segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Resenha de livro: O amor nos tempos do cólera

O Amor nos Tempos de Cólera e o amor nos tempos da efemeridade – uma reflexão

Má Dias

Gabriel García Márquez é um escritor colombiano, fortemente acusado de ser o precursor do realismo fantástico na literatura latino-americana, bem como o responsável por popularizá-la mundo afora. Para os fãs assíduos do exercício da leitura, esse mestre não passa (e nem deve passar!) despercebido. São deles as melancólicas letras de Cem anos de solidão – letras essas que se perpetuam em outros de seus títulos, como Memória de minhas putas tristes, ou O Amor nos Tempos do Cólera–este último sendo objeto de análise deste artigo e publicado em 1985; três anos depois de ser concedido ao escritor o Prêmio Nobel de Literatura.   




Integrante de uma vasta família(possuía onze irmãos) Gabo sempre se inspirou no universo das relações pessoais – sejam familiares, conjugais ou de poder –e principalmente das relações que levamos com nosso próprio “eu com o mundo”, para compor aquelas que são umas das mais primorosas obras da literatura mundial. García Márquez explora não somente a fábula cotidiana da vivência latina como mero objeto social, mas também suas impressões e consequências carimbadas no íntimo desse povo, traduzidos em marcantes e apaixonantes personagens. Possui como premissa o seu estilo de escrita realista aliado a uma singularidade sobrenatural, sendo esta última uma vivência divinizada por um Deus que se manifesta senão como a figura do próprio homem-personagem – mentor e executor de suas próprias ações neste mundo real e fantástico – sem, necessariamente, apontar onde as barreiras do real e do místico se encontram, pois é exatamente na fronteira dessas duas categorias que a vida, pura e simples, acontece.

O enredo de O Amor nos Tempos do Cólera, inspirado na história de amor dos pais de García Márquez, traz a história de Florentino Ariza: fruto de um caso extraconjugal de sua mãe com um dos grandes nomes da Companhia Fluvial do Caribe, mas sem muitas perspectivas de vida. Florentino é detentor de um amor incondicional, inabalável, eterno (e aqui me desculpe a gama de adjetivos, mas hei de dar uma mínima noção da veracidade de seu sentimento) por Fermina Daza, filha de um comerciante rico, mas não nobre, que chega à cidade na flor da idade, acompanhada apenas de seu pai.

O amor cresce de forma quase que instantânea entre os dois: ela, totalmente pura e regida sob as regras severas do pai; ele, impetuoso e ansioso por consumar seu amor tão legitimado pela certeza. A relação dos dois é baseada numa troca de cartas, na qual Florentino se vê impulsionado a escrever e escancarar toda a sua gama de sentimentos e ternuras por quem ele acredita ser a mulher de sua vida. E assim a história acontece – ou melhor, deveria acontecer; pois, em dado momento, Fermina Daza é obrigada por seu pai a realizar uma viagem para as terras distantes de seus familiares a fim de esquecer, de uma vez por todas, o desqualificado pretendente Florentino Ariza.

Em seu retorno à cidade, o objetivo da viagem traçado pelo pai é alcançado: ao encontrar o pretendente, Fermina o enxerga com olhos que não mais correspondem ao amor; olhos que nada mais são do que piedade para com o pobre rapaz. E o sentimento que invade Florentino Ariza frente à constatação de seu infortúnio e perda deve ser familiar, senão pra todo mundo, para uma grande parcela de corações palpitantes mundo afora.

Não obstante, Florentino Ariza não se deixa abalar de todo. Mesmo com a consumação do casamento da amada com o homem mais importante da cidade, mesmo com a construção da família e da figura pública de senhora soberana que Fermina Daza apresenta em eventos sociais, o pobre homem constrói para si uma vida social e econômica de prestígio e permanece fiel a seu sentimento:

“Florentino Ariza não deixou de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados e longos, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias”.

Neste enredo de Gabo sobre a diversidade, veracidade e persistência do amor, há uma comparação eficaz, escancarada no título da obra: em tempos nos quais a cólera atacava a população de países da América Central de forma devastadora (países esses planados pela crônica escassez generalizada da América Latina),o amor nada mais era do que a própria doença. Sim, o amor nada mais era do que a cólera que os deixava abatidos e cabisbaixos, com dores de barriga ou taquicardia. A única fonte de infecção da cólera é o contato direto com dejetos–coisas que não precisamos mais e expelimos naturalmente pra fora de nosso corpo – de outras pessoas também infectadas pela doença. Pois, enquanto dejeto do amor doutra pessoa, a própria convivência perturbadora do homem para consigo não seria a única fonte dos amores contrariados, da infecção pela desilusão? A cólera é altamente contagiosa e pode matar em poucas horas se não for tratada; será o mesmo com o amor? (Ação essa legitimada por outras personagens da literatura, como, por exemplo, Werther, de Goethe). Possivelmente, sim, há tempos atrás. Mas não mais.

