Der Spiegel, Nr. 40, 02.10.2021, p.42-9. Tradução: Hans Alfred Trein
Guerras de Informação: Desinformação e Fake News, teorias da conspiração e Cultura do Cancelamento – Por que sociedades liberais não conseguem mais concordar a respeito de uma realidade comum. De Jonathan Rauch
O dia 6 de janeiro provavelmente foi o dia mais obscuro para
a democracia americana, desde a Guerra Civil, há mais de 150 anos. Milhares
protestavam diante do Capitólio em Washington, na esperança de impedir a
pacífica transferência de poder de Donald Trump a Joe Biden. Símbolos cristãos.
Forcas. Homens equipados para o combate. Pessoas derrubando barreiras de
contenção. Agentes de segurança batidos com paus de bandeira e placas de
proteção capturadas, obcecados com gás irritante, um deles implorando por sua
vida: “Eu tenho filhos!” Vidros estilhaçados, portas se abriam, do lado de
dentro os demonstrantes caçavam os porta-vozes do Congresso e o Vice-presidente,
talvez para sequestrá-los, talvez para matá-los. Membros do Congresso, que
naquela hora estavam por confirmar o resultado das eleições, tinham de ser
resgatados de seus perseguidores.
Obviamente esse dia narra uma grande crise política – de um
partido político, os Republicanos, cuja base está crescentemente desiludida e
radicalizada e cujos líderes não conseguem e nem querem mais controlar seus
seguidores. Mas, ele narra também uma guerra de crenças. Fala de pessoas que
não conseguem mais concordar a respeito de uma realidade comum, nem de como
resolver as suas diferenças. A gente poderia chama-la de uma guerra civil
epistêmica.
Epistemologia é um conceito da filosofia que soa um tanto
esotérico, que achou seu caminho para fora das torres de marfim das
universidades para dentro do senso comum. Na teoria do conhecimento trata-se da
questão: de onde e como sabemos o que sabemos. O que é a realidade? O
que é a verdade? Os invasores do Capitólio foram considerados rebeldes que
queriam destruir a democracia. Eles mesmos, entretanto, enxergavam-se como
salvadores dela, pois estavam convictos de que a eleição tinha sido roubada e
que tinha sido perpetrada uma grande fraude. Mais da metade dos Republicanos
ainda acredita que Donald Trump ganhou a eleição. E uma grande parte deles
ainda responsabiliza os Democratas pelos tumultos no Capitólio.
“The Misinformation Age”, “Truth Decay“, „Post-Truth“, „The
Death of Truth“ são títulos de livros de cientistas e estudiosos que temem,
estarmos perdendo a capacidade de distinguir verdade de inverdade, ou de nem
acreditarmos mais, que haja uma distinção. “Se não estivermos mais em condições
de distinguir o verdadeiro do falso”, assim diz Barack Obama, “então a nossa
democracia não funciona em seus fundamentos”.
Também Obama fala de uma crise epistêmica, na qual a América
está atolada. Contudo, a Europa não deveria sentir-se tão segura. Também lá a
mídia social dissemina indignação, estados dispersam desinformações, partidos
extremistas estão em ascensão, teorias da conspiração estão crescendo, a
insatisfação com os políticos e as elites estabelecidas está aumentando. E,
será que o municiamento da campanha pelo Brexit já não foi um prenúncio para a
espantosa vitória de Trump? Ou será que o assalto ao Reichstag em Berlim por
extremistas e negacionistas do Corona, em agosto, há um ano já não foi uma
premonição do que aconteceria no dia 6 de janeiro em Washington? Durante a
pandemia, formou-se na Alemanha uma realidade alternativa a partir de teorias
da conspiração, fixações direitistas e ideologia de contrários à vacinação. E,
um pouco mais a leste, estão demagogos e déspotas como Viktor Orbán, Recep
Tayyip Erdogan e Wladimir Putin, que projetam suas próprias versões da verdade.
Seres humanos conseguem concordar fundamentalmente apenas
sobre poucas coisas, todavia até há pouco, parecia haver consenso nos EUA e na
Europa sobre como lidar com diferenças de opinião e como superá-las: através de
um debate social baseado em regras com o objetivo de se convencer mutuamente.
