Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga
por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está
enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós. Ele sofre calúnias e
mentiras por fazer o melhor para nós. Ele é a nossa única esperança de dias
cada vez melhores. Ele precisa de nosso apoio nas ruas. Dia 15.3 vamos mostrar
a força da família brasileira. Vamos mostrar que apoiamos Bolsonaro e
rejeitamos os inimigos do Brasil. Somos sim capazes, e temos um presidente
trabalhador, incansável, cristão, patriota, capaz, justo, incorruptível. Dia
15/03, todos nas ruas apoiando Bolsonaro.
17. Conforme
amplamente noticiado, os atos foram marcados por apoiadores do presidente em
defesa do governo, a favor de uma intervenção militar contra os poderes
constituídos, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
18. No dia
7/3/2020, em visita a Boa Vista-RR, o Denunciado reforçou a convocação de seus
apoiadores para o referido protesto, mencionando explicitamente o seguinte:
Dia 15 agora, um movimento de rua espontâneo. E o
político que tem medo de movimento de rua não serve para ser político. Então participem.
Não é um movimento contra o Congresso, contra o Judiciário. É um movimento
pró-Brasil. É um movimento que quer mostrar para todos nós, presidente, poder
Executivo, Legislativo, Judiciário, que quem dá o norte para o Brasil é a
população. Quem diz que é um movimento popular contra a democracia está
mentindo e tem medo de encarar o povo brasileiro.
19. Sucedeu ainda
que, de modo a evidenciar uma promíscua relação entre os órgãos do
governo federal e o ativismo político em favor do Presidente da República, a
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) usou uma
conta oficial na rede social Twitter[9] para realizar a divulgação dos atos
convocados para o dia 15 de março de 2020. A publicação da Secom destaca uma
fala do Denunciado sobre o protesto, na qual o Presidente da República,
menciona sem a menor cerimônia que tratar-se-ia de “manifestações populares
legítimas”. Na imagem que acompanha a publicação, há uma foto de pessoas
protestando usando roupas da cor da bandeira brasileira e uma citação atribuída
ao Presidente da República, nesses termos: “As manifestações do dia 15 de março
não são contra o Congresso, nem contra o Judiciário. São a favor do Brasil”.
Observe-se que a publicação na conta da Secom divulga o ato marcado para 15 de
março de 2020 (percebe-se que a postagem está “fixada”, mecanismo para que seja
a primeira a ser visualizada ao acessar a página da Secom no Twitter).
20. Embora
mencionasse, numa atitude maliciosamente preventiva, não se tratar de movimento
de oposição ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, tal informação
contrastava com o fato notório, àquela altura, de que as convocações da
manifestação usavam palavras de ordem, hashtags e panfletos que atacavam
diretamente as instituições democráticas, com pedidos como o de “intervenção
militar”. Veja-se:
21. Em 15 de
março de 2020, o próprio Presidente da República tomou parte nos atos a seu
favor realizados em Brasília-DF, nos quais proliferavam faixas com dizeres tais
como “Fora STF” e “SOS Forças Armadas”, sem que merecessem qualquer censura ou
reparo por parte do mandatário.
22. A desatinada
conduta presidencial veio a repetir-se em 19 de abril de 2020, quando uma vez
mais o Denunciado participou de ato público a favor de seu governo e em favor
da quebra da institucionalidade democrática, em frente à sede do
Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília, onde, mesmo
diante de faixas com nítido cunho autoritário, agradeceu a presença dos
apoiadores e estimulou a sua conduta ao pronunciar que “Todos no Brasil têm que
entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza que
todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. Vamos fazer o que for possível
para mudar o destino do Brasil”[12]. Eis alguns registros fotográficos do
evento, cuja localização agravou sobremaneira o tensionamento institucional,
haja vista a inconveniente confusão provocada pelo fato de as atrevidas alusões
à pretensão golpista terem sido hospedadas em área militar.
23. O portal de
notícias G1 noticiou à época o tom belicoso dos protestos realizados em 19 de
abril de 2020, que contaram com a participação do Presidente da República:
Bolsonaro discursa em Brasília para manifestantes que
pediam intervenção militar
O presidente Jair Bolsonaro discursou neste domingo
(19) durante um ato em Brasília que defendia uma intervenção militar, o que não
está previsto na Constituição.
Dezenas de simpatizantes se aglomeraram para ouvir o
presidente, contrariando as orientações da de isolamento social da Organização
Mundial da Saúde (OMS) para evitar a propagação do coronavírus. Durante o
discurso, Bolsonaro tossiu algumas vezes, sem usar a parte interna do cotovelo,
conforme orientação das autoridades sanitárias.
Do alto de uma caminhonete, Bolsonaro disse que ele e
seus apoiadores não querem negociar nada e voltou a criticar o que chamou de
"velha política".
"Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é
ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo
Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e
fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque
que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder."
Foi a maior aglomeração provocada por Bolsonaro desde
o início da adoção de medidas contra a pandemia no Brasil. Na véspera, ele já
havia falado para manifestantes que se concentraram em frente ao Palácio do
Planalto.
Antes da fala de Bolsonaro, manifestantes gritavam
"Fora, Maia", "AI-5", "Fecha o Congresso",
"Fecha o STF", palavras de ordem ilegais, inconstitucionais e
contrárias à democracia. O Ato Institucional número 5 (AI-5) vigorou durante
dez anos (de 1968 a 1978), no período da ditadura militar, e foi usado para punir
opositores ao regime e cassar parlamentares.
O presidente fez o discurso em frente ao
Quartel-General do Exército e na data em que é celebrado o Dia do Exército. Os
manifestantes também pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal
Federal (STF).
Pouco depois, ele postou em uma rede social um trecho
do discurso em que diz aos manifestantes:
"Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês
estão aqui porque acreditam no Brasil."
Alguns apoiadores do presidente carregavam faixas
pedindo "intervenção militar já com Bolsonaro". As faixas tinham o
mesmo padrão e pareciam ter sido feitas em série.
