sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Resenha de livro: Diversidade Cultural e Ensino de Língua Estrangeira

DOCES BÁRBAROS: REFLETINDO SOBRE ALTERIDADE, LÍNGUA E CULTURA

Valéria da Silva MEDEIROS

     Em 23 de janeiro de 2013, entre 3000 e 5000 pessoas marcharam, em Atenas, contra o racismo e o aumento da violência xenófoba na Grécia. A manifestação foi convocada na sequência da morte de um imigrante paquistanês, esfaqueado por dois homens, nos subúrbios da capital, quando seguia de moto para o trabalho na manhã do dia 20. Dois gregos, de 25 e 29 anos, foram detidos pela polícia que, para além-armas brancas e munições, encontrou inúmeros panfletos do partido de extrema-direita radical “Aurora Dourada” na casa de um dos suspeitos.



     A Grécia é a porta de entrada para mais de 80% dos imigrantes ilegais que chegam anualmente à União Europeia. Os ultranacionalistas do “Aurora Dourada”, que defendem a expulsão dos imigrantes ilegais, alcançaram 7% dos votos nas últimas eleições e entraram pela primeira vez no parlamento. As últimas sondagens colocam o partido como terceira força política grega com mais de 10% das intenções de voto.

   Por um lado, o episódio vem somar a muitos outros nos últimos anos, envolvendo repúdio a imigrantes em uma Europa cada vez mais abalada pela crise econômica mundial, e as reações aos pedidos de ajuda dos países pertencentes ao grupo conhecido como PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) ao Fundo Monetário Internacional. Por outro, evoca a imagem de hordas de estrangeiros (fugindo da miséria e em busca de segurança econômica) pressionando as fronteiras de países do Velho Mundo, usando o termo renascentista, e corrompendo sua civilização – tal quais os povos bárbaros destruindo o Império Romano no século V.

   Mas que nova ameaça é essa que se espelha em imagens difundidas a partir do século V? Que bárbaro é esse, ou melhor, bárbaro para quem – quem é o eu e quem é o outro no encontro entre culturas?

   Edward Gibbon, no célebre Declínio e queda do Império Romano publicado em 1952, descreve a fúria dos hunos e a ameaça à liberdade e à segurança que as chamadas Invasões Bárbaras representaram até a historiografia mais recente. Estes povos viriam a ser amalgamados na imagem de Átila, uma lenda em vida cujos adversários temiam a ponto de render-se sem combater, responsável por trazer a selvageria e a infelicidade às portas do civilizado mundo antigo (em enorme parte romano ou romanizado): 

   No desastroso período da queda do Império Romano, que pode ser justificadamente datada do reinado de Valente, a felicidade e a segurança de cada indivíduo era atacada, e as artes e obras de séculos rudemente desfiguradas pelos bárbaros da Cítia e da Germânia. A invasão dos hunos impeliu, nas províncias do Oriente, a nação gótica, que em menos de quarenta anos avançou do Danúbio ao Atlântico e abriu caminho, pelo sucesso de suas armas, às invasões de tantas tribos hostis, mais selvagens do que ela própria (GIBBON, 2005, p.446-7).

   Um olhar sobre os diversos campos disciplinares das ciências humanas, sociais e naturais revela, com mais ênfase desde os anos 70, a disseminação de transformações que se situam, sobretudo nos pressupostos epistemológicos que orientam a produção do conhecimento nestas áreas.

   Em certos casos, as mudanças mobilizaram comunidades científicas que levantaram a bandeira de uma revolução paradigmática e demandaram uma revisão de seus próprios fundamentos. Esta crise pôde ser compartilhada de modo exemplar no campo da história e se manifestava, antes de tudo, no questionamento de pressupostos positivistas que legitimavam a produção científica do historiador. Com a sua tarefa, vinculava-se, muito claramente, a demanda de contar o que efetivamente ocorreu. Em outras palavras, essa tarefa – traduzida em sua visão mais famosa por Leopold Von Ranke no século XIX – obedecia aos postulados privilegiados por uma comunidade coesa em torno de certos princípios básicos, entre eles, a convicção da existência de uma realidade anterior e exterior à observação do historiador, cujo ofício se expressava na transformação de dados empíricos em escrita.

   Subjacente a este tipo de postura encontrava-se o modelo dicotômico que localiza em esferas opostas o historiador e o objeto de sua investigação. Esse observador de primeira ordem encontra a sua tradução modelar, como vimos no cientista-detetive empenhado no desvendamento de enigmas, um processo que lhe permita penetrar na suposta essência das coisas.

    Quando Jacques Le Goff e Pierre Nora publicaram em 1974 Faire de l’histoire, em três volumes, a coletânea - de autoria de um grupo de historiadores que convergiam em seus questionamentos de uma história positivista – foi recebida como manifesto-programa para uma nova orientação da história. O conjunto da proposta acentuava, respectivamente, novos objetos, novas abordagens, novos métodos.

