles, ela transforma palavras em imagens para que o leitor possa vê-las também. Dentre os episódios “capturados”, pode estar um assalto, o desentendimento entre o caixa e sua cliente, podem ser digressões sobre o dia das mães, o dia dos namorados, ou sobre o “Ato falho” de uma mulher em uma loja de joias, ou ainda da outra cliente que não resiste a tentações de consumo e acaba comprando o que não precisa.  Se a narradora está em casa, para não ficar sem ter o que fazer, ela reconta, a seu modo, a lenda do boto cor de rosa, que sai a fazer filhos em noite de lua cheia. Interessante nessa narrativa, independente do trabalho de desmitificação do objeto, é que o boto, seja por um ‘ato falho’ da narradora, seja proposital, segue classificado pelo olhar do caboclo, como peixe mesmo e não como mamífero.

Na segunda parte do livro estão os contos.  Dentre eles destaca-se aqui o “Vaticínio”, nele um narrador deprimido questiona a hipocrisia e os artifícios criados pela sociedade para que as pessoas vivam um faz de conta, diante da dura realidade da vida.  Há também “Os condenados”, surpreendente história medieval envolvendo reis cruéis e princesas violentadas.  Aqui o segredo mantido debaixo dos lenções seria a solução para todos os problemas do reino, se não fosse a truculência do chefe da guarda que manda matar a peça principal daquele jogo. Outro destaque é A campanha de Orélio que, por perceber ser falsa a ideia de unidade nacional, ele sai em conferências pelo Brasil propondo dividir o país em três grandes regiões. 

Além desses, existem ainda outros episódios que merecem destaques, mas identificá-los é uma tarefa a ser desempenhada a cada novo leitor.

Por outro lado, como nem tudo é perfeito, alguns dos textos classificados como contos poderiam ser incluídos entre as crônicas, visto que os mesmos não possuem aqueles elementos que distinguem um gênero do outro.



Por fim, vale destacar a cuidadosa capa elaborada pela poetisa e artista plástica Eliane Cristina Testa.  Aqui os (Des) Aprisionamentos se manifestam a partir das folhas que se libertam de um emaranhado de arames e se deixam levar pelo vento, para bem longe dali.

Enfim, o livro (Des) Aprisionamentos não possui contra indicações. Sendo assim, ele é capaz de propiciar boa e descontraída leitura, por isso pode ser indicado para todas as idades.

* Doutor em Letras Clássicas, Professor do Curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) - Campus Araguaína

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Resenha de livro: O amor nos tempos do cólera

O Amor nos Tempos de Cólera e o amor nos tempos da efemeridade – uma reflexão

Má Dias

Gabriel García Márquez é um escritor colombiano, fortemente acusado de ser o precursor do realismo fantástico na literatura latino-americana, bem como o responsável por popularizá-la mundo afora. Para os fãs assíduos do exercício da leitura, esse mestre não passa (e nem deve passar!) despercebido. São deles as melancólicas letras de Cem anos de solidão – letras essas que se perpetuam em outros de seus títulos, como Memória de minhas putas tristes, ou O Amor nos Tempos do Cólera–este último sendo objeto de análise deste artigo e publicado em 1985; três anos depois de ser concedido ao escritor o Prêmio Nobel de Literatura.   




Integrante de uma vasta família(possuía onze irmãos) Gabo sempre se inspirou no universo das relações pessoais – sejam familiares, conjugais ou de poder –e principalmente das relações que levamos com nosso próprio “eu com o mundo”, para compor aquelas que são umas das mais primorosas obras da literatura mundial. García Márquez explora não somente a fábula cotidiana da vivência latina como mero objeto social, mas também suas impressões e consequências carimbadas no íntimo desse povo, traduzidos em marcantes e apaixonantes personagens. Possui como premissa o seu estilo de escrita realista aliado a uma singularidade sobrenatural, sendo esta última uma vivência divinizada por um Deus que se manifesta senão como a figura do próprio homem-personagem – mentor e executor de suas próprias ações neste mundo real e fantástico – sem, necessariamente, apontar onde as barreiras do real e do místico se encontram, pois é exatamente na fronteira dessas duas categorias que a vida, pura e simples, acontece.

