Antonio Carlos Ribeiro
O filme Trem noturno para Lisboa (Night Train to Lisbon), dirigido por Bille August, diretor dinamarquês de As melhores intenções e que estreou dia 29 de novembro, mostrando um professor de filosofia, notívago e culto que, ao impedir o suicídio de uma jovem é sugado para dentro de uma trama intensa e atual.
Ao abandoná-lo, ela deixa um casaco, um livro e uma passagem de trem. Ele embarca para Lisboa. A viagem o leva não apenas da Suíça para Portugal, mas para as vidas que fizeram sentido ao participar da resistência, se manifestarem e viverem emoções inusitadas, no fim da mais longa ditadura da Europa moderna, de quase meio século, com a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.
O leitmotiv foi o livro que o fez defrontar-se com a história de um jovem estudante de medicina da Universidade de Coimbra, Amadeu de Almeida Prado – de personalidade densa como a situação histórica, determinado a usar sua formação, condição social e memória para não sucumbir – e a atuação de um colega do curso de Farmácia e da rede de resistência política.
As frases de Prado em seu livro despertam a atenção do professor, pela força que continham, pelo senso prático e pela cosmovisão que mostravam. A viagem não foi apenas do sul ao oeste europeu, mas pelas páginas do livro, que deixaram Raimund Gregorius encantado com a intensidade da vida destes jovens, rompendo com a ideia de ser metódico, culto e às vezes entediante.
O discurso de Prado na formatura da escola provoca reações claras de reprovação dos que deixaram o auditório, do padre Bartolomeu (Christopher Lee) que confirma sua agudeza e capacidade de expressão, e do pai, um juiz e sempre crítico de suas opções. É dessas pessoas que angariam respeito porque rompem paradigmas, amam, sofrem e pagam preços altos, sem perder a dignidade, perturbadoramente íntegra.
Nessas circunstâncias, o professor de Filosofia fica impressionado com garoto genial de 17 anos, que estuda numa escola católica, escreve um diário para não ser engolido pelos dias e discursa na formatura: ‘querias ser imortal? Mas apenas através da morte a vida tem valor’, ‘o que faremos com o tempo que teremos pela frente em aberto e sem forma, leve como uma pluma em sua liberdade e pesado como chumbo em sua incerteza?’
‘É um desejo, um sonho nostálgico, voltar a um determinado ponto da vida e poder tomar um rumo completamente diferente daquele que fez de nós quem somos’, filosofa o jovem médico, ‘estamos fazendo o bastante?’ e ‘estamos lutando pela vida em sua plenitude?’, ‘Se é verdade que vivemos apenas uma parte da vida que há em nós, o que acontece com o resto?’ Seus gritos arrancam do tempo as respostas que este reluta em dar.
Depois de desatar os nós da trama, clarear as reviravoltas existenciais e entender as loucuras das paixões, Gregorius desabafa para Martina, a oftalmologista que prescreve seu novo óculos: ‘Ele fala de coisas que sempre me preocuparam por anos’, ‘suas palavras e seu mundo são tão fortes que fazem o meu parecer insignificante’ e ‘eles viveram’.
Nos entrecortes, algumas cenas são intrigantes, como a que salva a vida do ‘carniceiro de Lisboa’ e é hostilizado pela vizinhança. Quando a circunstância o coloca diante deste dilema, ele opta por não se trair. É movido por duas paixões, a profissão e o ideal revolucionário, por isso cometer um crime seria negar as duas, e ainda sucumbir àquilo que mais nega. Vive as duas contradições em dilema intelectual, só encontrando respostas na prática.
Outra cena é a da reunião da resistência, a convite do melhor amigo, cuja namorada – Estefânia – sente uma paixão arrebatadora por Prado, a partir de suas intervenções. Sua beleza arrebata sentidos, a faz incisiva ao perguntar sobre o pai – um juiz da ditadura – e a faz movimentar-se com um planeta em torno do sol.
Situações imprevistas, mas possíveis, que trazem uma intensidade, uma catarse e uma autenticidade, pela expressão corajosa dos sentimentos, numa situação já tensa. Isto exige deles nada menos que plena humanidade, assumindo os riscos e a vulnerabilidade, levando muitas vezes a viver o momento (carpe diem – aproveite o dia), do latim da poesia romana, mas pouco interessante para adolescentes.
Um senão grave. Ouvir um filme que transcorre em Portugal com diálogos em inglês é ofensivo aos países lusófonos. Não bastasse o fato da língua portuguesa ser falada nos cinco continentes, é marca fundamental do período das grandes navegações. Se a acusação é a de serviço ao colonialismo, somos absolvidos. As demais também são. É a língua oficial de cinco países, a quinta mais falada no mundo – aproximadamente 268 milhões de pessoas – e a quarta do mundo ocidental. Enquanto os europeus desconhecem a língua que nos trouxeram, finjamos ouvir na língua de Camões o que aparece em inglês. A única falha de August foi grave, sobretudo pela co-produção portuguesa.
No diálogo de despedida com Martina, Gregorius se mostra encantado com a história desses jovens – ‘vidas cheias de vitalidade e intensidade’ – ‘tanta que os separou’, atalha a médica – ‘mas eles viveram’, interrompeu o suíço, julgando ter proferido a frase definitiva. Ela reage, firme e ritmada: ‘Por que você apenas não fica?’ ('Why don't you just stay), criando a possibilidade das paixões do passado no presente.
*Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Capes) - Campus Araguaína - e Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura
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