Chamo esse processo e suas regras e instituições The Constitution of
Knowledge, uma espécie de lei fundamental, não escrita do saber.
Todas as constituições dispõem de sistemas sociais, para
produzir algo como verdade, pelo menos para o espaço público; uma vez, se
confiava nesse mister sobretudo em autoridades como príncipes, sacerdotes, e
sedes de partidos políticos. A lei fundamental do saber, como a constituição
dos EUA e outros regimes políticos liberais, rompeu com tudo isso. Governantes
foram substituídos por regras e autoridades por pesquisadores e estudiosos,
desviantes não foram mais combatidos como hereges, mas estabeleceu-se uma
cultura de crítica e de busca pelo erro.
Como gerador de saber, liberdade e paz, esse sistema é a
melhor tecnologia social já inventada pelo ser humano. Entretanto, é um sistema
que se baseia em não apenas tolerar manifestações críticas ou escandalosas, mas
de até mesmo protege-las, por mais que elas sejam enganosas, rebeldes,
blasfemas ou fanáticas. Trata-se de um princípio totalmente contraintuitivo,
chegando mesmo ao paradoxo, porque qualquer impulso humano se defende contra
elas, cada geração acha novos motivos de se lhe contrapor.
Um tal sistema não se mantém por si mesmo. Ele depende da
integridade das elites e do apoio pela opinião pública. Ambas estão ameaçadas
na América, como não estiveram desde os anos 1850, quando uma campanha de
desinformação dos favoráveis à secessão no Sul instigava a paranoia e a febre
bélica. Vemos, hoje, na América e em muitos outros países, como os instrumentos
da guerra moderna de informações são refinados e usados, para dividir,
desorientar e desmoralizar. E todos nós somos o público-alvo.
A ameaça vem de duas direções. De uma cultura de trolagem
que dissemina desinformações e realidades alternativas. E de uma cultura do
cancelamento que obrigatoriamente quer fabricar conformidade e excluir
aquelas pessoas que pensam diferentemente. Uma é preponderantemente de direita
e populista, a outra majoritariamente de esquerda e elitista. Uma aposta no
caos e na confusão, a outra em adequação e pressão social. Contudo, suas
intenções se assemelham e, muitas vezes, estranhamente, elas agem como se
fossem de fato aliados em suas aspirações de balançar as regras de nossa
produção de conhecimento.
Ambas, a cultura da trolagem e a cultura do cancelamento
apostam nas técnicas da moderna guerra de informações. Ambas as culturas são
expansivas e sabem como tirar proveito de nossas fraquezas humanas. Ambas
conquistaram importantes posições institucionais, a Casa Branca bem como partes
essenciais do mundo acadêmico. E ambas vivem da celeridade e do impacto de
tecnologias digitais.
Desde Platão, os filósofos sabem que os sentidos enganam
e que a crença pode errar. Mas, por muito tempo, partiam do princípio de que as
pessoas humanas mesmo assim, por sua natureza, buscam a verdade e que a razão -
essa dádiva divina exclusiva à nossa espécie - nos dirige. Entretanto, o
assunto é mais complexo.
Nossa percepção sofre de todo tipo de distorções. Somos
preconceituosos, porque nosso cérebro está voltado a fazer determinadas
suposições ou previsões, para poupar tempo e energia. Na savana, para escapar a
perigos mortais. Em pequenos grupos tribais, onde é necessário confiar nas
informações e na proteção de outros. E também numa sociedade moderna, na qual
quase ninguém tem tempo, para fazer uma imagem completa de um político ou de
pessoas que encontramos. Contudo, num mundo complexo, em que temos de tomar
decisões diferenciadas, nossos preconceitos não apenas podem nos conduzir ao
engano, mas eles nem nos permitem chegar à ideia, de que poderíamos estar
errados.
Acreditamos naquilo que nos parece apropriado e convincente
e, então, procuramos por provas e argumentos para defender nossa posição. É
como se a gente visse três gatos pretos e tirasse daí a conclusão de que todos
os gatos são pretos, sem fazer o esforço de procurar por gatos que talvez não
sejam pretos. Todavia, deveríamos buscar por informações e opiniões que nos
questionam. Lamentavelmente isso, muitas vezes, é a última coisa que fazemos.
Encontrar os próprios erros e corrigi-los é difícil e desagradável.
