A peste, texto de Raí no jornal Le Monde
Que me perdoem Camus, seus estudiosos e milhões de admiradores, peço licença para repetir aqui algumas de suas palavras, do clássico “A Peste”, de reivindicar tua audácia, uma ousadia à imagem das tuas, para me ajudar neste momento de súplica rebelde, deste espasmo de “combat” e de “combattant”, diante de atos desumanos e suas terríveis consequências.
Como brasileiro, como tantos outros e perante o mundo, assumo aqui que estamos habitados, sitiados, nestes tempos sombrios de nossa história, por mais de uma terrível peste. Este duplo flagelo, cujas devastações são apenas o acréscimo de nossos próprios erros coletivos, que pode contaminar muito além de nossas fronteiras.
Além da “Peste” biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que no longo prazo pode deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio ambiente e persegue os que a protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé, vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes. Também a peste que castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a violência.
Enfim, a Peste que nos destrói, destrói a razão e o bom senso, que perturba nossa essência, nossa consciência e nega a ciência. A Peste que promove o ódio é inimiga das artes e da cultura. Ela, que tem suas próprias variantes, é obra de um clã. Associada ao distanciamento, ao negacionismo, a desinformação, a mentira, acaba por reprimir, mesmo que temporariamente, nossa revolta, resistência e indignação.
Citamos Camus: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria estúpido’. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós”
Sim, aqui do outro lado do Atlântico, este oceano que nos separa e nos aproxima, amigo francês, vemos de tudo. Da “ocupação” de boa parte de nosso espírito, até ideias muito próximas de um nazismo medíocre, ao menos de um ideal genocida de poder, que se pretende genocida de ideias, mesmo que para isso a morte de concidadãos enteja no caminho, nem que para isso aconteça um massacre humanitário, desnecessário, com centenas de milhares de mortes evitáveis.
O mal está espalhado: meio ambiente, relações internacionais, Fundação Palmares, direitos humanos. Chegamos ao cúmulo de assistirmos um certo secretário de Cultura parafraseando em rede nacional o discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler antissemita, maldita alma da pior das ideologias.
“Tinham visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã”.
No nosso caso (que revoltaria ainda mais os personagens de Camus), morrem inocentes por falta de oxigênio, e/ou por falta de leitos.
É preciso então, mais que resistir. Contra este peste brasileira que veste um terno sombrio com seu sorriso astuto, ataca seus adversários com repressão, agressão e perseguição, resgatando “sobras legais” herdadas da ditadura, como a lei de segurança nacional. Nosso Brasil, depois de ter passado por 20 anos de torturas, assassinatos, censuras, pensávamos nunca mais sofreríamos deste mal.
Ainda Camus: “O padre dizia que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que lhe era habitualmente atribuído, que não se tratava da banal resignação, nem mesmo da difícil humildade“. “Era por isso – e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – preciso querê-la, porque Deus a queria”.
“O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” Este era o slogan da última campanha presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já imaginávamos que por detrás destas palavras, se escondia a carne do mal coberta pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude de seu governo segue princípios divinos.
Pois me diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão desprezível?
“Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.
E me permita completar, e em meu país, perigosamente distraído.
O Brasil que queremos e que o mundo precisa, também negou o horror que se aproximava. E, portanto, há décadas os ratos já estavam aqui mostrando seus rostos e dentes, de olhos revirados, afiando suas unhas. E não nos atentamos. Será que nós, concidadãos, e sobretudo nosso parlamento, também somos negacionistas/cúmplices, ao não querer enxergar o tamanho do perigo, ao nos sujeitarmos a este poder já manchado de sangue e de crimes?
Eu sei que longo prazo, e seja qual for o país, o homem corajoso, o cientista, o resistente conseguirão juntos derrotar o mal. Aqui, não será tão simples assim, porque carregamos nas nossas costas a histórica extrema desigualdade, econômica, social e educacional que esteriliza alguns comportamentos e aniquila a vontade de ruptura.
Toda Peste causa separações profundas e dolorosas. E olhem nós aqui, já isolados, tratados como pária do mundo… mas, sobretudo, separados de nós mesmos, desviados do Brasil que viemos para ser, do nossa essência, da nossa natureza, do país do futuro e de um mundo mais humano e justo. Do país exuberante, da alegria de viver que faz sonhar, que dança, brinca, canta e encanta. Porém, ao nos rendermos ao mal, passivos, mostramos o que temos de pior. O país da miscigenação não pode ser o da negação do seu próprio destino!
“O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam?”
Como fazer para se livrar deste pesadelo? Sobretudo não fiquemos anestesiados, amordaçados por esta “angústia muda”. Fora com este mal maior, fora a estupidez que desencoraja o uso de máscaras, que dificulta o combate ao vírus, que mata e deixa morrer, e ainda insiste!
Vacinemo-nos uma vez por todas! Vacinemo-nos também para expulsar de nós o mal maior, que vai muito além do agente infeccioso microscópico, que gangrena nosso “corps social”.
Porque não basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora Bolsonaro! Caso contrário, nos tornaremos a nossa própria peste.
“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós”.
Nota da redação: este artigo de Raí, dirigente do São Paulo e ex-jogador adorado pela torcida do Paris Saint Germain, foi publicado no jornal francês Le Monde em maio de 2021. Vale a reedição.
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