Por que não me pareço com meus pais? Para onde foi o meu avô? De onde vem os bebês? Essas são algumas perguntas que podem rondar o imaginário infantil. E os livros e as histórias são bons aliados no momento de falar sobre temas delicados com os pequenos, como adoção, separação, morte, sexo e sexualidade.
Foi assim na casa da jornalista Luciana Neves. Mãe do coração do sorridente Marcelo, de 3 anos – que chegou na família aos 6 dias de vida –, ela criou uma história na qual aborda o tema adoção e passou a contá-la ao filho toda noite, antes de ele dormir. “Comecei quando ele tinha dois anos. Até que um dia ele perguntou se o menino da história era ele e se a moça era eu. E me deu um abraço”, conta emocionada.
Para não deixar essa fábula da vida real se perder no tempo, a jornalista lança, hoje, o livro “O Menino que Morava na Nuvem” (Editora Ramalhete). “A cada dia aumentava um elemento na história. Sei que ela não termina aqui. Com o tempo vou incrementando e respondendo as dúvidas dele, quando elas surgirem”, considera.
Pesquisa
Antes de publicar o livro, Luciana foi a livrarias e bibliotecas para pesquisar títulos infantis que falassem do tema. “Alguns deles são extensos e não chegam no assunto. Isso me incentivou a lançar esse livro. Além de ser uma homenagem ao Marcelo”, conta.
Luciana acredita que o livro dela pode ajudar outras pessoas a lidar com a questão. “A partir dele a pessoa pode adaptar a história colocando elementos da própria família. Ele é um apoio”, avalia. Para ela, o mais importante é ser com amor. “Muitas vezes o próprio adulto tem dificuldade de falar. Demonstrar o quanto a criança é desejada pela família torna o momento mais fácil”, garante.
Na hora de finalizar o livro, Luciana adicionou alguns elementos, para ela, importantes a serem discutidos. “A questão do Juizado (da Infância e da Juventude) e de qual barriga ele veio são pontos que incluí na história, pois eles existem”, elucida.
A publicação acabou envolvendo a família toda, uma vez que a ilustração feita com massinha de modelar foi criada por seu cunhado, o arte-educador Flávio de Souza. E as fotos foram produzidas pelo marido Rivelino Moreira.
‘Complicamos o que é simples e simplificamos o que tem complexidade’
A literatura sempre abordou temas do universo infantil. Desde os assuntos considerados mais simples como no livro “O Que Tem Dentro da Sua Fralda?”, que traz a temática “desfralde”. Até a questão da finitude do ser humano na obra “Virando Estrela”, que fala sobre perda e superação. “Com os livros conseguimos compreender no terreno simbólico o que não conseguimos enfrentar na realidade. No caso da criança, gera reconhecimento. E isso aponta caminhos”, explica a psicoterapeuta Aline de Melo.
O livro pode funcionar como um ensaio da realidade. “Não estamos vivendo a situação daquela forma, mas a obra convida a chegar perto do tema”, comenta a especialista. Segundo Aline, a partir dos 7 anos, quando a fantasia não dá conta de responder a todas as perguntas, a criança pode entrar em crises existenciais e angústias. “Mas os livros continuam sendo indicados, o que muda é a linguagem, que vai sair do terreno lúdico”, afirma.
Sem blá-blá-blá
Para a psicóloga e escritora Rosely Sayão, que recentemente lançou o livro “Educação Sem Blá-blá-blá”, complicamos o que é simples e simplificamos o que tem complexidade. Outro problema, acrescenta, é que estamos sempre tentando evitar o sofrimento. “Não queremos que as crianças[AS CRIANÇAS] sofram, como se fosse possível evitar que isso aconteça. Mas muitas vezes as experiências negativas são algo muito benéfico”, explica Rosely, que trata em seu livro de temas como ciúme de irmão, indagações existenciais, sexualidade, entre outros.
Para ela, o importante é a forma de mediar esses sentimentos. “Nesse momento entram livros e até filmes, pois são um ponto de partida para conversar sobre os temas”, considera.
O importante é existir abertura entre pais e filhos. “Temos que sair da ilusão de poupar crianças de assuntos difíceis, pois eles vão chegar, independente de o adulto intermediar”, assegura. “O melhor é conversar aos poucos, de acordo com o que cada idade consegue assimilar”, acrescenta. (V.P)
Entrevista Frei Betto: ‘É preciso vivenciar o rito de passagem’
A morte, muitas vezes, é um tema evitado pelos próprios adultos. Para tornar a questão menos pesada para os pequenos, o escritor Frei Betto lançou, em 2014, o livro “Começo, Meio e Fim” (Rocco). De uma forma delicada, o autor conta a história de uma garotinha que gosta de comparar pessoas e coisas a doces. Assim, por exemplo, o semblante de seu pai é de maçã caramelada e domingo tem cara de algodão-doce. Em um domingo ela percebe que as feições de seus avós estavam mais para farinha crua do que para chocolate. Ela descobre que o avô está doente, e ele inicia uma explicação sobre a existência e finitude das coisas.
Qual foi sua motivação para tratar de um tema tão delicado e pouco explorado no universo infantil?
Justamente por ser um tema pouco abordado no universo infantil é que decidi escrever “Começo, Meio e Fim”. Pais e parentes cometem o erro de não levar a criança ao velório da avó, do avô, de uma pessoa por quem ela nutre afeto. Fica um vazio, como se a pessoa tivesse sido abduzida. É preciso vivenciar o rito de passagem.
A literatura é um aliado das crianças para que possam lidar com sensações negativas?
Sim, a literatura é fundamental na formação psíquica da pessoa desde o útero materno. Deve-se ler muito para o bebê, de modo a favorecer a formação de sua síntese cognitiva e ensiná-lo a lidar com sensações, emoções, surpresas, frustrações etc. Por isso escrevi também, para crianças, “A Menina e o Elefante”, sobre o direito à diferença; “Fogãozinho” e “Saborosa Viagem pelo Brasil”, dois livros sobre culinária visando a estimular a criança a aprender a cozinhar e ter uma alimentação saudável; e “Maricota e o Mundo das Letras”, para introduzir a criança no reino do alfabeto. Há um outro, “Uala, o Amor”, sobre a questão ambiental. A história de amor entre um índio e um rio.
Quando se deu conta da finitude do ser humano? Como lidou com essa questão na época?
Quando morreu minha tia Diva, aos 18 anos, de pneumonia. Eu tinha quatro. O velório foi na sala da casa de meu avô. Pedi um banquinho para subir e ver o corpo dentro do caixão. Ali me veio o impacto da finitude.
Transcrito de Vanessa Perroni - Hoje em Dia - 16/07/2016
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