   De modo geral, o problema poderia ser colocado nos termos da perda da convicção e do desaparecimento deste modelo de História do campo de inquietações, tanto dos chamados “novos historiadores”, quanto dos pensadores contemporâneos em geral. Neste horizonte de novas perspectivas e expectativas alteradas, emerge igualmente ao longo das últimas décadas, a questão da sobrevivência de um modelo historiográfico em sintonia com pressupostos epistemológicos questionadores. O espaço da historiografia tradicional, hoje entendida como suposta correspondência ao real, vem sendo ocupado por perspectivas motivadas pelas implausibilidades desta escrita historiográfica convencional. Trata-se, segundo Heidrun Krieger Olinto, em “Como falar de histórias (de literatura) hoje?”, de um novo espaço ocupado por noções de “histórias-problema” que, questionando a permanência da herança anterior, seus usos e projetos, desobrigam-se da pretensão teleológica expressa em conceitos como causalidade, linearidade e continuidade progressiva, por exemplo.

   Neste sentido, estas novas formas de escrita e os seus conteúdos privilegiados atestariam estas hipóteses e também “as expectativas alteradas de seus leitores, ao firmarem novos pactos e novos termos baseados, por assim dizer, na minimização ou eliminação de cláusulas incontornáveis em pautas antigas” (OLINTO, 2001, p.115). Elas se caracterizam como tentativas de reavaliação de modos específicos da compreensão, da função e das formas de representação diante de convicções atualmente indefensáveis, como a forma narrativa de sua conformação anterior e sua premissa tácita de estruturação da ação de personagens em uma sequência lógica, linear e progressiva. Estes tipos de experimentos historiográficos traduzem, de modo enfático, as reflexões epistemológicas, teóricas e metodológicas, que têm mobilizado teóricos e historiadores da literatura desde a década de 70.

   Nesta perspectiva, as invasões bárbaras não devem ser entendidas como grandes deslocamentos em massa de populações para destruir o Império Romano que caiu, de fato, por si só, corroído por contradições internas (VEYNE, 2009). Não nos cabe aqui aprofundar estas contradições, mas lançar alguma luz sobre as imagens criadas pelo fim de um mundo que deixa espaços, que poderão ser preenchidos por outros povos, guiados pela Nova História.

   Tomemos como exemplo, dentre as diversas tribos que avançaram sobre o Império Romano do Ocidente, intermitentemente, por mais de dois séculos, os vândalos. Estes não foram mais ou menos violentos ou destruidores do que os demais povos bárbaros. Eram cristãos arianos que perseguiram implacavelmente os católicos quando dominaram a África romana e, por isso, tiveram seu nome associado pelos intelectuais da Igreja Católica a um comportamento violentamente desprezível e à destruição de uma cultura ou bem alheio em retaliação. Mas foi apenas no século XVIII, mais precisamente em 1794, que o abade Gregório usa o termo “vandalismo” para repudiar os danos causados pelos revolucionários franceses ao patrimônio que pertencia, de fato, ao povo francês (LOGEAY, s/d., p. 12-13). Apesar de os vândalos respeitarem as tradições romanas, sua cultura tornou-se sinônimo, e deu nome aos atos de depredação contra bens públicos.

   Mas se no século V, o Império Romano perde suas províncias ocidentais, onde os bárbaros delimitam reinos; sua continuação, reduzida à sua metade oriental, é assegurada pela civilização bizantina. O que permanece (ainda que transformada gradativamente pela passagem do tempo) é a cultura ática, pois, em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo do meio milênio de aculturação; desde sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos helenizada que outras cidades da Etrúria (VEYNE, 2009, p.12-13).

   Foi Homero quem utilizou repetidamente na Ilíada a palavra barbarófono, àquele que fala como um bárbaro – mais especificamente os aliados dos troianos que falavam grego incorretamente, corrompendo a língua.

   As Guerras Médicas (conflitos bélicos entre os antigos gregos e o Império Persa durante o século V A.C.) tiveram pelo menos três importantes consequências: Atenas emerge como cidade grega hegemônica, a expressão “bárbaro” deixa de ser uma generalização e passa a identificar um povo específico (os persas) e cria-se a mentalidade de divisão do mundo entre Oriente e Ocidente. Como os persas dominavam regiões do Oriente, os gregos associaram a região aos bárbaros e o Ocidente à civilização, um conceito que ainda persiste mesmo que de forma subliminar.

   Segundo Anne Bernet, no artigo intitulado “Bárbaro era quem não falava grego” (s/d), apesar de habitantes de cidades-estado rivais, os gregos antigos eram conscientes de que para além da língua comum compartilhavam uma religião, um conjunto de valores – a forma como concebiam o universo, a política e a cidadania. Livre e civilizado, o modelo grego não integrava o estrangeiro. Não se tratava da xenofobia em sua feição atual, mas a ideia de uma superioridade cultural que não permitia a assimilação do diferente – mas que também não significava ignorá-lo. O xenos, grego de outra cidade, deveria ser respeitado, acolhido e honrado – uma vez que protegidos por Zeus Xenos e Atena Xênia – porém seus valores e cultura não deveriam ser incorporados. O não-heleno, este não-grego que falava outra língua, ainda que não pudesse ser compreendido, continuava sem identidade e insignificante.

   A experiência da alteridade e o encontro entre culturas mobilizam esforços de diferentes áreas do conhecimento para compreendê-lo, especialmente no mundo globalizado. Passemos então, do breve percurso histórico desse outro que assume diferentes faces e nomes durante a história do Ocidente - mas sempre produzindo sensações de estranhamento e encantamento - à dimensão que foi critério, como vimos, para o estabelecimento de uma linha bem demarcada entre o eu e o outro na Antiguidade Clássica: a língua.

   No livro há ainda artigos de Miliane Moreira Cardoso VIEIRA, Amber Margaret JENNINGS, Michol Malia MILLER.

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