O filme-ensaio 'Sociedade do cansaço' desvenda os males do neocapitalismo no tempo da mensagem do 'sim, nós podemos'
Sobe ao palco das estrelas da cultura, dos que refletem sobre a nossa vida de hoje e o futuro que aguarda a espécie humana, o filósofo sul-coreano Byung Chulk-Han, de 62 anos, radicado na Alemanha, professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim.
O ex-estudante de Metalurgia em Seul quando jovem, é autor de vários ensaios com originais críticas à comunicação na sociedade atual do trabalho exaustivo, da hiper atividade e da auto-exibição; até como ferramenta de sobrevivência social ou profissional.
Esse rock star da cultura, como ironicamente o chamam os ressentidos com seu sucesso, é também autor de análises sobre o culto obsessivo às informações partilhadas compulsoriamente e oferecidas pelos smartphones que ''nos submergem em um turbilhão de atualidades, e são artigos do culto da dominação digital'', em suas palavras.
''O dispositivo age como um rosário. Mantemos o celular sempre ao alcance de nossas mãos e o like é o amém digital'', Byung escreve no seu livro Sociedade do Cansaço(Ed. Vozes/2015). Este é um dos seus trabalhos mais famosos da série de pequenos livros que vendem como água e esgotam nas principais livrarias do Rio de Janeiro; especialmente entre seus leitores jovens.
Fala-se até que as idéias de Byung Chulk Han estará incluído nas provas do próximo Enem, em novembro. Acho difícil. Em todo caso.
Mas além dos seus livros, há um documentário, um ensaio-filme de cerca de uma hora, de autoria da artista plástica Isabela Gressner, narrado em alemão e legendado em português que pode ser encontrado no Youtube com o título Sociedade docansaço. Vale assisti-lo. Além da boa qualidade cinematográfica acompanha com beleza plástica o pensamento filosófico de Byung.
Nele, o coreano reforça: mesmo com o amém digital continuamos nos ''confessando, nos desnudando e pedindo que... prestem atenção em nós''.
''A fadiga da informação é uma doença mental causada pela exposição excessiva a informações'', informa o filósofo no filme. ''As populações sofrem de depressão, ansiedade, falta de concentração e nervosismo. E a mídia digital veio multiplicar a quantidade de informações disponíveis, tendência exacerbada pelo smartphone com o qual a pessoa estabelece uma relação obsessiva e compulsiva''.
''No metrô, por exemplo', ele comenta num dos trechos das suas conferências e apresentadas no doc de Gressner, ''ninguém, nem as crianças, se entreolham e nem olham para outro lugar que não seja o próprio celular. É uma compulsão que me faz lembrar de zumbis com a alma vendida para os dispositivos digitais''.
Passeando pelas ruas de Seul numa das viagens anuais de inverno que ele faz ao seu país, Byung nos traz uma Coréia do Sul bem diversa do que o retrato que a mídia corporativa brasileira vende no noticiário sobre Seul, templo máximo do neoliberalismo bem sucedido segundo as notícias. Mas é justo lá que 50% dos que se encontram empregados revelam que trabalham mais do que deveriam e onde são grandes as tensões nos ambientes das empresas.
"A maioria contava com emprego estável, mas hoje trabalha com contratos temporários. É neste contexto que ''o smartphone se tornou uma espécie de novo e indispensável órgão do próprio corpo'', observa um dos entrevistados de Chulk-Han em Sociedade do cansaço. ''E eu gostaria de saber porque as pessoas amam tanto se expor,'' ele se pergunta.
No filme, o filósofo relembra suas referências: Hegel, Ehrenberg, Peter Handke, Wim Wenders, e conversa com o diretor de cinema Park Chan-wook. Reflete também sobre o alto índice de casos de suicídios na Coréia do Sul.
''Vivemos esgotados e deprimidos e estamos obcecados com informações e dados. Somos infômanos; somos pessoas que compilam e compartilham obsessivamente informações sobre sua vida pessoal'', diz Byung.
Na sua análise, a sociedade disciplinar e repressora do século 20 descrita por Michel Foucault perdeu espaço para uma nova forma de organização: a violência neuronal.
'' A onda do 'eu consigo' e do 'yes, we can', slogan utilizado pelo presidente estadunidense Barack Obama, tem gerado um aumento significativo de doenças. Depressão, transtornos de personalidade, síndromes como hiperatividade e burnout. Na sociedade do desempenho todos precisam ser autênticos, inovadores e produtivos''.
A série coreana Round 6, que vem estourando índices de audiência na Netflix, nos quatro cantos do mundo, reforça as observações de Byung e aponta na mesma direção. Ela traz um mundo distópico e violentíssimo no qual os participantes se dedicam com paixão e integralmente a um jogo que acena com a possibilidade de seus participantes ganharem fortunas para saldarem suas dívidas, mesmo com risco de morte. A crescente desigualdade social na sociedade coreana é um fato já denunciado.
Os altos níveis de suicídio na Coréia do Sul, um dos maiores do mundo, vão na contramão do impulso sugerido pelo aumento de 100% na busca por aulas do idioma coreano, aqui, nos cursos de idiomas brasileiros, em comparação com um ano atrás. O aumento nessa demanda começou no último verão, mas foi impulsionado pela popularidade da série Round 6.
Alguns dos pontos abordados no documentário são assuntos de outro livro de Chulk-Han. Em Sociedade datransparência o autor comenta como o significado de honestidade perde valor na atual ''sociedade da desconfiança''. E diz: ''Acreditávamos que o espaço da comunicação seria um espaço de liberdade; mas os espaços de liberdade estão se tornando espaços de controle''.
''Controle e exploração são realizados através de exploração voluntária, de exibição. Essa é uma compulsão que deriva da lógica do capital. Quanto mais comunicação, mais ganha o capital''.
No inquietante filme, Byung conclui: ''O projeto de liberdade tão caro à civilização ocidental pode ter fracassado. O 'sim, nós podemos', pode ser um grito de liberdade, mas pode conter também um aspecto diabólico''.
O fato é que suas idéias, além de uma advertência, são um fértil campo para debates sobre o tema da comunicação digital e o bombardeio de informações de toda espécie a que somos submetidos.
Der Spiegel, Nr. 40, 02.10.2021, p.42-9. Tradução: Hans Alfred Trein
Conspiração. Nós acreditamos aquilo que nos serve e nos
parece convincente e, então, procuramos por comprovações e argumentos que
defendam nossa postura.
Em primeiro lugar, os nossos cérebros foram hackeados.
Em 2009, o Twitter introduziu sua função “retweet” e o Facebook sua função
“like”, que o twitter, então, copiou; tornaram se logo funções-padrão na rede.
A combinação com a função “compartilhar” possibilita aos usuários disseminar
imediata- e irrefletidamente quaisquer conteúdos em toda sua rede social.
“Também poderíamos ter dado uma arma carregada na mão de uma criança de 4
anos”, diz Chris Wetherell, que desenvolveu a função retweet no twitter. “E eu
acredito que foi isso que, na verdade, fizemos”.