O enredo de O Amor nos Tempos do Cólera, inspirado na história de amor dos pais de García Márquez, traz a história de Florentino Ariza: fruto de um caso extraconjugal de sua mãe com um dos grandes nomes da Companhia Fluvial do Caribe, mas sem muitas perspectivas de vida. Florentino é detentor de um amor incondicional, inabalável, eterno (e aqui me desculpe a gama de adjetivos, mas hei de dar uma mínima noção da veracidade de seu sentimento) por Fermina Daza, filha de um comerciante rico, mas não nobre, que chega à cidade na flor da idade, acompanhada apenas de seu pai.

O amor cresce de forma quase que instantânea entre os dois: ela, totalmente pura e regida sob as regras severas do pai; ele, impetuoso e ansioso por consumar seu amor tão legitimado pela certeza. A relação dos dois é baseada numa troca de cartas, na qual Florentino se vê impulsionado a escrever e escancarar toda a sua gama de sentimentos e ternuras por quem ele acredita ser a mulher de sua vida. E assim a história acontece – ou melhor, deveria acontecer; pois, em dado momento, Fermina Daza é obrigada por seu pai a realizar uma viagem para as terras distantes de seus familiares a fim de esquecer, de uma vez por todas, o desqualificado pretendente Florentino Ariza.

Em seu retorno à cidade, o objetivo da viagem traçado pelo pai é alcançado: ao encontrar o pretendente, Fermina o enxerga com olhos que não mais correspondem ao amor; olhos que nada mais são do que piedade para com o pobre rapaz. E o sentimento que invade Florentino Ariza frente à constatação de seu infortúnio e perda deve ser familiar, senão pra todo mundo, para uma grande parcela de corações palpitantes mundo afora.

Não obstante, Florentino Ariza não se deixa abalar de todo. Mesmo com a consumação do casamento da amada com o homem mais importante da cidade, mesmo com a construção da família e da figura pública de senhora soberana que Fermina Daza apresenta em eventos sociais, o pobre homem constrói para si uma vida social e econômica de prestígio e permanece fiel a seu sentimento:

“Florentino Ariza não deixou de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados e longos, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias”.

Neste enredo de Gabo sobre a diversidade, veracidade e persistência do amor, há uma comparação eficaz, escancarada no título da obra: em tempos nos quais a cólera atacava a população de países da América Central de forma devastadora (países esses planados pela crônica escassez generalizada da América Latina),o amor nada mais era do que a própria doença. Sim, o amor nada mais era do que a cólera que os deixava abatidos e cabisbaixos, com dores de barriga ou taquicardia. A única fonte de infecção da cólera é o contato direto com dejetos–coisas que não precisamos mais e expelimos naturalmente pra fora de nosso corpo – de outras pessoas também infectadas pela doença. Pois, enquanto dejeto do amor doutra pessoa, a própria convivência perturbadora do homem para consigo não seria a única fonte dos amores contrariados, da infecção pela desilusão? A cólera é altamente contagiosa e pode matar em poucas horas se não for tratada; será o mesmo com o amor? (Ação essa legitimada por outras personagens da literatura, como, por exemplo, Werther, de Goethe). Possivelmente, sim, há tempos atrás. Mas não mais.

Esta é uma visão romântica? É uma visão utópica e dramática? É uma visão ultrajante do amor? Talvez. Mas é curioso perceber que tal sentimento tão amplo não mais se constrói como no século XIX (não chamaria de evolução esse novo caráter do sentimento, mas de sua nova forma de florescer), e que as peculiaridades envolvidas em sua execução se distanciam de forma absurda com a nossa realidade.