Até as 15h50, o Congresso e o Supremo Tribunal
Federal (STF) não haviam se manifestado sobre o discurso.
Bolsonaro afirmou aos simpatizantes que todos os políticos
e autoridades "têm que entender que estão submissos à vontade do povo
brasileiro".
"Todos no Brasil têm que entender que estão
submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza, todos nós juramos um dia
dar a vida pela pátria. E vamos fazer o que for possível para mudar o destino
do Brasil. Chega da velha política", afirmou.
Bolsonaro disse aos manifestantes que podem contar
com ele "para fazer tudo aquilo que for necessário para que nós possamos
manter a nossa democracia e garantir aquilo que há de mais sagrado entre nós,
que é a nossa liberdade".
Mais cedo, os apoiadores de Bolsonaro fizeram uma
carreata por Brasília e passaram na Esplanada dos Ministérios, onde também fica
o prédio do Congresso.
Governadores e demissão de ministro
Na semana passada, Bolsonaro demitiu o então ministro
da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, depois de embate público envolvendo medidas
de restrição social para combate à pandemia do novo coronavírus.
Contrariado pela defesa de Mandetta das medidas de
isolamento pregadas pela OMS, nas últimas semanas Bolsonaro fez passeios por
Brasília, que geraram aglomeração de pessoas.
O presidente também tem criticado governadores que
adotaram medidas de restrição de movimentação de pessoas como forma de conter a
disseminação do coronavírus, entre eles o de São Paulo, João Doria, e o do Rio
de Janeiro, Wilson Witzel.
Bolsonaro chegou a editar uma medida provisória para
concentrar o poder de aplicar medidas de restrição durante a pandemia.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados também têm
poder para aplicar regras de isolamento.
Bolsonaro faz críticas à postura dos governadores no
combate ao coronavírus
Também na semana passada, Bolsonaro criticou o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a quem acusou de estar conduzindo "o
Brasil para o caos".
A crítica de Bolsonaro a Maia se deu em meio à
discussão pelo Congresso de medidas econômicas para enfrentamento da crise
gerada pela pandemia do novo coronavírus.
Uma dessas medidas, já aprovada pela Câmara mas que
ainda aguarda análise do Senado, obriga o governo federal a compensar os
estados e municípios por perdas de arrecadação nos próximos meses. Bolsonaro e
sua equipe são contra essa medida, defendida por Maia.
24. Já em 29 de
abril de 2020, após a divulgação de decisão monocrática do ministro Alexandre
de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar fundamentadamente pedido de
liminar no Mandado de Segurança nº 37.097, no sentido de impedir a nomeação do
Delegado Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, o
Presidente da República passou a atacar publicamente o prolator da decisão,
sugerindo a iminência de uma “crise institucional”.
Agora, tirar numa canetada, desautorizar o presidente
da República com uma canetada dizendo em impessoalidade. Ontem quase tivemos
uma crise institucional. Quase. Faltou pouco. Eu apelo a todos que respeitem a
Constituição. Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes.
Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo.
25. Posteriormente,
em 3 de maio de 2020, o Denunciado voltou a participar de uma manifestação
pública com nítidos propósitos antidemocráticos e de afronta à ordem
constitucional, nela proferindo um canhestro discurso, no qual ameaçou e
constrangeu publicamente o Supremo Tribunal Federal.
Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei,
pela ordem, pela democracia, pela liberdade. (...) Chega de interferência. Não
vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência. Vamos levar esse Brasil
para frente (...) Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque
chegamos no limite, não tem mais conversa.
26. Naquela
oportunidade, os ataques e ameaças não se restringiram apenas aos integrantes
dos Poderes Legislativo e Judiciário federais. O Presidente da República e seus
fanáticos apoiadores não hesitaram também em admoestar de maneira rude e
irresponsável os governadores e prefeitos que contrariassem as convicções
anticientíficas esposadas pelo mandatário em desfavor das precauções de
distanciamento social recomendáveis durante a pandemia do novo
coronavírus.
27. Em 24 de
março de 2020, durante pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão,
o Presidente da República já insuflara a população contra governadores e
prefeitos[16]. Uma semana depois, em 1º de abril de 2020, poucas horas após
falar em um pacto com Estados e Municípios para melhor gerenciar a crise
decorrente da pandemia do novo coronavírus, o Denunciado dera entrevistas em
que voltou a desferir ofensas aos gestores locais.
Mais recentemente, em 14 de maio de 2020, durante
reunião com grupo de empresários, o ora Denunciado dirigiu ofensas ao
governador de São Paulo e pediu ao público presente para “chamar o governador e
jogar pesado, (...) porque a questão é séria, é guerra”.
28.
As
agressões promovidas pelo Presidente, porém, não se restringem aos integrantes
dos demais Poderes, governadores e prefeitos. Desde o início do mandato
presidencial, o Denunciado tem se dedicado a realizar ataques praticamente
diários à imprensa.
29.
Em
levantamento publicado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), até 30
de abril de 2020, o Presidente já havia proferido 179 (cento e setenta e nove)
agressões a jornalistas, o que equivale a 1,48 ataques por dia. As ocorrências
se intensificam sempre que os meios de comunicação noticiam fatos contrários
aos interesses pessoais do Presidente da República.
30.
A
título ilustrativo, são elencados alguns dos impropérios lançados pelo
Presidente em 2020:
· Em
18 de fevereiro de 2020, no Palácio da Alvorada, o Presidente comentou matéria
jornalística de profissional da Folha de S. Paulo a respeito de disparos em
massa por Whatsapp, e ofendeu a repórter com palavras de cunho sexual: “Ela
queria dar o furo (...) a qualquer preço contra mim”.
· Em
4 de março de 2020, o Denunciado colocou um humorista para distribuir bananas a
jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada[21]. Algumas semanas antes, o
próprio Presidente fizera gesto de banana para profissionais da imprensa que o
aguardavam na saída do palácio presidencial.
· Em
30 de abril de 2020, o Presidente dirigiu-se à imprensa como “lixo” e ameaçou
não renovar as concessões de redes de televisão logo após manifestar
contrariedade com matérias jornalísticas que entendia que lhes eram desfavoráveis.