Graças à essa dinâmica eu posso participar de algo com pouco
ou nenhum empenho ou risco pessoal e me esconder no anonimato, caso algum grupo
de pessoas se indigne. A vítima e eu, talvez nem nos conheçamos. Eu nem mesmo
faço ideia sobre se ela poderia perder seu emprego, ou sobre o ostracismo que
ela experimenta, pois empatia e consciência de responsabilidade são
substituídas por indignação e anonimato.
Enquanto ela sofre em ser envergonhada ou mal falada, vou
acreditar que a vítima o mereceu. Minha fúria não é uma fúria comum, não é uma
emoção cara à cara, que poderia possibilitar uma interação e levar a uma
reconciliação ou a novos reconhecimentos. Nós, da bolha, cremos que o objeto de
nossa indignação é uma ameaça ou um traidor. Mesmo quando a vítima estava bem
intencionada, ela o deveria ter sabido melhor e, em todos os casos, sua
vergonha serve de advertência a outros.
Assim somos alimentados com indignação por mídias clickbait
(isca para clicar), ativistas e fazendas estatais de trolagem, apoiadas por
software que observa cada clic. Um tal sistema pode nos impedir de trocarmos
ideias com pessoas que veem a realidade de outra forma. O que dizem os outros?
Quais são nossas diferenças? Mais estranho ainda é que somos influenciados por
um software que não nos explica o que nos mostra. Ele aprende o que clicamos e
o que outras pessoas que nos são similares clicam, fabrica um avatar virtual de
nós e passa a nos alimentar com tudo o que o nosso avatar quer. Ninguém
consegue compreender por que vemos o que vemos. Ninguém sabe o que os outros
veem. Nem mesmo as máquinas sabem o que seus algoritmos fazem.
Mídias digitais não são concebidas de maneira que elas nos
obriguem a reconhecer nossas diferenças e de nos compelir a que busquemos consenso.
Elas não querem produzir uma realidade comum. Ao invés de diminuir o fluxo de
informações, pois elas precisam ser testadas e comprovadas, as mídias digitais
premiam o imediatismo e a impulsividade, emoções ao invés de objetividade. Em
vez de repudiar agressões pessoais, elas as promovem.
Eu tenho 61 anos. Em minha infância havia nos EUA três
emissoras de TV, dois magazines de notícias e um ou dois grandes jornais em
cada cidade. Não importa, se a gente tem saudades dos velhos, bons tempos, ou
se a gente está feliz, que a era das grandes mídias tenha passado: há uma razão
por ter havido tão poucos porteiros e que eles agiam com tanto sucesso. A
informação pode ser livre, mas saber é caro. Uma grande reportagem
investigativa ou um estudo acadêmico exigem o trabalho de experts e muito
dinheiro.
Até por volta de 2016, não importava muito às lideranças e
aos técnicos do mundo digital, se as informações a que davam uma plataforma,
eram verdadeiras ou não, se é que em absoluto pensavam a respeito. Prescrever às
pessoas o que devem postar? Deixem florescer 1000 flores! Não é nossa tarefa,
controlar o mundo online! Contudo, o ano 2016 com a vitória de Trump, e o
impacto da influência nas eleições norte-americanas por redes de direita e
atores destrutivos e estrangeiros mudou muita coisa.
Por que? O Facebook, por exemplo, não é apenas uma
plataforma. Também é uma comunidade, e comunidades implodem quando
sociopatas enlouquecem. Além disso, Facebook é um empreendimento, e uma empresa
se torna não rentável quando ela se torna tóxica para os seus clientes ou para
a sociedade. Quando usuários inundam a rede com material que assusta e traz
insegurança a outros usuários, afugenta anunciantes, que envenena a marca e que
é sistematicamente inverídico, a empresa terá de escolher o que e como algo
será disseminado de maneira proeminente. Em alguns casos, excluirá conteúdos ou
usuários totalmente. Para dizê-lo resumidamente: terá de encontrar um
equivalente para a tecnologia “killer app” das velhas mídias: revisão
redacional.
Os
melhores trolistas. Wladimir
Putin deve estar com inveja de Donald Trump, que descobriu, como se transfere
estratégias de desinformação em estilo russo para a política americana.
Já faz tempo que as grandes redes sociais começaram a dar-se
um revestimento institucional. Desenvolvem normas e incentivos, para levar seus
usuários a mudar seu comportamento. O que começou com algumas equipes de
checadores de fatos que realizavam um punhado de verificações aleatórias,
desenvolveu-se na direção de uma rede global que coopera com Facebook, Google e
Youtube.
Veremos o que funciona e o que não funciona. Alguns experts
contestam que a checagem de fatos faça alguma diferença. No entanto, mais
importante é: o que antes era guiado por decisões comerciais e preconceitos
ideológicos, está sendo repensado. De qualquer modo, agora está claro que a
pretensa neutralidade das plataformas sempre foi aquilo o que na verdade
é: um pretexto, uma desculpa esfarrapada!
Um sociopata é alguém que não aceita normas sociais. Violações
de regras e uma certa falta de vergonha podem fazer sentido, pois inovações na
economia, na política ou na arte vivem de atitudes que ignoram limites.
Contudo, violações demasiadas conduzem à ruína de uma ordem social pacífica –
mais ainda quando ela é liberal, que depende de todas as pessoas, em princípio,
seguirem as mesmas regras.
Sociopatas ambiciosos reiteradamente levaram ordens liberais
à queda, mas as modernas democracias liberais do ocidente, por muito tempo,
pareciam estáveis. Desde o início do século 21, no entanto, tecnologias
digitais e mídias sociais trouxeram à luz uma quantidade infinita de enxames
anônimos. A partir do momento, em que estes se vincularam com atores estatais,
primeiro com Putin, Orbán, Erdogan e daí com o presidente dos Estados Unidos,
uma forma imperscrutável e assustadora de desinformação digital ganhou
relevância.
Por propaganda entende-se influenciar a opinião pública, sem
respeito à verdade, muitas vezes (mas nem sempre), por atores estatais – a
desinformação como guerra psicológica e informadora. O objetivo: desmoralizar,
desmotivar, isolar, intimidar. Trolls modernos veem isso de modo semelhante.
Quando os russos iniciaram a sua agressão informativa às eleições
estadunidenses em 2016, não acreditavam em com isso alçar Donald Trump à
cadeira presidencial, mas esperavam polarizar os Estados Unidos e tornar o país
menos governável. Foram exitosos nisso.
As agressões não visam pessoas ou temas individuais, mas sim
todo o espaço da informação. Steve Bannon, o antigo chefe de “Breitbart News” e
posterior estrategista-chefe de Trump, disse certa vez: “A verdadeira oposição
são as mídias. E o jeito de lidar com elas é: Flood the zone with shit - inunda
a região toda com merda”.
