Antonio Carlos Ribeiro
O filme Elefante Branco (Elefante Blanco, Pablo Trapero, Argentina/ Espanha, 2012) traz um enredo atual, chocante e com cenas desconcertantes, embora plausíveis no ambiente urbano, carcomido pela fome, os ditames da religião, o poder das elites — que julgam poder comprar tudo — e a afetividade explosiva.
O enredo da película começa com o padre Julián (Ricardo Darín) sendo submetido a uma tomografia. Depois, o público é levado à Amazônia sem lei, especialmente às populações ribeirinhas, que vivem tão desprotegidas quanto os pobres na Idade Média — entregues a toda sorte de riscos — e na qual o padre Nicolás (Jérémie Renier) escapa de um massacre, ao ver uma família ser exterminada por não apontar para que lado ele fugiu. Neste lugar, Julián vem buscar o egresso do seminário para outra tarefa, igualmente perigosa.
Julián e Nicolás voltam a trabalhar juntos, agora na Villa Virgen, uma favela da periferia de Buenos Aires. O perfil é o comum da América Latina: pobreza econômica transformada em miséria moral, refino-preparo-tráfico de drogas, sacerdotes que se dedicam ao atendimento dos esquecidos de todos, bispo distante, insensível ao sofrimento humano e agarrado às futilidades eclesiásticas e com autoridade formal sobre quem vive a experiência cotidiana de estar entre Deus e o diabo. E a polícia, o braço armado do Estado para manter a ordem.
Em Elefante Blanco, o lado mais cruel da tragédia é também destes bons moços, de uniformes garbosos à tarefa cotidiana de serviçais do Estado, mediada pelos gritos dos comandantes. Com código rígido, formação militar e sem margem para lidar sequer com os conflitos familiares e os pessoais, sem falar dos esquemas de corrupção da corporação e da relação de dependência do poder estatal e suas políticas para a sociedade.
O trabalho com altos níveis de estresse é o que sobra para os dois clérigos e a assistente social que põem suas vidas em risco, para continuar do lado dos miseráveis, agarrados a uma mística forte que lhes permite conviver com os poderes do Estado, da Igreja, da Polícia e do tráfico — que nas ‘villas’ tem uma lógica clara e letal — apenas para proteger e minorar o sofrimento dos pobres, em meio às contradições.
A atuação de Ricardo Darín encarna este perfil de sacerdote, da mística nascida da ortopráxis à pureza ética que resguarda o rosto humano da religião nos espaços limítrofes. Ele está impecável, das tarefas cotidianas ao modo como lida com a saúde, da capacidade de lidar com o bispo, o governo e os narcotraficantes, o mesmo lugar existencial de onde vem sua autoridade para posicionar-se frente a eles. A cena em que ‘absolve’ o irmão de sacerdócio e a que revela a vontade de mandar todos ‘a la mierda’, são paradigmáticas do perfil da missão.
A relação afetiva entre o sacerdote e a assistente social é outro marco do momento. A paixão romântica irrompe em meio ao caos político, econômico e religioso. É um grito de desespero e a luta para respirar, em meio à asfixia existencial. Assim como em O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, é avassaladora, transgressiva, corajosa, como só acontecem em tempos de calamidades e crise civilizacional agudas. O número de sacerdotes e militantes de todas as frentes de luta que a ela chegaram é incontável, entre os que voltaram ao redil, os que fugiram para salvar vidas e os que se ‘perderam’ ao perder seu grande amor.
Villa Virgen é uma ‘comunidade’, de cerca de 30 mil pessoas, próxima ao projeto do maior hospital da América Latina, lançado por um governo socialista e abandonado desde 1937. O fato em si dá o retrato das elites latino-americanas: endinheiradas pelo controle do Estado, com pouca formação intelectual, muito autoritarismo e o recurso fácil à violência, regados à vaidade tola. O espaço em que os padres trabalham para transformar o prédio abandonado em moradias dignas é o mesmo que lembra o ‘deserto do real’, de Zizek.
As partes complementares do enredo são os demais padres e voluntários que atuam com e a partir dessa tríade, a célula mais comum dos trabalhos pastorais desenvolvidos nas grandes cidades da América Sul, surgida nos anos 1970 a partir da mística dos pobres como os amados preferenciais de Deus, a repressão do consórcio elites-ditaduras, e da Igreja, pendente para o lado conservador nos centros de maior poder político e econômico, a partir da lógica atemporal que assegura a sobrevivência histórica. Ou de confronto, onde o bispo era pastor.
A capital argentina agrega ao enredo comum das grandes cidades da América do Sul, a pecha dos assassinatos de massa, legitimados por leis humanas e divinas, ‘de exceção’, sem disposição de poupar sequer os ‘seus’, já que as vantagens do atrelamento ao Estado superavam em muito o pecuniário e o institucional. Os feriados religiosos e as bênçãos episcopais à repressão mais brutal, já enfrentadas por todos os países da região, exceto o Brasil, testemunham o dilema teológico de defender o rebanho ou assegurar a presença da instituição religiosa.
A película dirigida por Trapero é como os vitrais das Catedrais, projetados para narrar a história da salvação, ocultando o conflito das relações nem sempre claras, entre as paixões da fé popular, da instituição eclesial e do Estado dominado pelas elites. Nestas, destacam-se homens e mulheres que deram à sua vida o sentido das causas que abraçaram, pelas quais viveram e morreram. Ao serem guindados de líderes a mártires, enriqueceram a mística combativa deste ‘continente sofrido e maravilhoso’, como escreveu Gutiérrez.