· Em
5 maio de 2020, indagado sobre investigações em curso a respeito da troca do
Superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, gritou aos repórteres
presentes: “Cala a boca, não perguntei nada!”.
31.
Tais
acusações, além das referências laudatórias ao regime ditatorial instalado
entre 1964 e 1985, levaram a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
dos Deputados a emitir, em 19 de maio de 2020, comunicação oficial à Comissária
das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, denunciando atos
de ruptura democrática no país e requerendo a adoção de medidas para coibir o
comportamento autoritário do ora Denunciado.
32.
O
comportamento pessoal do Presidente da República, diga-se, tem estimulado
episódios de agressões promovidas pelos grupos por ele insuflados, inclusive
mediante insultos verbais proferidos por apoiadores na presença do próprio
Presidente.
33.
Em
20 de abril de 2020, jornalistas e fotógrafo foram agredidos em manifestações a
favor do Presidente em Brasília e em Porto Alegre. O mesmo ocorreu em 3 de maio
de 2020, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na Capital Federal, quando um
repórter de O Estado de São Paulo sofreu chutes, socos, empurrões e rasteiras
durante evento com a presença do Presidente.
34.
Não
por outra razão, pelo segundo ano seguido a organização Repórteres Sem
Fronteiras rebaixou o país no ranking da liberdade de imprensa. O país se
encontra atualmente na 107ª posição, caindo cinco posições desde 2018. Segundo
a organização, foi decisivo para a queda o “clima de ódio e desconfiança
alimentado por Bolsonaro”.
35. Os fatos
narrados anteriormente demonstram a evidente incompatibilidade entre as
condutas adotadas pelo atual ocupante do cargo de Presidente da República e a
dignidade, o decoro e a honradez esperadas de uma autoridade dessa envergadura.
Daí a pertinência do enquadramento normativo dos episódios já narrados, com o
objetivo de demonstrar o efetivo cometimento de crimes de responsabilidade,
aptos a autorizarem a marcha do processo de impeachment presidencial.
36. Com efeito, tendo em vista os atos
praticados o Presidente da República acima relatados permitem a constatação da
ocorrência de crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes
legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados (art. 6º,
incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950) e crimes de
responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais: art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de
1950) de sua autoria. Convém referir, adicionalmente, que, de acordo com o art.
2º, da Lei nº 1.079/1950, “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente
tentados, são passíveis da pena de perda do cargo”. Tais hipóteses legais
típicas se originam da previsão do próprio texto da Constituição da República,
que dimensiona nos incisos II e II do art. 85 tais modalidades de atos do
Presidente da República como crimes de responsabilidade:
SEÇÃO III
DA
RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e,
especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da
Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais
e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões
judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei
especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
37. Emergem do figurino legal, portanto, em
decorrência dos fatos articulados no presente tópico, a incursão do Presidente
da República nos dispositivos contidos no art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; e
art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
Confira-se:
DOS CRIMES
CONTRA O LIVRE EXERCÍCIO DOS PODERES CONSTITUCIONAIS
Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre
exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais
dos Estados:
1 - tentar dissolver o Congresso Nacional, impedir a
reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas
Câmaras;
2 - usar de violência ou ameaça contra algum
representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo
no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo
objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;
3 - violar as imunidades asseguradas aos membros do
Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas dos Estados, da Câmara dos
Vereadores do Distrito Federal e das Câmaras Municipais;
4 - permitir que força estrangeira transite pelo
território do país ou nele permaneça quando a isso se oponha o Congresso
Nacional;
5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre
exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos
seus atos, mandados ou sentenças;
6 - usar de violência ou ameaça, para constranger
juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto,
ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;
7 - praticar contra os poderes estaduais ou
municipais ato definido como crime neste artigo;
8 - intervir em negócios peculiares aos Estados ou
aos Municípios com desobediência às normas constitucionais.
CAPÍTULO
III
DOS CRIMES
CONTRA O EXERCÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS, INDIVIDUAIS E SOCIAIS
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre
exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
1- impedir por violência, ameaça ou corrupção, o
livre exercício do voto;
2 - obstar ao livre exercício das funções dos
mesários eleitorais;
3 - violar o escrutínio de seção eleitoral ou
inquinar de nulidade o seu resultado pela subtração, desvio ou inutilização do
respectivo material;
4 - utilizar o poder federal para impedir a livre
execução da lei eleitoral;
5 - servir-se das autoridades sob sua subordinação
imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o
pratiquem sem repressão sua;
6 - subverter ou tentar subverter por meios violentos
a ordem política e social;
7 - incitar militares à desobediência à lei ou
infração à disciplina;
8 - provocar animosidade entre as classes armadas ou
contra elas, ou delas contra as instituições civis;
9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia
individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no
artigo 157 da Constituição;
10 - tomar ou autorizar durante o estado de sítio,
medidas de repressão que excedam os limites estabelecidos na Constituição.
38. Tais
conclusões derivam da patente circunstância demonstrada, na qual o discurso
público e a mobilização política desencadeadas pela conduta presidencial põem
em risco a própria sobrevivência das instituições democráticas. Em tais
hipóteses, a Constituição brasileira prevê o remédio do impeachment, formulado
originariamente no direito constitucional norte-americano, cuja essência pode
ser bem sintetizada na doutrina de Laurence Tribe e Joshua Martz:
Dito de forma simples, o impeachment é o nosso último
recurso para evitar uma catástrofe genuína pelas mãos do presidente. Esse poder
é pensado para momentos em que a nação encara perigo claro e o aparato
constitucional não oferece outra saída plausível. O impeachment deve ocorrer
quando os delitos anteriores do presidente são tão terríveis por si sós, e são
um sinal tão perturbador da sua conduta futura, que permitir a continuidade do
presidente em sua função impõe um claro perigo de dano grave à ordem
constitucional.