Não há descrição mais precisa do que se trata, quando
falamos de modernas guerras de informação. Comunidades estão sujeitas a redes
de confiança, que filtram o que é verdade e o que não é. As pessoas tem de
saber, com quem estão falando, se essa pessoa é digna de confiança, quais
instituições comunicam credibilidade e assim por diante. Confiança e
credibilidade são afetadas, quando o ambiente está inundado.
Quando, em 2018, agentes russos envenenaram Sergej Skripal e
sua filha, as mídias russas atribuíram a culpa à Grã-Bretanha. Ou à Ucrânia. Ou
a ambos. Ou talvez tenha sido um acidente. Ou suicídio. Ou um assassinato por
vingança de parentes. Ou tudo junto. Também se dizia que a Rússia não fabricava
o material danoso aos nervos que fora utilizado. Ou que tinha sido utilizado um
material danoso aos nervos completamente diferente. “O caráter contraditório
das afirmações não é um erro da propaganda do Kremlin, mas sim intenção”,
escreveu o “The Economist”. “O propósito da campanha de desinformação consiste
em afogar os serviços secretos ocidentais em uma cacofonia de afirmações desenfreadas,
em vez de oferecer uma narrativa contrária coerente”. Uma chave para o sucesso
de qualquer campanha de desinformação é que as mídias e os ecossistemas
políticos das sociedades agredidas absorvam as informações falsas e as
reforcem.
O jornalista britânico, Peter Pomerantsev, trabalhou em
Moscou, nos anos noventa, e experimentou como a propaganda russa foi mudando.
“No comunismo”, diz ele, “queria-se convencer as pessoas, de que um excelente
futuro socialista estaria à sua frente. A nova propaganda se concentrava em
causar confusão e disseminar teorias de conspiração”. O Kremlin não utilizava o
seu controle sobre a mídia, para motivar a população a apoiar o governo, mas
sim, para desmotiva-la. “Quando se está rodeado de teorias de conspiração,
tem-se a sensação de não conseguir mudar nada; não há absolutamente nada, em
que a gente possa se orientar”, diz ele. “A metanarrativa (o que está por trás):
não existe alternativa à Putin”.
E, mais uma coisa mudou. A censura tradicional parte do
princípio de que as informações são escassas, e que sua distribuição entre o
público pode ser bloqueada ou restrita. Na era digital, o cientista jurídico
americano, Tim Wu, escreve que há informações (boas e ruins) disponíveis em
abundância. Por que, então, não apostar mais em chamar atenção ao invés de
bloquear informações? Se o espaço é inundado com distração e lixo, consegue-se
manter a atenção do público e domina-lo.
O que acontece, quando não se tem segurança sobre se
a gente é manipulado ou enganado? A gente parte do princípio de estar sendo
sempre manipulado. Ou a gente se recolhe com seus amigos online para uma versão
própria e privada da realidade. Ou cai na lábia de um político demagogo, de
quem se absorve toda palavra que diz.
Já em 2013, muito tempo antes de Donald Trump iniciar sua
carreira política, ele foi referido em um tweet como “most superior troll”, o
melhor de todos os trolls. “Um elogio excelente”, foi o seu comentário. Trump,
seu estrategista Bannon e seus seguidores sabiam o que estavam fazendo, e eram
bons nisso.
Trump disseminava mentiras e distorções em proporções
inimagináveis; foi isso que os muitos verificadores de fatos constataram. Em
janeiro de 2020, os checadores de fatos do “Washington Post” registraram 22
afirmações falsas por dia. Assim como as desinformações russas, também as
mentiras de Trump não eram apenas falsas, mas ridiculamente falsas. Ninguém era
pra ser convencido de qualquer coisa, era apenas uma demonstração de que as regras
normais estavam sendo abolidas e que o líder disso era a mais alta autoridade.
Mal no cargo, ele afirmou que a multidão em sua posse teria
sido maior do que na posse de Obama – apesar de as fotografias provarem o
contrário. Num dia ele dizia que o processo de impeachment causaria danos ao
mercado de ações, no outro dia, ele se gabava, de que o mercado tinha alcançado
novos recordes de ganhos. Quando em uma reunião ministerial transmitida ao vivo
definiu o sistema penal como uma piada e uma chacota, algumas horas depois, a
Casa Branca desmentiu que Trump tinha dito aquilo.
Trump e seus apoiadores transformaram o espaço da informação
num circo. Eles atiçavam a paranoia, repetindo e reforçando teorias de
conspiração. Ignoravam todas as contestações objetivas, repeliam todas as
acusações e chamavam todas as mídias baseadas na realidade de “Fake News”.
Estudos científicos indesejados declaravam como “perseguições políticas”.
Empregavam indignação como uma arma, manipulavam a agenda pública e assim
determinavam os debates nacionais. Produzindo um redemoinho de distorções e
distrações, conseguiam desviar a atenção sobre sua corruptibilidade e
incompetência. Nenhum estudante de ciências da informação contestaria que
Trump, de fato, é “o melhor de todos os trolls”.
Der Spiegel, Nr. 40, 02.10.2021, p.42-9. Tradução: Hans Alfred Trein
Guerras de Informação: Desinformação e Fake News, teorias da
conspiração e Cultura do Cancelamento – Por que sociedades liberais não
conseguem mais concordar a respeito de uma realidade comum. De Jonathan
Rauch
O dia 6 de janeiro provavelmente foi o dia mais obscuro para
a democracia americana, desde a Guerra Civil, há mais de 150 anos. Milhares
protestavam diante do Capitólio em Washington, na esperança de impedir a
pacífica transferência de poder de Donald Trump a Joe Biden. Símbolos cristãos.
Forcas. Homens equipados para o combate. Pessoas derrubando barreiras de
contenção. Agentes de segurança batidos com paus de bandeira e placas de
proteção capturadas, obcecados com gás irritante, um deles implorando por sua
vida: “Eu tenho filhos!” Vidros estilhaçados, portas se abriam, do lado de
dentro os demonstrantes caçavam os porta-vozes do Congresso e o Vice-presidente,
talvez para sequestrá-los, talvez para matá-los. Membros do Congresso, que
naquela hora estavam por confirmar o resultado das eleições, tinham de ser
resgatados de seus perseguidores.
Obviamente esse dia narra uma grande crise política – de um
partido político, os Republicanos, cuja base está crescentemente desiludida e
radicalizada e cujos líderes não conseguem e nem querem mais controlar seus
seguidores. Mas, ele narra também uma guerra de crenças. Fala de pessoas que
não conseguem mais concordar a respeito de uma realidade comum, nem de como
resolver as suas diferenças. A gente poderia chama-la de uma guerra civil
epistêmica.
The Constitution of Knowledge: A Defense of Truth
Jonathan Rauch
Epistemologia é um conceito da filosofia que soa um tanto
esotérico, que achou seu caminho para fora das torres de marfim das
universidades para dentro do senso comum. Na teoria do conhecimento trata-se da
questão: de onde e como sabemos o que sabemos. O que é a realidade? O
que é a verdade? Os invasores do Capitólio foram considerados rebeldes que
queriam destruir a democracia. Eles mesmos, entretanto, enxergavam-se como
salvadores dela, pois estavam convictos de que a eleição tinha sido roubada e
que tinha sido perpetrada uma grande fraude. Mais da metade dos Republicanos
ainda acredita que Donald Trump ganhou a eleição. E uma grande parte deles
ainda responsabiliza os Democratas pelos tumultos no Capitólio.
