Antonio Carlos Ribeiro
A infância abandonada volta à telona em Capitães de Areia, (drama, 96 min., direção de Cecília Amado e trilha sonora de Carlinhos Brown), filme homônimo da obra que Jorge Amado escreveu no fim dos anos 30, aos 24 anos. A narrativa que trata de crianças abandonadas das ruas de Salvador, com seu cotidiano difícil e solidário, provoca a reflexão sobre a situação de crianças que vivem nas ruas, agravada em nossos dias, aos 75 anos desde o tema foi tratado na literatura brasileira.
Os dramas se multiplicam pelo número de crianças em situação de risco – sendo na verdade apenas um - se agravaram ao extremo neste quase um século. As ruas seguem sendo o espaço que não dá a segurança da casa, não exige a disciplina mínima para a convivência, a manutenção dos vínculos e a coesão do grupo. Nas situações-limite ganha a aura de liberdade, ausência de regras e superação de inibições, sempre ao preço da insegurança, dos riscos resultantes dos furtos em nome da sobrevivência e da exposição aos riscos físicos e emocionais, alguns extremos, vejam: http://www.youtube.com/watch?v=JGqlIu0IxIo
O filme narra a luta de crianças de rua do grupo conhecido como Capitães de Areia, liderado por Pedro Bala (Jean Luis Amorim), líder do grupo, cujo nome tem desde os 5 anos quando começou a vagabundear pelas ruas de Salvador, da qual conhece todos os becos e acessos. Conquistou a fama porque tem autoridade no olhar e na voz, sobretudo porque se arrisca, com toda a falta de condições, pelo grupo do qual é parte.
A Dora (Ana Graciela) é a única menina do grupo, que chega ao trapiche aos 14 anos, depois de perder a mãe para a epidemia de varíola e vagar pelas ruas com o irmão Zé Fuinha. No grupo ela se encontrou no papel de mãe e irmã de todos os meninos, e ‘noiva’ de Pedro Bala, a quem admirou logo após ser trazida.
O Professor (Robério Lima), que traz a Dora e Zé Fuinha ao grupo, é o intelectual do grupo – sabe ler, desenhar, é bom estrategista – razões pelas quais se tornou o braço direito de Pedro Bala. Toma conta do trapiche na ausência do chefe e se comporta como irmão mais velho, que pondera, orienta e chama à razão os demais componentes.
A partir destes três personagens, surge um que se aproxima de uma prostituta e se destaca pela esperteza, outro é brincalhão e falante, outro mistura solidão, ressentimento e destempero por causa da fragilidade nas pernas, e outros circundam esse micro universo marcado pelos muitos furtos nas ruas e uma ética de respeito no trapiche, tendo como pano de fundo a luta pela sobrevivência.
A gíria, o palavreado de quem vive num universo de limites frágeis, a malícia das ruas, a exposição a todo tipo de riscos, inclusive a doença, compõem o ambiente do grupo que dá nome ao conto. O Candomblé é o pano de fundo religioso, espaço que pede a proteção dos orixás e dá proteção e apoio ao grupo, dos quais alguns participam nos instrumentos. Há também o grupo rival, a elite comercial baiana e a polícia, já com fama de violenta, impiedosa e braço repressor do sistema que a mantém.
A obra dirigida por Cecília Amado consegue ser fiel ao enredo do avô, só rompendo suavemente com a historicidade ao destacar certa malandragem singela, quase romântica daquela época e lugar, sem deixar de mostrar a atualidade do tema e a mesma indiferença da sociedade, que consegue atravessar incólume tantas décadas, especialmente as que experimentaram tantas transformações, sem mudanças muito significativas no tratamento com as crianças de rua.
As Organizações Não-Governamentais (ONGs) – de quem teve apoio fundamental na composição do elenco, na logística do projeto e até na execução – são alcançadas pela transposição da obra literária para o cinema sob ameaças e acusações da mídia elitista, em nada interessada nos avanços da sociedade, nem nos personagens populares, nem nas histórias de superação, mantendo a mesma apatia gelada a temas antológicos, históricos, politicamente emergentes e atuais na sociedade brasileira.
Na atualidade, apesar do trabalho social desenvolvido nos últimos governos, sob uma saraivada de críticas da elite com menos tradição intelectual, mais endinheirada e acostumada a lucrar os recursos públicos e socializar prejuízos, que se sente legítima ao se apropriar das benesses e, de poucos anos para cá, ressentida por não poder mais tomar o Estado de assalto, não decidir pelo ‘melhor’ por julgar possuí-lo e ser despojada da aura de benemerência, marcas de seu mecenato que a sociedade decidiu substituir por direitos de cidadania.
O esforço para destruir o serviço prestado, socialmente dirigido e com resultados já palpáveis – mormente quando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) recentemente divulgado foi criticado do Governo Federal aos Institutos especializados – começou a tomar forma na derrubada de ministros, em atitude revanchista contra a presidente que tentaram impedir a eleição. Mas já perceberam o efeito da pressão midiática acabou. O trabalho das ONGs vai permanecer, bem como as políticas afirmativas, para que os capitães de areia da atualidade tenham as chances que os de Jorge Amado não puderam conhecer.
Assim, quando tiverem contato com as crianças de rua, pediu Cecília Amado no debate com professores após a exibição no cine Arteplex Botafogo, que decidam se darão dinheiro ou não, mas não deixem de indagar à criança: Qual o seu nome? Quantos anos você tem? , porque isso lhes restitui dignidade e cidadania.
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