Não se consegue mais criar esse tipo de sentimento e nem saber se é possível sua existência perante a nossa disponibilidade dos dias atuais – diante das novas tecnologias comunicacionais ou facilidades de locomoção. Ao passo que o telégrafo foi, em certa época, de extrema necessidade para a consumação daquele amor quase impossível (Florentino Ariza se comunicava por este meio com Fermina Daza durante sua viagem de esquecimento, além das cartas), temos em nossos dias os meios de comunicação como armas letais para o amor. Isso porque nos vemos 24 horas por dia à mercê das pessoas por meios que nos parecem indispensáveis – a bolinha verde do Facebook; o status online no WhatsApp ou o SMS respondido imediatamente.

O conhecimento sobre alguém baseado em perfis e fotos, recusas e contradições geradas por gostos pessoais, compartilhamentos ou comentários que inibem uma conversa face a face, relacionamentos escancarados nas redes sociais e a falta de contato real não levam à idealização virtual, que extingue a projeção de um amor sensível?

Florentino Ariza só não morreu de desespero ou saudades, enquanto sua amada estava na tal viagem de esquecimento, porque na época já havia o telégrafo – nada mais que uma necessidade que escoa pelo ralo quando pensamos a comunicação atual. e que foi inspirada na história do pai de García Márquez, telégrafo, que construiu uma rede para se comunicar com a amada, sua mãe, que assim como Fermina Daza, foi obrigada a fazer uma “viagem de esquecimento”. Aliás, o ideário do telégrafo foi inspirado na história do pai do autor de O amor nos tempos de Cólera, que, enquanto telegrafista, construiu uma rede para se comunicar com a amada. Isso porque, assim como Fermina Daza, a mãe de Gabriel García Márquez também teve de passar por uma “viagem de esquecimento”.   No enredo, foi a distância – e a distância, se ainda possível – que tornava o amor como a cólera; o amor como algo que consome mais do que seu espírito, mais do que sua própria carne. O amor não morria de tanto esperar. Ao contrário; fortalecia-se, construía-se no imaginário e aproveita-se a cada segundo de consumação; o amor era como outra doença mortal qualquer. Ele era real. Fantástico, mas real. 

A cólera é uma doença que, hoje, não assusta mais como antes, foi domada. Terá seu equivalente subjetivo percorrido o mesmo caminho? Amores transladados, fragilizados, mal construídos… Inexistentes. Não se faz aqui uma análise crua ou denotativa do amor, mas uma reflexão, que se estende por todas as categorias que envolvem as relações interpessoais: será que perante essa efemeridade de todas as coisas, nós, indivíduos do século XXI, conseguiríamos sentir algo parecido com a veracidade de Florentino Ariza em sua intensidade, beleza e momentaneidade – sem deixar-nos levar por platonismos, mas sim por cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias de espera? Será que nosso estilo de vida –hoje pautado em vias de desapego e autoajuda, de consumo exacerbado e de fluidez – extingue a execução de determinadas sensações que, em séculos anteriores, forjaram toda a utopia e nostalgia que pautamos como ultrapassada e romanticamente chamamos de amor?

Determinadas sensações que, atualmente, só nos arrancam lágrimas dos olhos em leituras de obras tão delicada como a de Gabriel García Márquez…O próprio autor, no referido título, bate o martelo na questão: O Amor Nos Tempos de Cólera – o amor nos tempos do amor; os tempos em que se era mais possível, ingênuo e sincero a edificação de tal sentimento, diferente do amor no tempo da efemeridade, do fácil “ir e vir”, que, para nós, o torna tão longínquo e infiel.

Fica aqui o que pode ser uma reflexão – não generalizada, claro –sobre o amor ou sobre as relações interpessoais em nosso cotidiano. Mas adianto: pode ser apenas manipulação da ternura de Florentino Ariza – ou seria de Gabo? –em meu ser sensível e moderno; que me leva a escrever essas palavras e desejar ser infectado por um amor como nos tempos do cólera.

Para assistir o trailer do filme clique aqui

Transcrito de http://literatortura.com/2014/03/o-amor-nos-tempos-colera-e-o-amor-nos-tempos-da-efemeridade-uma-reflexao/