“The Misinformation Age”, “Truth Decay“, „Post-Truth“, „The
Death of Truth“ são títulos de livros de cientistas e estudiosos que temem,
estarmos perdendo a capacidade de distinguir verdade de inverdade, ou de nem
acreditarmos mais, que haja uma distinção. “Se não estivermos mais em condições
de distinguir o verdadeiro do falso”, assim diz Barack Obama, “então a nossa
democracia não funciona em seus fundamentos”.
Também Obama fala de uma crise epistêmica, na qual a América
está atolada. Contudo, a Europa não deveria sentir-se tão segura. Também lá a
mídia social dissemina indignação, estados dispersam desinformações, partidos
extremistas estão em ascensão, teorias da conspiração estão crescendo, a
insatisfação com os políticos e as elites estabelecidas está aumentando. E,
será que o municiamento da campanha pelo Brexit já não foi um prenúncio para a
espantosa vitória de Trump? Ou será que o assalto ao Reichstag em Berlim por
extremistas e negacionistas do Corona, em agosto, há um ano já não foi uma
premonição do que aconteceria no dia 6 de janeiro em Washington? Durante a
pandemia, formou-se na Alemanha uma realidade alternativa a partir de teorias
da conspiração, fixações direitistas e ideologia de contrários à vacinação. E,
um pouco mais a leste, estão demagogos e déspotas como Viktor Orbán, Recep
Tayyip Erdogan e Wladimir Putin, que projetam suas próprias versões da verdade.
Seres humanos conseguem concordar fundamentalmente apenas
sobre poucas coisas, todavia até há pouco, parecia haver consenso nos EUA e na
Europa sobre como lidar com diferenças de opinião e como superá-las: através de
um debate social baseado em regras com o objetivo de se convencer mutuamente.
Chamo esse processo e suas regras e instituições The Constitution of
Knowledge, uma espécie de lei fundamental, não escrita do saber.
Todas as constituições dispõem de sistemas sociais, para
produzir algo como verdade, pelo menos para o espaço público; uma vez, se
confiava nesse mister sobretudo em autoridades como príncipes, sacerdotes, e
sedes de partidos políticos. A lei fundamental do saber, como a constituição
dos EUA e outros regimes políticos liberais, rompeu com tudo isso. Governantes
foram substituídos por regras e autoridades por pesquisadores e estudiosos,
desviantes não foram mais combatidos como hereges, mas estabeleceu-se uma
cultura de crítica e de busca pelo erro.
Como gerador de saber, liberdade e paz, esse sistema é a
melhor tecnologia social já inventada pelo ser humano. Entretanto, é um sistema
que se baseia em não apenas tolerar manifestações críticas ou escandalosas, mas
de até mesmo protege-las, por mais que elas sejam enganosas, rebeldes,
blasfemas ou fanáticas. Trata-se de um princípio totalmente contraintuitivo,
chegando mesmo ao paradoxo, porque qualquer impulso humano se defende contra
elas, cada geração acha novos motivos de se lhe contrapor.
Um tal sistema não se mantém por si mesmo. Ele depende da
integridade das elites e do apoio pela opinião pública. Ambas estão ameaçadas
na América, como não estiveram desde os anos 1850, quando uma campanha de
desinformação dos favoráveis à secessão no Sul instigava a paranoia e a febre
bélica. Vemos, hoje, na América e em muitos outros países, como os instrumentos
da guerra moderna de informações são refinados e usados, para dividir,
desorientar e desmoralizar. E todos nós somos o público-alvo.
A ameaça vem de duas direções. De uma cultura de trolagem
que dissemina desinformações e realidades alternativas. E de uma cultura do
cancelamento que obrigatoriamente quer fabricar conformidade e excluir
aquelas pessoas que pensam diferentemente. Uma é preponderantemente de direita
e populista, a outra majoritariamente de esquerda e elitista. Uma aposta no
caos e na confusão, a outra em adequação e pressão social. Contudo, suas
intenções se assemelham e, muitas vezes, estranhamente, elas agem como se
fossem de fato aliados em suas aspirações de balançar as regras de nossa
produção de conhecimento.
Ambas, a cultura da trolagem e a cultura do cancelamento
apostam nas técnicas da moderna guerra de informações. Ambas as culturas são
expansivas e sabem como tirar proveito de nossas fraquezas humanas. Ambas
conquistaram importantes posições institucionais, a Casa Branca bem como partes
essenciais do mundo acadêmico. E ambas vivem da celeridade e do impacto de
tecnologias digitais.
Desde Platão, os filósofos sabem que os sentidos enganam
e que a crença pode errar. Mas, por muito tempo, partiam do princípio de que as
pessoas humanas mesmo assim, por sua natureza, buscam a verdade e que a razão -
essa dádiva divina exclusiva à nossa espécie - nos dirige. Entretanto, o
assunto é mais complexo.
Nossa percepção sofre de todo tipo de distorções. Somos
preconceituosos, porque nosso cérebro está voltado a fazer determinadas
suposições ou previsões, para poupar tempo e energia. Na savana, para escapar a
perigos mortais. Em pequenos grupos tribais, onde é necessário confiar nas
informações e na proteção de outros. E também numa sociedade moderna, na qual
quase ninguém tem tempo, para fazer uma imagem completa de um político ou de
pessoas que encontramos. Contudo, num mundo complexo, em que temos de tomar
decisões diferenciadas, nossos preconceitos não apenas podem nos conduzir ao
engano, mas eles nem nos permitem chegar à ideia, de que poderíamos estar
errados.
Acreditamos naquilo que nos parece apropriado e convincente
e, então, procuramos por provas e argumentos para defender nossa posição. É
como se a gente visse três gatos pretos e tirasse daí a conclusão de que todos
os gatos são pretos, sem fazer o esforço de procurar por gatos que talvez não
sejam pretos. Todavia, deveríamos buscar por informações e opiniões que nos
questionam. Lamentavelmente isso, muitas vezes, é a última coisa que fazemos.
Encontrar os próprios erros e corrigi-los é difícil e desagradável.
Quando um grupo se define por uma convicção comum, esta pode
receber o papel de uma religião. Rejeitar uma opinião que vem de pessoas que
pensam da mesma maneira é difícil. O grupo assume o pensar por nós. Para
dizê-lo de outra forma: nós pensamos com nossas tribos. O psicólogo social,
Jonathan Haidt, de Nova York, o formulou da seguinte maneira: quando se trata
de discussões sobre temas de grande carga moral, as pessoas são “muito mais
preocupadas com a aparência e a sua reputação, do que com aquilo que
verdadeiramente pensam”. Para Sócrates, provavelmente, era mais importante ter
razão do que ser benquisto, mas a maioria de nós prefere manter sua boa fama
junto aos companheiros e companheiras de tribo. Uma decisão, sem dúvida,
razoável. Sócrates foi executado por seus concidadãos.
