quinta-feira, 28 de maio de 2015

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Katiuscia de Sá

Um casamento fugitivo que dera origem a sete gerações da família “Buendía-Iguarán” é o ponta-pé inicial para abordagens viscerais acerca das relações humanas. Um enlace entre primos legítimos, jovens apaixonados que tinham medo de que seus filhos nascessem com um “rabo de porco”, caso mantivessem relações sexuais. Em meio a esse temor, José Arcadio Buendía rapta e casa-se com sua prima Úrsula Iguarán, dão vida a três filhos saudáveis e sem o tal “rabo de porco”.

Imagens mágicas e poéticas são traduzidas como representações da condição humana, contendo as angústias, revoltas e esperanças dos moradores da cidade fictícia de “Macondo”.
O romance fantástico-realista começa quando “as coisas não tinham nome” e segue até o período da chegada do telefone. José Arcadio Buendía atravessa pântanos, terras encantadas e perigosas para fundar sua própria cidade e ser feliz com sua recém criada família – surge fora do mapa, a mítica cidadela de “Macondo”, onde vez por outra aportavam ciganos trazendo as novidades, estranhezas inventadas por seu povo e notícias do mundo afora.

Um deles – Melquíades, ensina ao patriarca dos Buendía alguns segredos de Alquimia. Os experimentos e invenções dele ficam registrados numa língua estrangeira e dão corpo e vida a um livro velho e inacabado, que no futuro será decifrado por um dos descendentes da sétima geração da família Buendía (um filho bastardo: Aureliano Babilônia). O rapaz virá a receber “aulas” e pistas, diretamente do espectro de Melquíades, para decifrar o enigma contido no acervo. As escrituras contêm a saga de seus antepassados e um segredo profético para a própria linhagem dos Buendía.

Uma narrativa romântica e épica fascinante, caracterizada por alguns estudiosos como uma “enciclopédia do imaginário” e também como “realismo fantástico”. A trama é composta por 28 personagens semi-centrais (linhagem da família Buendía), sendo os patriarcas os principais da saga. As demais histórias giram em torno das personagens-protagonistas – José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, com tamanha importância quanto.

A maneira fenomenal de (d)escrever e(re)inventar “Macondo” e as personalidades e situações vividas pelos Buendía é o que mais chama atenção. O escritor colombiano Gabriel García Márquez presenteia leitores do mundo inteiro com o dom de sua imaginação e poder simbólico através da escrita, essa é a genialidade e valor inestimável de Cem Anos de Solidão, que foi considerado, em março de 2007, no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, como a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando atrás apenas de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.

Para penetrar nos segredos contidos em Cem Anos de Solidão, o leitor deverá compreender um pouco sobre a própria história política da Colômbia e do escritor. Gabriel García Márquez utiliza muitas histórias da sua época de infância, contadas pelo seu avô materno (Nicolás Márquez), veterano da “Guerra dos Mil Dias”. Seu avô tinha muitos relatos, fatos… memórias que alimentaram a imaginação do menino Gabriel, que muitos anos depois, ao tornar-se escritor, dissera certa vez: “todo escritor escreve sempre o mesmo livro – o livro de sua própria vida…”. O sobrenome de “Úrsula Iguarán”,  é o sobrenome da mãe de “Gabito” (apelido de García Márquez).

Segredos e fatos memoráveis da infância do escritor são descritos em Cem Anos de Solidão, histórias incríveis narradas de maneira tão sobrenatural com toques de verossimilhança, que o leitor se pega construindo visualmente cenas como borboletas amarelas seguindo os passos de um rapaz por onde quer que ele vá;  a epidemia de “perda de memória”, em decorrência da insônia coletiva que assola os moradores de “Macondo” durante muito tempo; o desaparecimento a olhos vitos de uma moça (“Remédios, a Bela”), que à frente dos seus simplesmente “ascende” aos céus devido uma experiência transcendental… e por aí vai.

O importante na obra é observar como García Márquez coloca as personagens dentro do contexto sociocultural da Colômbia, os personagens carregam pequenas críticas sobre o comportamento social ao longo da história do País latino. Esse aspecto aparece tão sutilmente mascarado pela maneira de escrever, que pouco (ou nada) se percebe. A personalidade da protagonista – a matrona “Úrsula Buendía”, uma mulher forte dos pensamentos e de força física, cuida do lar e da prole com tamanha dedicação e paciência, enquanto o marido largava-se em uma consumida “atividade febril dos nervos” em torno de seus experimentos alucinantes… A mulher da casa e as crianças esqueciam-se a cuidar da horta, cultivando a matéria-prima para o preparo dos bolinhos com os quais Úrsula gerava  a renda da família.



Comportamentos culturais bastante comuns em núcleos campesinos colombianos dão os aspectos de “realidade” dentro do épico, de modo que na vida de García Márquez, tal aspecto foi presenciado no momento em que sua família deixa a cidade de Aracataca para morar em outro lugar, devido à crise nas plantações de banana, desdobramento que afetara a economia local forçando a migração das pessoas para outras possibilidades. A migração é um fator bastante explorado no livro através das atitudes das personagens (os moradores de “Macondo” chegavam de outros lugares para se estabelecerem na cidadela em busca de melhores condições de vida, como aconteceu com a família de “Remédios”, por exemplo).

A intrigante abordagem de fatos sociais globais, ora de maneira bizarra, ora envolvidos por uma aura mágica embebida de místérios e fascínios próprios das lendas e costumes dos iíndos colombianos, gerou essa linha compreendida como “realismo fantástico”, introduzida na América Latina por Gabriel García Márquez a partir da publicação de Cem Anos de Solidão (maio de 1967).

A trajetória literária do escritor sofreu forte  influência de Metamorfose, de Franz Kafka e das Mil e Uma Noites (uma coleção de contos orientais compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI, obra clássica da literatura persa). Cem Anos de Solidão é leitura obrigatória a todo cidadão do mundo. Cheia de fascínio, magia e alusão à realidade, o livro nos remete a nossas próprias fantasias e memórias de infância.

http://www.argumento.net/cena-critica/literatura/cem-anos-de-solidao/

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