sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Os infômanos estão exaustos

 O filme-ensaio 'Sociedade do cansaço' desvenda os males do neocapitalismo no tempo da mensagem do 'sim, nós podemos'


Sobe ao palco das estrelas da cultura, dos que refletem sobre a nossa vida de hoje e o futuro que aguarda a espécie humana, o filósofo sul-coreano Byung Chulk-Han, de 62 anos, radicado na Alemanha, professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim.

O ex-estudante de Metalurgia em Seul quando jovem, é autor de vários ensaios com originais críticas à comunicação na sociedade atual do trabalho exaustivo, da hiper atividade e da auto-exibição; até como ferramenta de sobrevivência social ou profissional.

Esse rock star da cultura, como ironicamente o chamam os ressentidos com seu sucesso, é também autor de análises sobre o culto obsessivo às informações partilhadas compulsoriamente e oferecidas pelos smartphones que ''nos submergem em um turbilhão de atualidades, e são artigos do culto da dominação digital'', em suas palavras.

''O dispositivo age como um rosário. Mantemos o celular sempre ao alcance de nossas mãos e o like é o amém digital'', Byung escreve no seu livro Sociedade do Cansaço (Ed. Vozes/2015). Este é um dos seus trabalhos mais famosos da série de pequenos livros que vendem como água e esgotam nas principais livrarias do Rio de Janeiro; especialmente entre seus leitores jovens.

Fala-se até que as idéias de Byung Chulk Han estará incluído nas provas do próximo Enem, em novembro. Acho difícil. Em todo caso.

 Mas além dos seus livros, há um documentário, um ensaio-filme de cerca de uma hora, de autoria da artista plástica Isabela Gressner, narrado em alemão e legendado em português que pode ser encontrado no Youtube com o título Sociedade do cansaço. Vale assisti-lo. Além da boa qualidade cinematográfica acompanha com beleza plástica o pensamento filosófico de Byung.

Nele, o coreano reforça: mesmo com o amém digital continuamos nos ''confessando, nos desnudando e pedindo que... prestem atenção em nós''.

''A fadiga da informação é uma doença mental causada pela exposição excessiva a informações'', informa o filósofo no filme. ''As populações sofrem de depressão, ansiedade, falta de concentração e nervosismo. E a mídia digital veio multiplicar a quantidade de informações disponíveis, tendência exacerbada pelo smartphone com o qual a pessoa estabelece uma relação obsessiva e compulsiva''.

''No metrô, por exemplo', ele comenta num dos trechos das suas conferências e apresentadas no doc de Gressner, ''ninguém, nem as crianças, se entreolham e nem olham para outro lugar que não seja o próprio celular. É uma compulsão que me faz lembrar de zumbis com a alma vendida para os dispositivos digitais''.



Passeando pelas ruas de Seul numa das viagens anuais de inverno que ele faz ao seu país, Byung nos traz uma Coréia do Sul bem diversa do que o retrato que a mídia corporativa brasileira vende no noticiário sobre Seul, templo máximo do neoliberalismo bem sucedido segundo as notícias. Mas é justo lá que 50% dos que se encontram empregados revelam que trabalham mais do que deveriam e onde são grandes as tensões nos ambientes das empresas.

"A maioria contava com emprego estável, mas hoje trabalha com contratos temporários. É neste contexto que ''o smartphone se tornou uma espécie de novo e indispensável órgão do próprio corpo'', observa um dos entrevistados de Chulk-Han em Sociedade do cansaço. ''E eu gostaria de saber porque as pessoas amam tanto se expor,'' ele se pergunta.

No filme, o filósofo relembra suas referências: Hegel, Ehrenberg, Peter Handke, Wim Wenders, e conversa com o diretor de cinema Park Chan-wook. Reflete também sobre o alto índice de casos de suicídios na Coréia do Sul.

''Vivemos esgotados e deprimidos e estamos obcecados com informações e dados. Somos infômanos; somos pessoas que compilam e compartilham obsessivamente informações sobre sua vida pessoal'', diz Byung.

Na sua análise, a sociedade disciplinar e repressora do século 20 descrita por Michel Foucault perdeu espaço para uma nova forma de organização: a violência neuronal.

'' A onda do 'eu consigo' e do 'yes, we can', slogan utilizado pelo presidente estadunidense Barack Obama, tem gerado um aumento significativo de doenças. Depressão, transtornos de personalidade, síndromes como hiperatividade e burnout. Na sociedade do desempenho todos precisam ser autênticos, inovadores e produtivos''.

A série coreana Round 6, que vem estourando índices de audiência na Netflix, nos quatro cantos do mundo, reforça as observações de Byung e aponta na mesma direção. Ela traz um mundo distópico e violentíssimo no qual os participantes se dedicam com paixão e integralmente a um jogo que acena com a possibilidade de seus participantes ganharem fortunas para saldarem suas dívidas, mesmo com risco de morte. A crescente desigualdade social na sociedade coreana é um fato já denunciado.

Os altos níveis de suicídio na Coréia do Sul, um dos maiores do mundo, vão na contramão do impulso sugerido pelo aumento de 100% na busca por aulas do idioma coreano, aqui, nos cursos de idiomas brasileiros, em comparação com um ano atrás. O aumento nessa demanda começou no último verão, mas foi impulsionado pela popularidade da série Round 6.

Alguns dos pontos abordados no documentário são assuntos de outro livro de Chulk-Han. Em Sociedade da transparência o autor comenta como o significado de honestidade perde valor na atual ''sociedade da desconfiança''. E diz: ''Acreditávamos que o espaço da comunicação seria um espaço de liberdade; mas os espaços de liberdade estão se tornando espaços de controle''.

''Controle e exploração são realizados através de exploração voluntária, de exibição. Essa é uma compulsão que deriva da lógica do capital. Quanto mais comunicação, mais ganha o capital''.

No inquietante filme, Byung conclui: ''O projeto de liberdade tão caro à civilização ocidental pode ter fracassado. O 'sim, nós podemos', pode ser um grito de liberdade, mas pode conter também um aspecto diabólico''.

O fato é que suas idéias, além de uma advertência, são um fértil campo para debates sobre o tema da comunicação digital e o bombardeio de informações de toda espécie a que somos submetidos.




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