Quando um grupo se define por uma convicção comum, esta pode
receber o papel de uma religião. Rejeitar uma opinião que vem de pessoas que
pensam da mesma maneira é difícil. O grupo assume o pensar por nós. Para
dizê-lo de outra forma: nós pensamos com nossas tribos. O psicólogo social,
Jonathan Haidt, de Nova York, o formulou da seguinte maneira: quando se trata
de discussões sobre temas de grande carga moral, as pessoas são “muito mais
preocupadas com a aparência e a sua reputação, do que com aquilo que
verdadeiramente pensam”. Para Sócrates, provavelmente, era mais importante ter
razão do que ser benquisto, mas a maioria de nós prefere manter sua boa fama
junto aos companheiros e companheiras de tribo. Uma decisão, sem dúvida,
razoável. Sócrates foi executado por seus concidadãos.
Grupos, comunidades e até mesmo nações em sua totalidade
podem desenvolver cultos a pessoas e decair em ideologias que se encontram em
rota de colisão com a realidade. Trata-se de sistemas que não estão em
condições de se corrigir, sem se autodestruir. Pensa na Alemanha nazista ou na
União Soviética.
Se um sapo tivesse uma teoria errada sobre como pegar
moscas, ele só conseguiria corrigi-la, morrendo. E poderiam passar gerações,
até que a espécie sapo se livrasse de seu equívoco. Seres humanos aprendem
melhor que sapos, e mesmo assim, por muito tempo, não colocamos em dúvida as
nossas ideias e imaginações, tratando-as como sendo vontade de Deus. Em vez de
mandar nossas convicções erradas pro diabo que as carregue, as declaramos
intocáveis, santas. Achar e livrar-se de erros, muitas vezes, durava gerações e
exigia muito derramamento de sangue; muitos erros nunca foram corrigidos.
“Deixem morrer as teorias e não as pessoas”, este é
um pensamento central do filósofo Karl Popper. Nenhum cientista deve pagar com
sua vida ou sua liberdade por um erro. O que lhe possibilita cometer novos
erros a cada novo dia, pois erros são a matéria prima para a produção de
saber. Novas teorias são como mutações: a maioria fracassa, mas algumas
poucas terão êxito e tracionarão, impulsionarão a evolução. Quando os erros
estiverem excluídos, ao final permanece o conhecimento.
Da ideia de Popper a respeito da ciência, como um sistema
que procura erros, não estamos longe das atuais teorias de rede: Saber objetivo
em um mundo incerto não se baseia nos conhecimentos de um indivíduo, por mais
genial que possa ser, mas numa rede social.
Nós, hoje, vivemos num mundo progressista e mais ou menos
pacífico, por estarmos em condições de sermos mais espertos a respeito de
nossos preconceitos e preferências tribais. Não estamos condenados a acreditar
em tudo que nos contam. A evolução nos habilitou a classificar uma grande quantidade
de informações e de rejeitar o que é falso e danoso. Se, quando e quantas vezes
pensamos bem e corretamente, depende de como projetamos o nosso contexto social
e as nossas sociedades.
Esse sistema de um mundo liberal não é perfeito, nem mesmo
por aproximação. Mas, no decurso de sua história, gerou, acumulou e disseminou
saber numa celeridade de perder o fôlego. Hoje, a cada dia, se acrescenta mais
saber a esse cânone dos saberes do que em 200.000 anos de história da
humanidade, antes de Galileo Galilei. E o fato de a maioria das inéditas
inovações mundiais ser desenvolvida, onde as ideias são livres, certamente não
é um acaso.
A lei fundamental do saber tem duas regras decisivas. A
primeira diz que ninguém tem a última palavra. Um conhecimento é sempre apenas
provisório e só vale pelo tempo em que resiste à sua comprovação. Ninguém,
nenhuma autoridade, nenhum ativista pode decidir ou impedir um debate de modo
definitivo, nem determinar de antemão o seu resultado. Quem tentar isso, também
se distancia da produção de saber.
A segunda regra exige renúncia à autoridade pessoal. Cada
afirmação tem de ser comprovável para qualquer pessoa. Ninguém que proponha uma
tese, recebe um cheque em branco, não importa quem ele seja ou a que grupo
pertença.