Grupos, comunidades e até mesmo nações em sua totalidade
podem desenvolver cultos a pessoas e decair em ideologias que se encontram em
rota de colisão com a realidade. Trata-se de sistemas que não estão em
condições de se corrigir, sem se autodestruir. Pensa na Alemanha nazista ou na
União Soviética.
Se um sapo tivesse uma teoria errada sobre como pegar
moscas, ele só conseguiria corrigi-la, morrendo. E poderiam passar gerações,
até que a espécie sapo se livrasse de seu equívoco. Seres humanos aprendem
melhor que sapos, e mesmo assim, por muito tempo, não colocamos em dúvida as
nossas ideias e imaginações, tratando-as como sendo vontade de Deus. Em vez de
mandar nossas convicções erradas pro diabo que as carregue, as declaramos
intocáveis, santas. Achar e livrar-se de erros, muitas vezes, durava gerações e
exigia muito derramamento de sangue; muitos erros nunca foram corrigidos.
“Deixem morrer as teorias e não as pessoas”, este é
um pensamento central do filósofo Karl Popper. Nenhum cientista deve pagar com
sua vida ou sua liberdade por um erro. O que lhe possibilita cometer novos
erros a cada novo dia, pois erros são a matéria prima para a produção de
saber. Novas teorias são como mutações: a maioria fracassa, mas algumas
poucas terão êxito e tracionarão, impulsionarão a evolução. Quando os erros
estiverem excluídos, ao final permanece o conhecimento.
Da ideia de Popper a respeito da ciência, como um sistema
que procura erros, não estamos longe das atuais teorias de rede: Saber objetivo
em um mundo incerto não se baseia nos conhecimentos de um indivíduo, por mais
genial que possa ser, mas numa rede social.
Nós, hoje, vivemos num mundo progressista e mais ou menos
pacífico, por estarmos em condições de sermos mais espertos a respeito de
nossos preconceitos e preferências tribais. Não estamos condenados a acreditar
em tudo que nos contam. A evolução nos habilitou a classificar uma grande quantidade
de informações e de rejeitar o que é falso e danoso. Se, quando e quantas vezes
pensamos bem e corretamente, depende de como projetamos o nosso contexto social
e as nossas sociedades.
Esse sistema de um mundo liberal não é perfeito, nem mesmo
por aproximação. Mas, no decurso de sua história, gerou, acumulou e disseminou
saber numa celeridade de perder o fôlego. Hoje, a cada dia, se acrescenta mais
saber a esse cânone dos saberes do que em 200.000 anos de história da
humanidade, antes de Galileo Galilei. E o fato de a maioria das inéditas
inovações mundiais ser desenvolvida, onde as ideias são livres, certamente não
é um acaso.
A lei fundamental do saber tem duas regras decisivas. A
primeira diz que ninguém tem a última palavra. Um conhecimento é sempre apenas
provisório e só vale pelo tempo em que resiste à sua comprovação. Ninguém,
nenhuma autoridade, nenhum ativista pode decidir ou impedir um debate de modo
definitivo, nem determinar de antemão o seu resultado. Quem tentar isso, também
se distancia da produção de saber.
A segunda regra exige renúncia à autoridade pessoal. Cada
afirmação tem de ser comprovável para qualquer pessoa. Ninguém que proponha uma
tese, recebe um cheque em branco, não importa quem ele seja ou a que grupo
pertença.
Ambas as regras excluem muitas manobras retóricas que
podemos verificar diariamente nos debates. Que uma discussão seja por demais
perigosa ou blasfema, muito opressiva ou traumatizante viola quase sempre a
regra: não existe última palavra. Afirmações que começam com “Como Judeu” ou
“como gay” ou “como ministro da informação” ou “como Papa” ou “como “chefe do
Soviét supremo”, podem até fazer sentido, para criar contexto ou dar
referência; porém como argumento violam a regra: nenhuma autoridade individual.
Eu me imagino os nós institucionais como estações de
filtragem e de bombeamento, pelas quais as teorias e as ideias fluem. Cada
estação recolhe e avalia as teses, compara-as com o saber armazenado, procura
por erros e distribui as teses que sobrevivem a outras estações que fazem o
mesmo. Importante, é que essas estações formem uma rede, não uma hierarquia.
Nenhum porteiro individual pode decidir, quais hipóteses entram ou não entram no
sistema. Teses mal fundamentadas não conseguem passar. Não têm vida longa. A
conjugação de bombeamento e filtragem dirige as informações na direção da
verdade.
Agora, imaginem-se que o sistema trabalharia na direção
inversa, porque, numa noite dessas, um demônio maligno tivesse hackeado o
centro de controle, fazendo com que as bombas e os filtros, ao invés de filtrar
erros, simplesmente os passassem adiante. A disseminação de afirmações falsas e
enganosas não seria diminuída, mas acelerada. Agressões pessoais não seriam
excluídas, mas estimuladas. Expertise seria substituída por diletantismo. Hipóteses
não seriam verificadas, mas compartilhadas. Exposição constrangedora seria mais
importante do que comunicação. Fontes não seriam citadas, mas veladas. Esse
sistema não produziria conhecimento nem verdade. Não seria uma tecnologia de
informação, mas de desinformação.
Ninguém previu que algo dessa natureza estava vindo. Nós –
inclusive eu – tínhamos a expectativa de que a tecnologia digital ampliaria e
aprofundaria o mercado das ideias. Mais teorias, mais testadores, mais saber.
Como não pensar que isso poderia ser um salto para frente?
Lamentavelmente esquecemos que a nossa relação com a
realidade depende de regras e instituições. Esquecemos que a superação de
nossos preconceitos cognitivos e tribalmente condicionados dependem precisamente
de acolhermos essas regras e instituições e não superficializa-las a se
tornarem meras “plataformas”. Com outras palavras: Nós esquecemos que
tecnologia de informação se distingue muito de tecnologia do saber. Informações
podem ser simplesmente transmitidas, mas saber é o produto de uma interação
social complexa, saber precisa ser resultado de trabalho. Para transformar
informações em saber num mundo digital, é imprescindível tomar algumas decisões
conceituais importantes. Lamentavelmente as mídias digitais tomaram as decisões
erradas.
Todo o sistema foi otimizado no sentido de criar um público
rápido em reagir em cima de informações que se quer passar às pessoas, sendo
que a correção das informações (isso na melhor hipótese) só desempenha um papel
marginal. As métricas, os algoritmos e os instrumentos de otimização são
sensíveis no que diz respeito à popularidade de seus conteúdos, mas a verdade
lhes é irrelevante. Estão exclusiva- e impiedosamente orientados por clics e
acessos às páginas.