39. O pedido de
impeachment no caso concreto ora trazido ao exame da Câmara dos Deputados se
inscreve dentre aqueles imperativos determinados pela defesa dos valores
democráticos incolumidade das instituições do Estado de Direito.
40. Nessa
linha, a obra clássica de Paulo Brossard sobre o tema assinala que “A idéia de
responsabilidade é inseparável do conceito de democracia. E o impeachment
constituiu eficaz instrumento de apuração de responsabilidade e, por
conseguinte, de aprimoramento da democracia”.
41. Vale dizer, o
procedimento de impedimento do Presidente da República deve importar uma
preocupação primordial com a manutenção do Estado Democrático de Direito, como
também indicado na reflexão de Rafael Mafei Queiroz:
Crimes de responsabilidade preocupam-se sobretudo com
as condutas de governantes: eles nos armam contra presidentes cujo padrão de
comportamento sugira risco a instituições básicas do Estado de Direito. A luz
amarela do impeachment deve acender quanto topamos com líderes que minam espaços
de legítima negociação política, intervém de modo suspeito em órgãos de
controle e fiscalização, intimidam a sociedade civil que os critica e agridem
sem pudor valores constitucionais inegociáveis, tudo isso para fazer
prevalecer, a qualquer custo, seus objetivos políticos e pessoais — sejam eles
nobres ou mesquinhos, de esquerda ou de direita, progressistas ou
conservadores, pouco importa.
42. Dos extratos
anteriormente delineados, pode-se inferir com clareza que o impeachment não foi
concebido unicamente para coibir situações já concretizadas de subversão da
ordem jurídico-política. Sua missão precípua consiste em estancar tentativas, e
impedir movimentos que demonstrem a tendência de iminente ruptura institucional
provocada pela conduta do Presidente da República.
43. Da narrativa
dos fatos já realizada, por conseguinte, em síntese, verifica-se que o
Presidente da República incorreu nas condutas tipificadas no art. 6º, itens 1,
2, 5, 6 e 7 e no art. 7º, itens 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079/1950.
44. A tentativa
de dissolução do Congresso Nacional (art. 6º, inciso 1) é patente no explícito
apoio a manifestações de rua que, conforme demonstrado, têm como pauta uma
“intervenção militar” nos Poderes Constituídos, com “fechamento do Congresso
Nacional", que ultrapassa e subverte os limites da alçada constitucional
das Forças Armadas. Estas, na forma do art. 142 da Constituição, embora sob a
autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se exclusivamente “à
defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”, ou seja, nos marcos da preponderância do
poder civil, de a cordo com a Constituição da República.
45. A previsão de crime de responsabilidade
decorrente da previsão segundo a qual constitui o tipo respectivo “usar de
violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da
Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato” (art.
6º, inciso 2) afigura-se resultante da participação ativa do Presidente da
República em manifestações de matiz claramente hostil à permanência dos
presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em suas funções
constitucionalmente asseguradas, por meio de palavras de ordem e faixas com os
dizeres “Fora Maia” e “Fora Alcolumbre” (referentes aos presidentes da Câmara
dos Deputados, Rodrigo Maia e do Senado Federal, Davi Alcolumbre).
46. Outro elemento constitutivo de crime de
responsabilidade perceptível à luz da narrativa acima comprovada, consiste na
identificação da premissa “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício
do Poder Judiciário” (art. 6º, inciso 5), uma vez que o Presidente da República
afirmou textualmente e de maneira pública não assimilar uma decisão emanada no
exercício regular da competência por ministro do Supremo Tribunal Federal, e
que a sua prolação teria gerado a iminência de uma crise institucional.
47. Por outro
lado, a tentativa de impor a prevalência dos interesses pessoais do mandatário
em decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal, inclusive mediante o uso de
ameaça, importa incursão na conduta tipificada no art. 6º, inciso 6, da Lei nº
1.079/1950, de acordo com o qual configura crime de responsabilidade “usar de
violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de
proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu
ofício”.
48. O que se
verifica, no caso dos autos, é uma tentativa constante do Presidente da
República de utilizar mobilizações populares com o objetivo marcado de obter
resultados que lhe sejam favoráveis na apreciação de processos de seu interesse
em curso no Supremo Tribunal Federal, tal qual ocorrido no episódio da nomeação
do novo Diretor-Geral da Polícia Federal, que também será abordado, pelas suas
peculiaridades, em tópico subsequente.
49. Ainda, os
fatos já descritos amoldam-se à fattispecie contida no art. 6º, item, 7, da Lei
nº 1.079/1950, na medida em que os constrangimentos públicos, as ameaças e a
indicação de que empresários levem a cabo uma “guerra” contra os governadores
de Estados e prefeitos municipais também constituem delitos imputáveis ao
exercente do cargo de chefe do Poder Executivo Federal.
50. De igual
maneira, também incidem no caso concreto prescrições específicas da Lei do
Impeachment relacionadas à proteção dos direitos políticos, individuais e
sociais. Com efeito, o estímulo à conflagração popular contra as instituições
da república, mediante o incentivo à subversão violenta da ordem social, assim
como a incitação aos militares à desobediência à lei e a provocação de
animosidade entre as classes armadas e as instituições civis enquadram-se nas
hipóteses normativas do art. 85, III, da Constituição e no art. 7º, itens 5, 6,
7 e 8 da Lei nº 1.079/1950. Assim, a convocação das Forças Armadas – ou o
estímulo à sua utilização – para que os Poderes Constitucionais sejam
submetidos aos interesses do Executivo Federal tem o condão de configurar o
crime de responsabilidade descrito nos dispositivos referidos.
51.
Por
fim, os atentados à liberdade de imprensa, promovidos e incentivados pelo
Presidente da República, conformam violação explícita ao direito fundamental à
liberdade de expressão e de comunicação, constante no art. 5º, IX, da Constituição
da República. Observe-se que a própria Constituição reserva todo o Capítulo V
do Título VIII para preservar a comunicação social das ingerências e lesões
promovidas pelo Poder Público.
52.
