Resenha de CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Kellen Araújo Sousa¹
O livro Os bestializados: o
Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho, é um
clássico da historiografia brasileira no que se refere ao estudo da prática de cidadania
entre o povo brasileiro no início da República. Utilizando-se de inúmeras
fontes, que vão desde revistas e jornais da época a documentos oficiais, desde
artigos e teses a livros conceituados, o autor constrói seu trabalho de maneira
singular. O trabalho é dividido em cinco capítulos, além da conclusão, notas,
caderno de fotos e bibliografia no final. São ao todo 196 páginas muito bem
utilizadas, e que vale a pena serem lidas.
Na introdução da obra o autor,
como bom historiador que é, nos informa o recorte espaço-temporal de seu
estudo: a cidade do Rio de Janeiro no período de transição do Império para a
República até o governo de Rodrigues Alves. É também na introdução que ele
lança o questionamento que buscará responder no decorrer do livro: por que o
povo era considerado bestializado? Qual a razão de sua apatia política? Num
primeiro momento, ao ler-se o título da obra, pensa-se até que o autor tratará
da passividade do povo brasileiro, de sua inércia política. Mas seu objetivo é
outro: é “tentar entender que povo era este, qual seu imaginário político e
qual era sua prática política”.
O primeiro capítulo – O Rio de
Janeiro e a República – traz uma descrição das mudanças econômicas, sociais,
políticas e culturais por que passou o Rio de Janeiro na transição entre os
regimes monárquico e republicano, e as consequências delas advindas para a
população. Também enfatiza o impacto do novo regime no que se refere à
expectativa de maior participação política do povo. Mas tais esperanças foram
logo traídas. O governo tratou de calar a população. Era preciso estabilidade
política, a qual não seria possível se o negro, o pobre, o estrangeiro, o
operário tivessem voz. A grande maioria da população foi excluída do processo
eleitoral, mas o povo encontrou outros meios de inserção no sistema e
participação política, embora não fossem nada formais. Este ponto será mais bem
tratado nos capítulos seguintes.
No capítulo II – República e
cidadanias – o autor trata das diversas concepções de cidadania nascidas no
início da República. Vários setores da população foram despertados pela
expectativa de expansão dos direitos políticos, como abordou Carvalho no
capítulo anterior. Por sua vez, as diferentes ideologias e as próprias
condições sociais dessa população diversificada, influenciaram a formação de
múltiplos conceitos de cidadania.
Dentre essas concepções,
Carvalho cita a dos conservadores ou o “setor vitorioso da elite civil”, que
apoiavam o conceito liberal de cidadania (liberdade de pensamento, de reunião,
de profissão, de propriedade etc.), mas ao mesmo tempo impedia a democratização
com as inúmeras barreiras ao direito ao voto pela grande maioria da população.
O autor destaca que houve até um retrocesso nos direitos políticos e sociais. A
noção positivista de cidadania apoiava a ampliação dos direitos civis e
sociais, mas não incluía os direitos políticos. O anarquismo repudiava qualquer
tipo de autoridade e tinha aversão aos partidos políticos e eleições. A luta
deveria ser direta, através de greves, boicotagem, manifestações públicas. Já
os socialistas acreditavam na organização partidária, porém seus partidos não duraram
muito.
Porém, como essas concepções
eram muitas vezes abafadas pela elite governante, a reação dos excluídos foi a
“estadania, ou seja, a participação, não através da organização dos interesses,
mas a partir da máquina governamental, ou em contato direto com ela” (p. 65).
O terceiro capítulo – Cidadãos
inativos: a abstenção eleitoral – é dividido em três momentos. Primeiramente, o
autor apresenta testemunhos da época sobre o comportamento político brasileiro,
que era visto por estrangeiros e até por propagandistas da República como apático
e sem expressão. Entretanto Carvalho nos adverte a examinar tais testemunhos
com cuidado e não tomá-los como retratos da realidade, pois como vimos no
capítulo anterior, eram várias as concepções de cidadania. O autor critica as
afirmações acima, considerando-as exageradas, uma vez que havia intensa
participação popular desde a Independência, e com a República, as
manifestações, as greves, as passeatas, os quebra-quebras se tornaram cada vez mais
frequentes. Os testemunhos dos contemporâneos eram baseados em percepção europeizada
do cidadão: bem-educado, militante organizado. Não encontraram este tipo no Rio,
ou melhor, o cidadão carioca não se enquadrava nos conceitos que os
observadores tinham em vista.
Na segunda parte do mesmo
capítulo, o autor utiliza como referências censos da época para analisar a
população fluminense, cuja composição, segundo seus estudos, é em grande parte
de trabalhadores informais e de imigrantes. Carvalho aponta que tais
características dificultavam a cidadania política no Rio. No primeiro caso,
porque era difícil para esse setor popular (trabalhadores mal qualificados)
compreenderem os mecanismos que regiam a sociedade.
No segundo caso, porque a
grande presença de estrangeiros também reduzia o envolvimento organizado na
vida política da cidade.