Uma tecnologia de informação, que entrega tanto resultados
falsos como verdadeiros na mesma proporção e que não é capaz de distinguir
entre ambos, não é funcional. Contudo, não é exatamente disso que precisamos:
sistemas de informação que nos protegem de equívocos e preconceitos? As
instituições e os padrões da ciência moderna e do jornalismo não foram criados
precisamente para isso? O modelo de negócios das mídias digitais garante uma
corrida pela atenção. Todavia, além disso, desenvolveu características que não
são apenas cegas para informações falsas, mas até mesmo as reforçam.
Jonathan
Rauch, nascido em 1960, em Phoenix, Arizona, é colaborador da Instituição
Brookings, um Thinktank em Washington, que é relacionado ao Centro Liberal.
Rauch trabalha como jornalista e escritor de livros. Em junho, apareceu o seu
novo livro “The Constitution of Knowledge”. A defense of Truth”. A edição alemã
está em preparação no Hirzel Verlag Stuttgart.
Que me perdoem Camus, seus estudiosos e milhões de admiradores, peço licença para repetir aqui algumas de suas palavras, do clássico “A Peste”, de reivindicar tua audácia, uma ousadia à imagem das tuas, para me ajudar neste momento de súplica rebelde, deste espasmo de “combat” e de “combattant”, diante de atos desumanos e suas terríveis consequências.
Como brasileiro, como tantos outros e perante o mundo, assumo aqui que estamos habitados, sitiados, nestes tempos sombrios de nossa história, por mais de uma terrível peste. Este duplo flagelo, cujas devastações são apenas o acréscimo de nossos próprios erros coletivos, que pode contaminar muito além de nossas fronteiras.
Além da “Peste” biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que no longo prazo pode deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio ambiente e persegue os que a protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé, vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes. Também a peste que castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a violência.
Enfim, a Peste que nos destrói, destrói a razão e o bom senso, que perturba nossa essência, nossa consciência e nega a ciência. A Peste que promove o ódio é inimiga das artes e da cultura. Ela, que tem suas próprias variantes, é obra de um clã. Associada ao distanciamento, ao negacionismo, a desinformação, a mentira, acaba por reprimir, mesmo que temporariamente, nossa revolta, resistência e indignação.
Citamos Camus: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria estúpido’. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós”
Sim, aqui do outro lado do Atlântico, este oceano que nos separa e nos aproxima, amigo francês, vemos de tudo. Da “ocupação” de boa parte de nosso espírito, até ideias muito próximas de um nazismo medíocre, ao menos de um ideal genocida de poder, que se pretende genocida de ideias, mesmo que para isso a morte de concidadãos enteja no caminho, nem que para isso aconteça um massacre humanitário, desnecessário, com centenas de milhares de mortes evitáveis.
O mal está espalhado: meio ambiente, relações internacionais, Fundação Palmares, direitos humanos. Chegamos ao cúmulo de assistirmos um certo secretário de Cultura parafraseando em rede nacional o discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler antissemita, maldita alma da pior das ideologias.
“Tinham visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã”.
No nosso caso (que revoltaria ainda mais os personagens de Camus), morrem inocentes por falta de oxigênio, e/ou por falta de leitos.
É preciso então, mais que resistir. Contra este peste brasileira que veste um terno sombrio com seu sorriso astuto, ataca seus adversários com repressão, agressão e perseguição, resgatando “sobras legais” herdadas da ditadura, como a lei de segurança nacional. Nosso Brasil, depois de ter passado por 20 anos de torturas, assassinatos, censuras, pensávamos nunca mais sofreríamos deste mal.
Ainda Camus: “O padre dizia que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que lhe era habitualmente atribuído, que não se tratava da banal resignação, nem mesmo da difícil humildade“. “Era por isso – e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – preciso querê-la, porque Deus a queria”.
“O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” Este era o slogan da última campanha presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já imaginávamos que por detrás destas palavras, se escondia a carne do mal coberta pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude de seu governo segue princípios divinos.
Pois me diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão desprezível?
“Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.
E me permita completar, e em meu país, perigosamente distraído.
O Brasil que queremos e que o mundo precisa, também negou o horror que se aproximava. E, portanto, há décadas os ratos já estavam aqui mostrando seus rostos e dentes, de olhos revirados, afiando suas unhas. E não nos atentamos. Será que nós, concidadãos, e sobretudo nosso parlamento, também somos negacionistas/cúmplices, ao não querer enxergar o tamanho do perigo, ao nos sujeitarmos a este poder já manchado de sangue e de crimes?
Eu sei que longo prazo, e seja qual for o país, o homem corajoso, o cientista, o resistente conseguirão juntos derrotar o mal. Aqui, não será tão simples assim, porque carregamos nas nossas costas a histórica extrema desigualdade, econômica, social e educacional que esteriliza alguns comportamentos e aniquila a vontade de ruptura.
Toda Peste causa separações profundas e dolorosas. E olhem nós aqui, já isolados, tratados como pária do mundo… mas, sobretudo, separados de nós mesmos, desviados do Brasil que viemos para ser, do nossa essência, da nossa natureza, do país do futuro e de um mundo mais humano e justo. Do país exuberante, da alegria de viver que faz sonhar, que dança, brinca, canta e encanta. Porém, ao nos rendermos ao mal, passivos, mostramos o que temos de pior. O país da miscigenação não pode ser o da negação do seu próprio destino!
“O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam?”
Como fazer para se livrar deste pesadelo? Sobretudo não fiquemos anestesiados, amordaçados por esta “angústia muda”. Fora com este mal maior, fora a estupidez que desencoraja o uso de máscaras, que dificulta o combate ao vírus, que mata e deixa morrer, e ainda insiste!
Vacinemo-nos uma vez por todas! Vacinemo-nos também para expulsar de nós o mal maior, que vai muito além do agente infeccioso microscópico, que gangrena nosso “corps social”.
Porque não basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora Bolsonaro! Caso contrário, nos tornaremos a nossa própria peste.
“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós”.
Nota da redação: este artigo de Raí, dirigente do São Paulo e ex-jogador adorado pela torcida do Paris Saint Germain, foi publicado no jornal francês Le Monde em maio de 2021. Vale a reedição.
Nos acostumamos a acreditar que pensamento e prática são compartimentos distintos da vida. Quem pensa o mundo não faz o mundo e vice-versa. Mas, houve um tempo em que os sábios, eventualmente chamados de cientistas ou artistas, circulavam por diversos campos da cultura. Matemática, física, arquitetura, pintura, escultura eram matéria-prima do pensamento e da ação. A revolução industrial veio derrubar a ideia do saber renascentista e, desde o século 19, a especialização foi ganhando força. Mas, sempre haverá quem nos lembre que a vida é produto de um contexto, de um acúmulo de vivências e ideias. Pense num filósofo que pegou em armas contra o nazismo para depois empunhar as ferramentas da retórica contra o stalinismo, que reconhece a importância dos saberes dos povos originais sem abrir mão de pensar e repensar a educação formal. Com mais de 90 anos, o francês Edgar Morin, nascido e criado Edgar Nahoum no início do século 20, é um dos mais respeitados pensadores do nosso tempo. Com uma gigantesca produção literária, pedagógica e filosófica. Em tempos de radicalismos, Morin é herdeiro do melhor do humanismo francês. Em entrevista ao programa Milênio, Edgar Morin fala sobre o extremismo e o significado da educação na contemporaneidade. Leia abaixo:
Gostaria de começar com uma questão generalista. Sociólogo, antropólogo, filósofo, professor, escritor, e até, às vezes, jornalista. Qual a melhor definição de Edgar Morin e por quê?