Assim,
o art. 220, caput, aponta que “A manifestação do pensamento, a criação, a
expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição”. Dessa maneira,
salvo para evitar monopólios e oligopólios, o que garante a liberdade de
expressão de todas as formas de pensamento, o dispositivo tem o condão de
resguardar os meios de imprensa da ingerência dos agentes de Estado,
prerrogativa continuamente violada pelo ora Denunciado. Este não apenas promove
ataques diretos e diários aos meios de comunicação e seus trabalhadores, como
também incentiva a prática de atos criminosos como agressões verbais e físicas
contra os mesmos profissionais.
53.
Veja-se
que tais circunstâncias, parágrafo 2º do mesmo artigo veda “toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística”. Tal disposição, porém,
vem sendo continuamente frustrada pelos sucessivos incentivos a agressões
promovidas contra integrantes da imprensa profissional.
54.
Com
efeito, importa referir ao julgamento da ADPF nº130/DF, pelo Supremo Tribunal
Federal, em que aquela Corte consignou que a liberdade de imprensa constitui
categoria jurídica proibitiva de qualquer forma de restrição, por guardar
íntima relação com a própria substância da democracia consagrada pela Carta de
1988:
(...) 2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE
IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE
INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À
PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição
reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome "Da
Comunicação Social" (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou
conjunto de "atividades" ganha a dimensão de instituição-ideia, de
modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se
convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à
imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do
Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou
versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como
garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou
contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente
comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial
emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição
brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa,
rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais
encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de
civilização. 3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO
PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À
INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL.
TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO
CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição
radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa,
porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de
pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer
restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de
sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que
não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação
jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de
liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são
bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite,
as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e
honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no
tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa
como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder
do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou
consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional
"observado o disposto nesta Constituição" (parte final do art. 220)
traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade,
é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da
"plena liberdade de informação jornalística" (§ 1º do mesmo art. 220
da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as
tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de
se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica.
Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de
computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual
livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que
signifique plenitude de comunicação. (...) 6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE
ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um
patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução
político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por
muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a
manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou
retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia,
a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a
liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si
mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional
de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das
sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude
democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela
mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização
e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e
do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado
"poder social da imprensa". 7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO
CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA
OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento
crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo
socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria
verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao
jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom
áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do
Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse
público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa
ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como
formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e "real
alternativa à versão oficial dos fatos" (Deputado Federal Miro
Teixeira).
(ADPF 130, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO,
Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC
06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001 RTJ VOL-00213-01 PP-00020)
55.
Ao
tentar frustrar o regime constitucional de liberdades, o Presidente da
República comete crime contra o exercício de direito político, individual e
social, na forma do art. 85, III, da Constituição e do art. 7º, inciso 9, da
Lei nº 1.079/1950. Também atenta contra a honra, o decoro e a dignidade do
cargo, ao proferir ofensas de baixo calão contra trabalhadores dos meios de
comunicação, infringindo disposições constitucionais que permitem a aplicação
ao caso do art. 85, V, da Constituição e ao art. 9º, item 7, da Lei nº
1.079/1950.
56.
A
conjugação de evidências fáticas e elementos de amparo jurídico, acima
criteriosamente descrita, indicam que os atos viciados de apoio pernicioso e
participação deletéria do Presidente da República em manifestações de índole
antidemocrática e atentatórias às instituições e garantias da Constituição da
República configuram, inexoravelmente, graves crimes de responsabilidade contra
o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes
constitucionais dos Estados e contra o livre exercício dos direitos políticos,
individuais e sociais, a ensejar o recebimento, processamento e procedência da
presente denúncia.
II.2. VIOLAÇÕES
AO PRINCÍPIO REPUBLICANO E À IMPESSOALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO EM FAVOR DE
INTERESSES PESSOAIS E FAMILIARES.
57. Também
constitui objeto da presente denúncia o conjunto de episódios envolvendo
sucessivas tentativas de interferência do Presidente da República no
âmbito de inquéritos da Polícia Federal, mediante a utilização de poderes
inerentes ao cargo com o propósito confessado publicamente de concretizar
espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de
integrantes de sua família ante investigações policiais, mediante a
determinação anômala de diligências, a exigência de acesso a relatórios de
apurações sob sigilo legal e a tentativa de indicação de autoridades da Polícia
Federal que estivessem submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante
da Presidência da República.
58. Tais
elementos repercutem nitidamente em afronta manifesta ao texto da Constituição
da república, uma vez que traduzem desprezo aos paradigmas concernentes ao
regime republicano, numa perspectiva nociva de apropriação da estrutura do
estado a partir de interesses particulares da autoridade máxima do Poder
Executivo.
59. Por outro
lado, a apreciação desses excessos praticados pelo Presidente da República
conforma uma severa transgressão ao princípio da impessoalidade, imponível no
âmbito da administração pública, tendo em vista a carência de escrúpulos da
autoridade no que se refere ao imperativo de discernimento pleno da dicotomia
entre público e privado.
60. Ademais, cumpre
referir à ofensa patente ao princípio da razoabilidade, como instrumento
implícito e qualificador de ato de improbidade administrativa, previsto no art.
11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 9.429/1992), cuja aplicação
enseja caracterização adicional ao enquadramento do Presidente da República em
crime de responsabilidade.
61. O somatório
de tais reflexões, lançadas sobre os fatos objetivos adiante pormenorizados em
específico, conduz à advertência de Pomeroy, escritor estadunidense que, no
dizer de Ruy Barbosa, mais proficientemente ventilou a teoria do impeachment.
Para o autor citado, a discricionariedade do exercício do cargo presidencial,
conquanto admissível, em tese, para respaldar determinadas decisões, encontra
limite nas hipóteses de violação deliberada dos termos expressos na
Constituição, sobretudo quando o mandatário se desincumba de suas funções de
forma “caprichosa, perversa, leviana ou obcecadamente, impassível ante as
circunstâncias desastrosas desse proceder”, cabendo nesses casos o julgamento
político inerente ao processo de impeachment.
