Lianja Soares Aquino*
Sentada em minha sala confortável, idealizada para os meus estudos de mestrado, li Quarto de despejo: diário de uma favelada. Ao lado do livro a caneca de chá para aquecer o corpo e a música calma foi pano de fundo dessa experiência literária. Diferente de Carolina Maria de Jesus, autora e protagonista de Quarto de despejo.
O livro, publicado em 1960, trata-se de um diário escrito entre os anos de 1955 e 1960 por uma mulher negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que catava papéis para sobreviver à fome. Diferente da atmosfera narrada acima, a autora do livro, não foi prestigiada com uma sala confortável para escrever o seu diário e tampouco havia uma caneca de chá quente aquecendo-a do frio. Ao contrário, a fome, o frio e o cansaço eram companheiros em suas escritas e mesmo diante de todas as dificuldades o fazia por um ideal: mostrar ao mundo, através da escrita, as condições dos moradores da favela de Canindé, São Paulo, que viviam a margem da sociedade, esquecidos e famintos de políticas publicas que os arrancassem da miséria. “... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” (p.24)
As intrigas entre os moradores, os vícios, as mortes prematuras das crianças que sofriam maus tratos de pais alcoólatras, os políticos que visitam a favela em períodos de campanha com promessas de melhorias para a comunidade, as doenças advindas da falta de saneamento básico, as comidas recolhidas nos latões de lixo pelos moradores da favela, o racionamento de energia e de água, são denuncias sociais retratadas no livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, que carrega em seu título uma metáfora sobre o que a autora e protagonista considera ser a favela: o quintal de São Paulo.
Quando estou na cidade tenho a impressão
que estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
seus tapetes de viludos, almofadas de citim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.
[...] Sou reboalho. Estou no quarto de
despejo, e o que está no quarto de despejo ou se queima ou se joga no lixo.
(p.31-32)
Com cadernos achados na lixeira, Carolina vai desenhando o seu mundo para que todos vejam. Através da literatura, Carolina vai sensibilizando os leitores, chamando atenção para aqueles que como ela, passam fome, e que como última alternativa trocam o pão por uma dose de pinga na esperança de aliviar a dor de pertencer a um espaço degradante e esquecido pelos políticos.
Nesta linha de pensamento, o contraponto dos espaços dos sujeitos revelados neste texto deixa transparecer o abismo entre a leitora e a escritora, ao mesmo tempo em que é estabelecida a fronteira, definida por Bhabha (Introdução in: O Local da Cultura), que os aproxima. Embora fique patente a distância no jeito de viver de cada uma, a aproximação é permitida sendo patrocinada pelas manifestações literárias, quando a escritora no seu Quarto de Despejo provoca a leitora em sua zona de conforto, que absorve as mensagens com a naturalidade própria de quem traduz em leveza a dureza das palavras daquela mulher: negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta que fala da vida de seu cotidiano e acena com projetos políticos efetivos feitos de preferência por alguém que já tenha passado fome por acreditar que esse saberia definir as melhores propostas para o próximo e para as crianças.
O cenário da favela revela o quadro social compartilhado com a protagonista e leva à constatação de que a força literária quando brota da mente ou coração de uma leitora de seu próprio mundo, materializa-se numa palavra escrita singular, sensibilizando seus leitores.
O Quarto de despejo: diário de uma favelada provocou esta leitora a escrever este texto e colocar outros mais em “incubação” tais como: feminismo, discriminação racial, religiosidade e suicídio.
E a fronteira deixa duas mulheres, cada uma de um lado, frente às dores e os sonhos expressos pela protagonista, permitindo que ela cruzasse essa linha, tocando a emoção da leitora com a singeleza dos registros em seu diário escrito no Quarto de Despejo.
*Graduada em Letras, 2011, UFT. Mestranda em Ensino de Língua e Literatura, UFT, 2014.
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