A melhor definição seria não ter definição. De se bastar. A palavra “filósofo” talvez me conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se fechou em si mesma e a minha é uma filosofia que observa o mundo, os acontecimentos, etc. Sou muito marginal, quer dizer, sou marginal em todas essas áreas. Então, sou aquele que querem que eu seja.
Seria mais correto falar em um pensador do estilo renascentista, alguém que mistura um pouco essas histórias todas? Não exatamente que mistura, mas que tenta fazer a ligação, que tenta ter uma cultura feita de conhecimentos que hoje estão dispersos. Mas, é verdade que o Renascentismo foi admirável pelos homens que tinham um conhecimento, não digo enciclopédico, mas aberto a várias áreas. Se quiserem, acho que as perguntas fundamentais de cada um a si mesmo, “quem somos nós, para onde vamos e de onde viemos?”, são questões fundamentais, precisamos respondê-las e não afastá-las.
A tragédia do nosso sistema de conhecimento atual é que ele compartimenta tanto os conhecimentos que a gente não consegue se fazer essas perguntas. Se perguntarmos “O que é o ser humano?”, não teremos respostas, porque as diferentes respostas estão dispersas. E, no fundo, é isso que chamo de pensamento complexo, um pensamento que reúne conhecimentos separados.
E esse pensamento complexo do qual o senhor fala estaria em oposição a um pensamento simples. Como se dá esse duelo hoje, num setor que o senhor conhece bem, o ensino? O que chamo de desafio da complexidade é que estamos em um mundo onde encontramos problemas tão difíceis e separados, e uni-los. Como fazer isso? Eu fiz um trabalho ao longo de muitos anos para, de certa forma, elaborar um método que possibilite a união desses saberes, porque não podemos simplesmente sobrepor, é preciso articulá-los.
Acredito que, para uma melhor compreensão da realidade, para entender quem somos, que você é um ser complexo, que eu sou um ser complexo, não podemos estar reduzidos a um único aspecto da personalidade, para saber que a sociedade é complexa, para entender a globalização. Acredito que é sim necessário um pensamento assim, senão temos um pensamento mutilado, o que é muito grave, porque um pensamento mutilado leva a decisões erradas ou ilusórias.
E como traduzir isso para os alunos, para as novas gerações, por meio do ensino? Como é possível encarar essa tarefa tão difícil para os educadores, para aqueles que estudam a educação e querem passar adiante esse pensamento mais complexo, com uma visão um pouco mais ampla do mundo do que aquela homogeneizada, simplista, com certezas bastante frágeis? Eu proponho, no ensino, a introdução de temas fundamentais que ainda não existem. Quer dizer, proponho introduzir o tema do conhecimento, pois damos conhecimento sem nunca saber o que é o conhecimento. Mas, como todo conhecimento é uma tradução seguida de uma reconstrução, sempre existe o risco do erro, o risco de alucinações, sempre.
Eu proponho o método de incluir esses temas, de incluir o tema da compreensão humana. É preciso ensinar a compreensão humana, porque é um mal do qual todos sofrem em graus diferentes. Começa na família, onde filhos não são compreendidos pelos pais e os pais não entendem seus filhos. Pode continuar na escola, com os professores e os colegas. Continua na vida do trabalho, no amor e acho que temos que ensinar também a enfrentar as incertezas. Porque em todo destino humano há uma incerteza desde o nascimento. A única certeza é a morte e não sabemos quando. Mas, é claro que estamos em meio, não apenas das incertezas que chamaria de normais, de saúde, casamento, trabalho, mas também uma incerteza histórica impressionante.
Antes, a gente achava que existia um progresso certo e agora o futuro é uma angústia. Por isso, suportar, enfrentar a incerteza é não naufragar na angústia, saber que é preciso, de certa forma, participar com o outro, de algo em comum, porque a única reposta aos que têm a angústia de morrer é o amor e a vida em comum.
Isso nos traz a um dos muitos caminhos que temos para nos conhecer e conhecer o outro, que é a participação política. E o senhor, desde muito cedo, teve uma participação política muito importante. Na Resistência e, depois, com suas relações no Partido Comunista. Mas, muito cedo também, o senhor aprendeu a fazer essa autocrítica e não hesitou em criticar duramente o Partido Comunista e a ascensão da URSS Stalinista, depois da China maoísta. Mais recentemente, a globalização. Politicamente, hoje, qual a luta que o senhor considera que vale a pena lutar? Sabemos que o mundo vive uma crise profunda de representação nas democracias, nos partidos, nos sindicatos. Como fazer essa luta política? Antes de mais nada, é preciso entender bem que estamos ameaçados, cada vez mais, por duas barbáries. A primeira barbárie a gente conhece, vem desde os primórdios da história, que é a crueldade, a dominação, a subserviência, a tortura, tudo isso. A segunda barbárie, ao contrário, é uma barbárie fria e gelada, a do cálculo econômico. Porque quando existe um pensamento fundado exclusivamente em contas, não se vê mais os seres humanos. O que se vê são estatísticas, produtos burros. No fundo, o cálculo, que é útil, mas como instrumento, se torna um meio de conhecimento, mas de falso conhecimento, que mascara a realidade humana.
No fundo, assim que entra o cálculo, os humanos são tratados como objetos. E hoje, com o domínio justamente do poder e do dinheiro, com o domínio do mundo burocrático, tudo isso, é o reino da barbárie gelada. Se preferir, é preciso repensar a política e nós estamos na pré-história desse momento. É preciso saber se as forças negativas, a corrente negativa vai ser mais forte do que as forças positivas que tentam se levantar hoje no mundo e são ainda muito dispersas.
Como fazer com que todas essas ferramentas, que existem e foram desenvolvidas nas últimas décadas, possam ser utilizadas de uma forma, digamos, mais positiva? Antes de mais nada, é verdade que informação não é conhecimento. Conhecimento é a organização das informações. Então, estamos imersos em informações e como elas se sucedem dia a dia, de certa forma, não temos como ter consciência disso. De outra parte, os conhecimentos, como eu disse, estão dispersos. É preciso uni-los, mas falta esse pensamento complexo. Dito isso, quando pensamos sobre a internet, a internet virou uma força incrível, eu diria que em todas as direções, tanto para o lado negativo quando para o positivo.
O que há de extraordinário na internet e em todos esses meios que você citou é que, hoje, um Estado pode controlar um indivíduo em todos os seus gestos e atos, mesmo quando ele está na rua lendo um jornal. Podemos ser controlados. Mas, ao mesmo tempo, através da internet, um ou dois indivíduos razoavelmente talentosos em matemática podem decifrar os segredos do Pentágono, segredos diplomáticos dos mais importantes do Estado mais forte do mundo.