62. Os fatos
relativos ao presente tópico vieram à tona por ocasião do anúncio do pedido de
demissão do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em
entrevista coletiva de imprensa ocorrida no dia 24 de abril de 2020, ocasião em
que o demissionário acusou o Presidente da República da prática de crimes
comuns e de responsabilidade, ao tempo em que, num exercício de sinceridade
pouco habitual a tais circunstâncias, admitiu ter tolerado pressões ilícitas
sem levá-las a público, a tempo e modo, e expôs as vísceras dos entendimento
incomuns que precederam a sua assunção ao cargo de ministro, deixando uma nuvem
de obscuridade em torno de supostas contrapartidas que teriam sido negociadas
de parte a parte, entre Presidente da República e ministro de Estado da Justiça
e Segurança Pública, enquanto permanecera à frente da pasta.
63. Eis trechos
das afirmações do ex-ministro Sérgio Moro, em sua entrevista de despedida do cargo,
naquilo que interessa à configuração de crimes de responsabilidade praticados
pelo Presidente da República:
[...] Desde 2014, sempre tive uma preocupação
constante de uma interferência do Executivo na investigação, e isso poderia ser
feito de diversas formas, como na troca de diretor-geral sem justa causa, troca
de superintendente. Tivemos no início da Lava Jato o superintendente Rosalvo
Ferreira, que convidei pro Ministério. Depois foi sucedido pelo superintendente
Valeixo. Houve a substituição mas ela foi pela aposentadoria do doutor Rosalvo
e foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante as investigações. O
governo da época (Dilma Roussef, PT) tinha inúmeros defeitos, crimes de
corrupção, mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse
possível realizar este trabalho. Seja de bom grado ou seja pela pressão da
sociedade essa autonomia foi mantida e isso permitiu que os resultados fossem
alcançados. Isso até é um ilustrativo da importância de garantir estado de
direito, o rule of law, a autonomia das instituições de controle e de
investigação. Lembrando até um episódio que num domingo qualquer, lembro que
Valeixo recebeu uma ordem de soltura ilegal do ex-presidente Lula, condenado
por corrupção e preso, emitida por um juiz incompetente. Foi graças a autonomia
de Valeixo que ele comunicou as autoridades e foi possível rever essa ordem de prisão
ilegal, antes que ela fosse executada, a demonstrar o empenho dessas
autoridades e a importância da autonomia das organizações de controle. [...]
Inclusive foi-me prometido carta branca para nomear todos os assessores como a
PRF e a PF. Na ocasião, foi divulgado equivocadamente que eu teria estabelecido
como condição uma nomeação ao STF. Isso nunca aconteceu. [...] Tem uma única
condição que coloquei, que revelo agora, eu disse que como eu estava
abandonando minha carreira de 22 anos da magistratura e contribui 22 para a
Previdência e pedi que se algo me acontecesse, que minha família não ficasse
desamparada sem uma pensão. Foi a única condição que coloquei para assumir a
posição no Ministério. O Presidente concordou com todos os compromissos. Falou
que me daria carta branca. [...] Em todo esse período tive apoio o presidente
em vários desses projetos, outros nem tanto, mas a partir do segundo semestre
do ano passado passou a haver uma insistência do presidente da troca do comando
da Polícia Federal. Isso inclusive foi declarado publicamente. Houve primeiro o
desejo de trocar o superintendente do Rio. Sinceramente não havia nenhum motivo
para essa mudança. Mas conversando com o superintendente, ele queria sair do
cargo por questões pessoais. Então nesse cenário concordamos eu e o diretor
geral em promover essa troca com uma substituição técnica, de um indicado da
polícia. É preciso fazer uma referência, eu não indico superintendentes. A
única pessoa que indiquei foi o diretor Maurício Valeixo. Não é meu papel fazer
a minha indicação de superintendentes. Sempre tenho dado autonomia a minha
equipe para que eles façam as melhores escolhas, assim se valoriza a equipe e
as escolhas técnicas. Eu tinha notícia quando assumi de que pelo menos havia
rumores de que a PRF tinha algumas superintendências por indicações políticas.
Escolhi o diretor geral, ele pode testemunhar o que eu disse pra ele. Foi
‘escolha tecnicamente, o que não é aceitável são essas indicações políticas’.