Carvalho, no terceiro momento
deste capítulo, busca compreender a participação do povo através dos canais
oficiais, como o voto. O autor nos mostra que o eleitorado era bastante
limitado. Apenas 20% da população do Rio podiam votar, e, dentre estes, poucos exerciam
esse direito. O autor esclarece, que além da exclusão legal do processo
eleitoral havia a auto-exclusão, cuja decisão era tomada por boa parte dos
votantes, por saberem das fraudes eleitorais e do perigo de votar. Podemos
entender isso como um meio de resistência a esse sistema corrupto.
Como a participação eleitoral
era uma farsa e não lhe valia muita coisa, o povo buscou outras maneiras de se
fazer ouvir. O capítulo IV – Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina – aborda
exatamente essa questão. Primeiramente, o autor nos apresenta o contexto social
do Rio antes da Revolta, tratando das obras públicas de reforma urbana e
saneamento na cidade, como também da luta pela implantação da vacina
obrigatória contra a varíola, liderada por Oswaldo Cruz. Vários setores da
sociedade iniciam então a Revolta da Vacina, que é descrita pelo autor dia após
dia. Tal revolta foi fragmentada, reflexo da sociedade também fragmentada da
época, que não tinha a tradição de organização e luta como havia entre o operariado
europeu, consequência também das características dos trabalhadores do Rio.
Porém, quando o povo entendia
que o governo havia passado dos limites, seja no campo material (criação ou
aumento dos impostos) ou no campo da moral (invasão de privacidade, desrespeito
à honra da família, valores ameaçados), o povo reagia. A Revolta da Vacina foi
um exemplo claro disso, “um movimento popular de êxito baseado na defesa do direito
dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelo governo” (p. 139).
No capítulo V – Bestializados
ou bilontras? – o autor procura explicar o comportamento político do Rio de
Janeiro. De um lado, percebia-se um comportamento participativo na religião, na
assistência mútua e nas grandes festas, em que a população parecia
reconhecer-se como comunidade. Porém, de outro, havia a indiferença pela participação
na política e ausência de visão do governo como responsabilidade coletiva.
Uma forte razão para isso,
segundo o autor, era o peso das tradições escravista e colonial que viciaram a
relação dos cidadãos e o governo. “O Estado aparece como algo a que se recorre,
como algo necessário e útil, mas que permanece fora do controle, externo ao cidadão”
(p. 146). Até porque a elite utilizou de vários mecanismos para alienar esse
povo, para este permanecer quieto e passivo.
Porém, o autor nos mostra que
essa atitude da população era também uma forma de resistência. A população logo
descobriu que o novo regime não havia trazido avanços a liberdade e a participação.
Então, “perante tal Estado, a cidade reagia seja pela oposição, seja pela
apatia, seja pela composição” (p. 155).
Os casos de apatia e oposição
foram abordados nos capítulos III e IV. Os de composição referiam-se a exatamente a estadania, a aproximação do
Estado, para reclamarem e conseguirem direitos que acreditavam serem da alçada
do governo, como segurança, limpeza pública, transporte, arruamento. Todas eram
maneiras de o povo atuar, reivindicar, reclamar, já que sabiam que não havia
outros caminhos oficiais de participação. A República não era para valer. O
discurso bonito do Estado não condizia com a realidade. Quem percebia isso não
era bestializado. “Bestializado era quem levasse a política a sério, era o que
se prestasse a manipulação (...) Quem apenas assistia, como fazia o povo o Rio
por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe
de ser bestializado. Era bilontra [gozador, espertalhão].” (p. 160).
Em sua conclusão o autor
explica que como não aconteceu uma República real, ou seja, o governo nunca foi
uma coisa pública, a cidade não teve cidadãos, nesse sentido. Estes se
relacionavam com o Estado da maneira que conseguiam. Como a cidade foi impedida
de ser República, foram formadas várias repúblicas, onde os cidadãos foram
construindo a sua identidade coletiva.
Por tudo isso apresentado até
aqui, vemos o trabalho excepcional do historiador José Murilo de Carvalho,
sobre o povo brasileiro e sua prática política. No decorrer da leitura nos
surpreendemos com a sua análise, que se mostra muito bem estruturada. A maneira
pela qual ele constrói seus argumentos, não nos deixa perdidos na leitura. Os
capítulos são sempre construídos de forma a darem suporte ao seguinte, de modo que
o leitor consegue acompanhar sua linha de raciocínio. Ao final do livro, o
autor conclui retomando todas as ideias anteriores, e solidifica ainda mais a
nossa compreensão.
José Murilo de Carvalho não se
mostra apenas como um bom escritor, mas também como um exímio pesquisador. As
dez páginas de citação de fontes e referências bibliográficas ao final do
livro, já nos dá uma boa impressão do trabalho. Jornais, revistas, almanaques, documentos
oficiais, livros científicos e literários, artigos e teses foram utilizados
pelo autor para construir esse trabalho. Porém, não só pela quantidade, mas
também pela qualidade e inteligência que ele apresenta no uso dessas fontes,
podemos perceber a confiabilidade de sua obra.
¹
Graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura em História, pela Universidade
Federal de Roraima.
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