Ambas as regras excluem muitas manobras retóricas que
podemos verificar diariamente nos debates. Que uma discussão seja por demais
perigosa ou blasfema, muito opressiva ou traumatizante viola quase sempre a
regra: não existe última palavra. Afirmações que começam com “Como Judeu” ou
“como gay” ou “como ministro da informação” ou “como Papa” ou “como “chefe do
Soviét supremo”, podem até fazer sentido, para criar contexto ou dar
referência; porém como argumento violam a regra: nenhuma autoridade individual.
Eu me imagino os nós institucionais como estações de
filtragem e de bombeamento, pelas quais as teorias e as ideias fluem. Cada
estação recolhe e avalia as teses, compara-as com o saber armazenado, procura
por erros e distribui as teses que sobrevivem a outras estações que fazem o
mesmo. Importante, é que essas estações formem uma rede, não uma hierarquia.
Nenhum porteiro individual pode decidir, quais hipóteses entram ou não entram no
sistema. Teses mal fundamentadas não conseguem passar. Não têm vida longa. A
conjugação de bombeamento e filtragem dirige as informações na direção da
verdade.
Agora, imaginem-se que o sistema trabalharia na direção
inversa, porque, numa noite dessas, um demônio maligno tivesse hackeado o
centro de controle, fazendo com que as bombas e os filtros, ao invés de filtrar
erros, simplesmente os passassem adiante. A disseminação de afirmações falsas e
enganosas não seria diminuída, mas acelerada. Agressões pessoais não seriam
excluídas, mas estimuladas. Expertise seria substituída por diletantismo. Hipóteses
não seriam verificadas, mas compartilhadas. Exposição constrangedora seria mais
importante do que comunicação. Fontes não seriam citadas, mas veladas. Esse
sistema não produziria conhecimento nem verdade. Não seria uma tecnologia de
informação, mas de desinformação.
Ninguém previu que algo dessa natureza estava vindo. Nós –
inclusive eu – tínhamos a expectativa de que a tecnologia digital ampliaria e
aprofundaria o mercado das ideias. Mais teorias, mais testadores, mais saber.
Como não pensar que isso poderia ser um salto para frente?
Lamentavelmente esquecemos que a nossa relação com a
realidade depende de regras e instituições. Esquecemos que a superação de
nossos preconceitos cognitivos e tribalmente condicionados dependem precisamente
de acolhermos essas regras e instituições e não superficializa-las a se
tornarem meras “plataformas”. Com outras palavras: Nós esquecemos que
tecnologia de informação se distingue muito de tecnologia do saber. Informações
podem ser simplesmente transmitidas, mas saber é o produto de uma interação
social complexa, saber precisa ser resultado de trabalho. Para transformar
informações em saber num mundo digital, é imprescindível tomar algumas decisões
conceituais importantes. Lamentavelmente as mídias digitais tomaram as decisões
erradas.
Todo o sistema foi otimizado no sentido de criar um público
rápido em reagir em cima de informações que se quer passar às pessoas, sendo
que a correção das informações (isso na melhor hipótese) só desempenha um papel
marginal. As métricas, os algoritmos e os instrumentos de otimização são
sensíveis no que diz respeito à popularidade de seus conteúdos, mas a verdade
lhes é irrelevante. Estão exclusiva- e impiedosamente orientados por clics e
acessos às páginas.
Uma tecnologia de informação, que entrega tanto resultados
falsos como verdadeiros na mesma proporção e que não é capaz de distinguir
entre ambos, não é funcional. Contudo, não é exatamente disso que precisamos:
sistemas de informação que nos protegem de equívocos e preconceitos? As
instituições e os padrões da ciência moderna e do jornalismo não foram criados
precisamente para isso? O modelo de negócios das mídias digitais garante uma
corrida pela atenção. Todavia, além disso, desenvolveu características que não
são apenas cegas para informações falsas, mas até mesmo as reforçam.
Jonathan Rauch, nascido em 1960, em Phoenix, Arizona, é colaborador da Instituição Brookings, um Thinktank em Washington, que é relacionado ao Centro Liberal. Rauch trabalha como jornalista e escritor de livros. Em junho, apareceu o seu novo livro “The Constitution of Knowledge”. A defense of Truth”. A edição alemã está em preparação no Hirzel Verlag Stuttgart.
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