Claro que existem indicações positivas, mas quando se começam a preencher esses
cargos técnicos principalmente de polícia, com questões político-partidárias,
realmente o resultado não é bom para a corporação inclusive. O presidente no
entanto também passou a insistir na troca do diretor geral. Eu sempre disse,
‘presidente não tem nenhum problema em trocar o diretor-geral, mas preciso de
uma causa’ e uma causa normalmente relacionada a insuficiência de desempenho,
um erro grave. No entanto o que eu vi durante esse período e até pelo histórico
do diretor que é um trabalho bem feito. Várias operações importantes, combate
ao crime organizado e corrupção [...]. Não é uma questão do nome. Tem outros
bons nomes para assumir o cargo de diretor da PF. Há outros delegados
igualmente competentes. O grande problema de realizar essa troca é que haveria
uma violação de uma promessa que me foi feita, de que eu teria carta branca. Em
segundo lugar não haveria causa para essa substituição e estaria claro que
estaria havendo ali uma interferência política na polícia federal, o que gera
um abalo da credibilidade não minha, mas minha também, mas do governo e do
compromisso maior que temos que ter com a lei. E tem um impacto também na
própria efetividade da polícia federal, ia gerar uma desorganização. Não
aconteceu durante a Lava Jato, a despeito de todos os problemas de corrupção
dos governos anteriores. Houve até um episódio que foi nomeado um diretor no
passado, com intuito de interferência política e não deu certo ficou pouco mais
de três meses a própria instituição rejeitou essa possibilidade. O problema é
que nas conversas com o presidente e isso ele me disse expressamente, que o
problema não é só a troca do diretor-geral. Haveria intenção de trocar
superintendentes, novamente o do Rio, outros provavelmente viriam em seguida
como o de Pernambuco, sem que fosse me apresentado uma razão para realizar
esses tipos de substituições que fossem aceitáveis. Dialoguei muito tempo,
busquei postergar essa decisão, às vezes até sinalizando que poderia concordar
no futuro. Até num primeiro momento pensando que poderia ser feito, mas cada
vez mais me veio a sinalização de que seria um grande equívoco realizar essa
substituição. Ontem conversei com o presidente houve essa insistência. Falei
que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo. Falei que isso
teria um impacto pra todos que seria negativo. mas para evitar uma crise
durante uma pandemia, não tenho vocação para carbonário, muito pelo contrário
acho que o momento é inapropriado para isso eu sinalizei então vamos substituir
o Valeixo por alguém que represente a continuidade dos trabalhos, alguém com
perfil absolutamente técnico e que fosse uma sugestão minha também, mas na
verdade nem minha, da polícia federal. Eu sinalizei com o nome do atual diretor
executivo, Disney Rosseti. Nem tenho uma grande familiaridade, mas é uma pessoa
de carreira de confiança. E como falei essas questões não são pessoais, têm que
ser decididas tecnicamente. Fiz essa sinalização, mas não obtive resposta. O
presidente tem preferência por alguns nomes que seriam da indicação dele, não
sei qual vai ser a escolha. Foi ventilado o nome de um delegado que passou mais
tempo no congresso do que na ativa. Foi indicado o nome do atual diretor da
Abin que é até um bom nome dentro da Polícia Federal. Mas o grande problema é
que não são tanto essa questão de quem colocar, mas sim por que trocar e
permitir que seja feita a interferência política na PF. O presidente me disse
mais de uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele
que ele pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência,
seja diretor-geral, superintendente e realmente não é o papel da polícia
federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser
preservadas. Imaginem se durante a própria Lava Jato, o ministro, diretor-geral
ou a então presidente Dilma ficassem ligando para o superintendente em Curitiba
para colher informações sobre as investigações em andamento. A autonomia da PF
como um respeito a aplicação a lei seja a quem for isso é um valor fundamental
que temos que preservar dentro de um Estado de Direito. O presidente me disse
isso expressamente, ele pode ou não confirmar, mas é algo que realmente não
entendi apropriado. Então o grande problema não é quem entra mas por que alguém
entra. E se esse alguém, a corporação aceitando substituição do atual diretor,
com o impacto que isso vai ter na corporação, não consegue dizer não pro
Presidente a uma proposta dessa espécie, fico na dúvida se vai conseguir dizer
não em relação a outros temas. Há uma possibilidade que Valeixo gostaria de
sair, mas isso não é totalmente verdadeiro. O ápice de qualquer delegado da PF
é a direção geral. E ele entrou com uma missão. Claro que depois de tantas
pressões para que saísse, ele de fato manifestou a mim ‘olha talvez seja melhor
eu sair para diminuir essa cisma e nós conseguimos realizar uma substituição
adequada’, mas nunca isso voluntariamente, mas decorrente dessa pressão que não
é apropriada. O Presidente também me informou que tinha preocupação com
inquéritos em curso no STF e que a troca também seria oportuna da Polícia
Federal por esse motivo. Também não é uma razão que justifique a substituição e
é até algo que gera uma grande preocupação. [...]. A exoneração fiquei sabendo
pelo DOU. Não assinei esse decreto. Em nenhum momento isso foi trazido ou o
diretor geral apresentou um pedido formal de exoneração. Depois me comunicou
que ontem a noite recebeu uma ligação dizendo que ia sair a exoneração a
pedido, e se ele concordava. Ele disse ‘como é que vou concordar com alguma
coisa, vou fazer o que’. O fato é que não existe nenhum pedido que foi feito de
maneira formal. Sinceramente fui surpreendido, achei que foi ofensivo a via que
depois a Secom informou que houve essa exoneração a pedido mas isso de fato não
é verdadeiro. Para mim esse último ato é uma sinalização de que o presidente me
quer fora do cargo porque essa precipitação na exoneração não vejo muita
justificativa. De todo modo, meu entendimento foi que não tinha como aceitar
essa substituição. Há uma questão envolvida da minha biografia como juiz, de
respeito à lei, ao estado de direito, à impessoalidade no trato das coisas do
governo. Seria um tiro na Lava Jato se houvesse substituição de delegados,
superintendentes naquela ocasião. Então eu não me senti confortável. Tenho que
preservar minha biografa, mas também o compromisso que assumi inicialmente, de
que seríamos firmes no combate à corrupção, ao crime organizado e à
criminalidade violenta. E o pressuposto a isso é que nós temos que garantir o
respeito à lei e à própria autonomia da Polícia Federal contra interferências
políticas. O presidente indica o diretor-geral, ele tem essa competência, mas
assumiu um compromisso comigo de que seria uma escolha técnica que eu faria. O
trabalho vem sendo realizado, e o diretor-geral poderia ser alterado desde que
houvesse uma causa consistente. Não tendo essa causa consistente e percebendo
que essa interferência política pode levar a relações impróprias entre o
diretor-geral, o superintendente para com o Presidente da República é aí que
não posso concordar. De todo modo agradeço ao presidente, fui fiel ao
compromisso que tivemos e acho que estou sendo fiel no atual momento. No
futuro, vou começar a empacotar minhas coisas e providenciar o encaminhamento
da minha carta de demissão. Eu infelizmente não tenho como persistir com o
compromisso que assumi sem que eu tenha condições de trabalho, de preservar a
autonomia da Polícia Federal para realizar seu trabalhos ou sendo forçado a
sinalizar uma concordância com uma interferência política na Polícia Federal
cujos resultados são imprevisíveis. Espero que independentemente da minha saída
seja feita a escolha – quem sabe até a própria manutenção do diretor sendo que
não existe pedido de exoneração, mas não havendo essa possibilidade que seja
feita uma escolha técnica sem preferências pessoais que seja indicado alguém
que possa realizar um trabalho autônomo e independente também a instituição vai
também resistir a qualquer espécie de interferência política e alguém que não
concorde em trocar superintendente delegados por motivos não justificados.