O senhor acha que neste mundo, com tantas coisas que regridem, um país como o Brasil que o senhor conhece tanto tem algo a ensinar aos outros notadamente quando se vê essa sociedade mestiça, essa mistura que existe de verdade. Mesmo que tenhamos os nossos problemas com o racismo, nossos problemas de exclusão e tudo isso. Mas, o senhor acha que essa sociedade brasileira, com todos esses problemas, tem algo a ensinar? Apesar dos limites, digamos, do caráter de segregação social, é uma sociedade indiscutivelmente mestiça, que conseguiu integrar contribuições vindas da África. Nunca em outro país a contribuição africana foi tão intensamente integrada nos costumes, nem que seja na gastronomia, nas danças, nos cantos. É um país muito interessante também onde, no Sul, que tem muitos imigrantes alemães e italianos e o Nordeste, que é muito diferente com sua população, os caboclos… Apesar dessa grande diversidade, é um país que nunca quis se separar. Vejam a Itália, a Itália do Norte quer se separar da do Sul, veja a Inglaterra, a Escócia quer deixar o Reino Unido.
No Brasil, mesmo com toda essa extraordinária heterogeneidade, existe uma cultura comum que mantém a unidade. Ou seja, pra mim, o Brasil é um grande estimulante. Um estimulante intelectual, mas também humano, pois tem um calor humano, um sentimento de familiaridade, que também perdemos na França e encontramos, muito vivo, no Brasil.
Eu já o vi e li dizendo que o monoteísmo era o flagelo da humanidade. Queria saber se o senhor mantém essa posição hoje, frente ao que vemos no Oriente Médio e nas lutas nacionalistas que misturam a religião à importância nacional. A fórmula é parcialmente verdadeira. Por quê? Porque há outro aspecto muito presente no Cristianismo, sobretudo no Cristianismo de caráter evangélico, e também no Islã, onde também há como princípio um Deus magnânimo e misericordioso. Existe um universalismo, porque o Cristianismo e o Islã se dirigem a todos os homens, a todos os seres humanos, não importa a raça. Quando vemos a história do Cristianismo, há uma renovação dessa fonte de fraternidade e de evangelismo. Mas, quando olhamos a mesma história do Cristianismo, também vemos guerras religiosas, a Inquisição, as perseguições, as fogueiras, as cruzadas e tudo isso. E quando olhamos para a história do Islã também.
Dito isso, o que é o monoteísmo? É o que vê a unidade no mundo. O que é o politeísmo? É o que vê a diversidade no mundo, que vê, como os antigos gregos, mas também no Candomblé, vocês têm Iemanjá, deusa das águas, têm os outros, dá pra dizer que são complementares. Uns veem a diversidade e outros a unidade. Mas, o politeísmo sempre foi mais tolerante do que o monoteísmo, sempre foi menos dogmático. E, se hoje, o Hinduísmo fica agressivo contra o Islã é que ele próprio vive uma luta entre duas religiões, mas, em princípio, as religiões politeístas são mais… Mas, como estou fora dessas religiões, apenas constato. Acredito que a virtude dos politeístas seja a de respeitar também a natureza. Quando se tem a Pacha Mama, da tradição andina, temos o amor da mãe terra. O Cristianismo separou, como aliás o Islã, os dois tendo a mesma fonte, a Bíblia. Dizem que Deus criou o homem à sua imagem, diferente da dos animais. Paulo disse que os humanos podem ressuscitar, mas os animais não.
Criamos a dissociação com a natureza, acentuada pela civilização ocidental, dizendo que, através da ciência e da tecnologia podemos dominar e controlar a natureza. Mas, é preciso reencontrar o sentido da natureza de uma forma não mais politeísta, mas humana, quer dizer, sentir essa vida, esse sentimento que expressava Spinoza, que a criatividade e a divindade estão na natureza.
Qual seria, então, na sua opinião, o maior desafio do ensino escolar hoje no mundo? Fazer esse equilíbrio sociedade tecnológica e humana, o equilíbrio entre o dinheiro e o saber, entre o humanismo e a individualidade? Antes de mais nada, é não se deixar contaminar pela lógica da empresa. Uma universidade não é uma empresa, é como um hospital, não é uma empresa. A lógica não é a do lucro, não é a dos benefícios, não é a do equilíbrio orçamentário, é outra lógica. Depois, não obedecer ao dogma da avaliação. Avaliamos e avaliamos, quando, na realidade, a avaliação também é um jeito de calcular que ignora a complexidade das realidades humanas.
O objetivo do ensino deve ser ensinar a viver. Viver não é só se adaptar ao mundo moderno. Viver quer dizer como, efetivamente, não somente tratar as grandes questões de que falamos, mas como viver na nossa civilização, como viver na sociedade de consumo. Produzimos coisas descartáveis em vez de objetos reparáveis, que possam ser consertados. Então há toda uma lógica e é preciso dar, no ensino, os meios àqueles que vão se tornar adultos, de poder escolher alimentos, consumo, não usar o que não é bom e favorecer o que tem qualidade e o que é artesanal.
Acho que é preciso ensinar não só a utilizar a internet, mas a conhecer o mundo da internet. É preciso ensinar a saber como é selecionada a informação na mídia, pois a informação sempre passa por uma seleção – como e por quê? É preciso ensinar, há todo um ensinamento, para nossa civilização, que não está pronto. Tem isso e ainda o ensino dos problemas fundamentais e globais. Essa é a reforma fundamental que precisa ser feita.
Para terminar, professor, o que é que alimenta suas esperanças num mundo melhor? A esperança é a ideia que o futuro já que é incerto e já que é desconhecido, pode justamente ser melhor e, no fundo, meu sentimento profundo é que eu sou um pedacinho temporário, numa gigantesca aventura, que é a da humanidade, que começou, talvez, há sete milhões de anos, quando um primata virou bípede. Que continuou e seguiu pela pré-história, a história, o fim dos impérios, os acontecimentos, as guerras mundiais. Uma aventura absolutamente incrível. E como o passado é incrível, eu sei que o futuro também será incrível.
Mas, sinto que faço parte dessa totalidade, querendo ou não. Isso também me leva para frente. Não renuncio. Sem querer, sou animado por esse sentimento de estar na aventura e quero também dar, mesmo que seja pequena, minha contribuição a isso. É isso que também me encoraja. Não tenho só esperança, tampouco desespero. Mesmo que saiba que a vida é, ao mesmo tempo, magnífica e trágica.
Uma das minhas máximas favoritas é: “o que não se regenera, degenera.” Nada está estabelecido para sempre. Se você tem a democracia, não é para sempre, pode degenerar. Se acabou com a tortura, não é para sempre, pode voltar. Quer dizer, é preciso estar com as forças da regeneração e sentir a necessidade dessas forças de regeneração me tonifica, me faz bem e espero fazer o bem também.