Esta é uma visão romântica? É uma visão utópica e dramática? É uma visão ultrajante do amor? Talvez. Mas é curioso perceber que tal sentimento tão amplo não mais se constrói como no século XIX (não chamaria de evolução esse novo caráter do sentimento, mas de sua nova forma de florescer), e que as peculiaridades envolvidas em sua execução se distanciam de forma absurda com a nossa realidade.

Não se consegue mais criar esse tipo de sentimento e nem saber se é possível sua existência perante a nossa disponibilidade dos dias atuais – diante das novas tecnologias comunicacionais ou facilidades de locomoção. Ao passo que o telégrafo foi, em certa época, de extrema necessidade para a consumação daquele amor quase impossível (Florentino Ariza se comunicava por este meio com Fermina Daza durante sua viagem de esquecimento, além das cartas), temos em nossos dias os meios de comunicação como armas letais para o amor. Isso porque nos vemos 24 horas por dia à mercê das pessoas por meios que nos parecem indispensáveis – a bolinha verde do Facebook; o status online no WhatsApp ou o SMS respondido imediatamente.

O conhecimento sobre alguém baseado em perfis e fotos, recusas e contradições geradas por gostos pessoais, compartilhamentos ou comentários que inibem uma conversa face a face, relacionamentos escancarados nas redes sociais e a falta de contato real não levam à idealização virtual, que extingue a projeção de um amor sensível?

Florentino Ariza só não morreu de desespero ou saudades, enquanto sua amada estava na tal viagem de esquecimento, porque na época já havia o telégrafo – nada mais que uma necessidade que escoa pelo ralo quando pensamos a comunicação atual. e que foi inspirada na história do pai de García Márquez, telégrafo, que construiu uma rede para se comunicar com a amada, sua mãe, que assim como Fermina Daza, foi obrigada a fazer uma “viagem de esquecimento”. Aliás, o ideário do telégrafo foi inspirado na história do pai do autor de O amor nos tempos de Cólera, que, enquanto telegrafista, construiu uma rede para se comunicar com a amada. Isso porque, assim como Fermina Daza, a mãe de Gabriel García Márquez também teve de passar por uma “viagem de esquecimento”.   No enredo, foi a distância – e a distância, se ainda possível – que tornava o amor como a cólera; o amor como algo que consome mais do que seu espírito, mais do que sua própria carne. O amor não morria de tanto esperar. Ao contrário; fortalecia-se, construía-se no imaginário e aproveita-se a cada segundo de consumação; o amor era como outra doença mortal qualquer. Ele era real. Fantástico, mas real. 

A cólera é uma doença que, hoje, não assusta mais como antes, foi domada. Terá seu equivalente subjetivo percorrido o mesmo caminho? Amores transladados, fragilizados, mal construídos… Inexistentes. Não se faz aqui uma análise crua ou denotativa do amor, mas uma reflexão, que se estende por todas as categorias que envolvem as relações interpessoais: será que perante essa efemeridade de todas as coisas, nós, indivíduos do século XXI, conseguiríamos sentir algo parecido com a veracidade de Florentino Ariza em sua intensidade, beleza e momentaneidade – sem deixar-nos levar por platonismos, mas sim por cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias de espera? Será que nosso estilo de vida –hoje pautado em vias de desapego e autoajuda, de consumo exacerbado e de fluidez – extingue a execução de determinadas sensações que, em séculos anteriores, forjaram toda a utopia e nostalgia que pautamos como ultrapassada e romanticamente chamamos de amor?

Determinadas sensações que, atualmente, só nos arrancam lágrimas dos olhos em leituras de obras tão delicada como a de Gabriel García Márquez…O próprio autor, no referido título, bate o martelo na questão: O Amor Nos Tempos de Cólera – o amor nos tempos do amor; os tempos em que se era mais possível, ingênuo e sincero a edificação de tal sentimento, diferente do amor no tempo da efemeridade, do fácil “ir e vir”, que, para nós, o torna tão longínquo e infiel.

Fica aqui o que pode ser uma reflexão – não generalizada, claro –sobre o amor ou sobre as relações interpessoais em nosso cotidiano. Mas adianto: pode ser apenas manipulação da ternura de Florentino Ariza – ou seria de Gabo? –em meu ser sensível e moderno; que me leva a escrever essas palavras e desejar ser infectado por um amor como nos tempos do cólera.

Para assistir o trailer do filme clique aqui

Transcrito de http://literatortura.com/2014/03/o-amor-nos-tempos-colera-e-o-amor-nos-tempos-da-efemeridade-uma-reflexao/

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