Transcrito de Novos Diálogos
O filme Elefante Branco (Elefante Blanco, Pablo Trapero, Argentina/ Espanha, 2012) traz um enredo atual, chocante e com cenas desconcertantes, embora plausíveis no ambiente urbano, carcomido pela fome, os ditames da religião, o poder das elites — que julgam poder comprar tudo — e a afetividade explosiva.
O enredo da película começa com o padre Julián (Ricardo Darín) sendo submetido a uma tomografia. Depois, o público é levado à Amazônia sem lei, especialmente às populações ribeirinhas, que vivem tão desprotegidas quanto os pobres na Idade Média — entregues a toda sorte de riscos — e na qual o padre Nicolás (Jérémie Renier) escapa de um massacre, ao ver uma família ser exterminada por não apontar para que lado ele fugiu. Neste lugar, Julián vem buscar o egresso do seminário para outra tarefa, igualmente perigosa.
Julián e Nicolás voltam a trabalhar juntos, agora na Villa Virgen, uma favela da periferia de Buenos Aires. O perfil é o comum da América Latina: pobreza econômica transformada em miséria moral, refino-preparo-tráfico de drogas, sacerdotes que se dedicam ao atendimento dos esquecidos de todos, bispo distante, insensível ao sofrimento humano e agarrado às futilidades eclesiásticas e com autoridade formal sobre quem vive a experiência cotidiana de estar entre Deus e o diabo. E a polícia, o braço armado do Estado para manter a ordem.
Em Elefante Blanco, o lado mais cruel da tragédia é também destes bons moços, de uniformes garbosos à tarefa cotidiana de serviçais do Estado, mediada pelos gritos dos comandantes. Com código rígido, formação militar e sem margem para lidar sequer com os conflitos familiares e os pessoais, sem falar dos esquemas de corrupção da corporação e da relação de dependência do poder estatal e suas políticas para a sociedade.
O trabalho com altos níveis de estresse é o que sobra para os dois clérigos e a assistente social que põem suas vidas em risco, para continuar do lado dos miseráveis, agarrados a uma mística forte que lhes permite conviver com os poderes do Estado, da Igreja, da Polícia e do tráfico — que nas ‘villas’ tem uma lógica clara e letal — apenas para proteger e minorar o sofrimento dos pobres, em meio às contradições.
A atuação de Ricardo Darín encarna este perfil de sacerdote, da mística nascida da ortopráxis à pureza ética que resguarda o rosto humano da religião nos espaços limítrofes. Ele está impecável, das tarefas cotidianas ao modo como lida com a saúde, da capacidade de lidar com o bispo, o governo e os narcotraficantes, o mesmo lugar existencial de onde vem sua autoridade para posicionar-se frente a eles. A cena em que ‘absolve’ o irmão de sacerdócio e a que revela a vontade de mandar todos ‘a la mierda’, são paradigmáticas do perfil da missão.
A relação afetiva entre o sacerdote e a assistente social é outro marco do momento. A paixão romântica irrompe em meio ao caos político, econômico e religioso. É um grito de desespero e a luta para respirar, em meio à asfixia existencial. Assim como em O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, é avassaladora, transgressiva, corajosa, como só acontecem em tempos de calamidades e crise civilizacional agudas. O número de sacerdotes e militantes de todas as frentes de luta que a ela chegaram é incontável, entre os que voltaram ao redil, os que fugiram para salvar vidas e os que se ‘perderam’ ao perder seu grande amor.
Villa Virgen é uma ‘comunidade’, de cerca de 30 mil pessoas, próxima ao projeto do maior hospital da América Latina, lançado por um governo socialista e abandonado desde 1937. O fato em si dá o retrato das elites latino-americanas: endinheiradas pelo controle do Estado, com pouca formação intelectual, muito autoritarismo e o recurso fácil à violência, regados à vaidade tola. O espaço em que os padres trabalham para transformar o prédio abandonado em moradias dignas é o mesmo que lembra o ‘deserto do real’, de Zizek.
As partes complementares do enredo são os demais padres e voluntários que atuam com e a partir dessa tríade, a célula mais comum dos trabalhos pastorais desenvolvidos nas grandes cidades da América Sul, surgida nos anos 1970 a partir da mística dos pobres como os amados preferenciais de Deus, a repressão do consórcio elites-ditaduras, e da Igreja, pendente para o lado conservador nos centros de maior poder político e econômico, a partir da lógica atemporal que assegura a sobrevivência histórica. Ou de confronto, onde o bispo era pastor.
A capital argentina agrega ao enredo comum das grandes cidades da América do Sul, a pecha dos assassinatos de massa, legitimados por leis humanas e divinas, ‘de exceção’, sem disposição de poupar sequer os ‘seus’, já que as vantagens do atrelamento ao Estado superavam em muito o pecuniário e o institucional. Os feriados religiosos e as bênçãos episcopais à repressão mais brutal, já enfrentadas por todos os países da região, exceto o Brasil, testemunham o dilema teológico de defender o rebanho ou assegurar a presença da instituição religiosa.
A película dirigida por Trapero é como os vitrais das Catedrais, projetados para narrar a história da salvação, ocultando o conflito das relações nem sempre claras, entre as paixões da fé popular, da instituição eclesial e do Estado dominado pelas elites. Nestas, destacam-se homens e mulheres que deram à sua vida o sentido das causas que abraçaram, pelas quais viveram e morreram. Ao serem guindados de líderes a mártires, enriqueceram a mística combativa deste ‘continente sofrido e maravilhoso’, como escreveu Gutiérrez.
Transcrito de Novos Diálogos
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