[...].
64. Dos trechos
destacados, verifica-se a imputação ao Denunciado, pelo ex-ministro da Justiça,
de crimes comuns e de responsabilidade. Segundo o que afirmou o ex-ministro, o
Denunciado teria atuado para obstruir e embaraçar investigações e processos
judiciais que seriam de interesse direto de seus filhos e deputados aliados,
inclusive inquéritos que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal.
65. No dia
24/4/2020, o ex-ministro exibiu ao Jornal Nacional, da Rede Globo, troca de
mensagens com o Denunciado que denotam a intenção deste último de interferir na
Polícia Federal, de modo a proteger deputados federais de sua base de apoio.
Extrai-se da reportagem do site G1:
Após o pronunciamento de Bolsonaro, a TV Globo cobrou
de Moro provas de que as declarações tinham fundamento. O ex-ministro mostrou,
então, a imagem de uma troca de mensagens entre ele e o presidente, ocorrida
nesta quinta.
O contato é identificado por ‘presidente novíssimo’,
indicando ser o número mais recente de Bolsonaro. A imagem mostra que o
presidente enviou a Moro o link de uma reportagem do site ‘O Antagonista’
segundo a qual a PF está ‘na cola’ de dez a 12 deputados bolsonaristas.
O presidente, então, escreveu: ‘Mais um motivo para a
troca’, se referindo à mudança na direção da Polícia Federal.
66. No dia
2/5/2020, em depoimento prestado à Polícia Federal em Curitiba-PR, o
ex-ministro Sérgio Moro afirmou que o Denunciado lhe teria solicitado que
trocasse o comando da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro.
67. No dia
14/5/2020, a Advocacia-Geral da União (AGU) entregou ao Supremo Tribunal
Federal (STF) transcrição parcial de vídeo de reunião ministerial ocorrida no
dia 22/4/2020. Embora o Denunciado tenha negado, a princípio, que teria
mencionado a Polícia Federal na referida reunião, constam, na transcrição,
diversas alusões à intenção de interferência no referido órgão, extraídas dos
trechos da manifestação da AGU divulgados até o presente momento:
Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho
as inteligências das Forçar Armadas que não têm informações, a ABIN tem os seus
problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando
realmente… temos problemas… aparcelamento, etc. A gente não pode viver sem
informação. Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta ouvindo o que o seu
filho ou a sua filha tá comentando? Tem que ver pra depois… depois que ela
engravida não adiante falar com ela mais. Tem que ver antes. Depois que o
moleque encheu os cornos de droga, não adianta mais falar com ele: já era. E
informação é assim.
(...)
Então essa é a preocupação que temos que ter: a
questão estratégia. E não estamos tendo. E, me desculpe, o serviço de
informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou
informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou
interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma
verdade.
(...)
Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de
Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f* minha
família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da
segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder
trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto
final. Não estamos aqui para brincadeira.
68. Das
afirmações transcritas acima, deduz-se a intenção do Denunciado de:
a) Obter informações da
Polícia Federal além daquelas a que legalmente o Presidente da República tem
acesso, a teor da Lei nº 9.883/99 (Sistema Brasileiro de Inteligência), como
forma de subsidiar a tomada de decisões estratégicas, isto é, interferir nas
atividades policiais para atender a interesses particulares;
b) Espionar a atividade da
Polícia Federal (“Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta”);
c) Interferir
diretamente nas investigações da Polícia Federal (“Por isso, vou interferir.
Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”);
d) Interferir na troca de
comando da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro (“Já tentei trocar gente
da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso
acabou”).
69. Após a divulgação
da manifestação da AGU pela imprensa, em 15/5/2020, o Denunciado admitiu,
ainda, ter mencionado a Polícia Federal na reunião ocorrida no dia 22/4/2020,
embora tenha tentado afirmar que a sigla utilizada (“PF”) diria respeito à
segurança familiar – o que é inconcebível, tendo em vista que a segurança do
Presidente da República e de seus familiares é de responsabilidade do Gabinete
de Segurança Institucional (GSI), não da Polícia Federal.
70. Essas
intenções de uso do aparato policial judiciário como se fosse a Polícia Federal
um tipo de polícia particular, polícia política, polícia de governo ou polícia
do Presidente, haviam sido confessadas pelo Denunciado em pronunciamento
ocorrido no dia 24/4/2020. Na ocasião, o Denunciado, confirmando parte das
acusações do ex-Ministro Sérgio Moro, confessa que, em inúmeras ocasiões,
procurou interferir e influenciar a condução de investigações da Polícia
Federal, como nos casos do atentado que sofrera em Juiz de Fora, ainda na
campanha presidencial, e no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco.
Falava-se em interferência minha na Polícia Federal.
Oras bolas: se eu posso trocar um ministro, por que eu não posso, de acordo com
a lei, trocar o diretor da Polícia Federal? Eu não tenho que pedir autorização
para ninguém para trocar o diretor ou qualquer um outro que esteja na pirâmide
hierárquica do Poder Executivo. Será que é interferir na Polícia Federal quase
que exigir, implorar a Sergio Moro, que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro?
A PF de Sergio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe
supremo. Cobrei muito deles isso daí. Não interferi. Eu acho que todas as
pessoas de bem no Brasil querem saber. Entendo, me desculpe senhor ex-ministro:
entre meu caso e o da Marielle, o meu está muito menos difícil de solucionar.
Afinal de contas, o autor foi preso em flagrante de delito, mais pessoas
testemunharam, telefones foram apreendidos. Três renomados advogados, em menos
de 24 horas, estavam lá para defender o assassino. Isso é interferir na Polícia
Federal? Será que pedir à Policia Federal, quase implorar, via ministros, que
fosse apurado o caso Marielle, no caso porteiro da minha casa 58, na avenida
Lúcio Costa, 3.100? Quase que por acaso descobrimos. Se não pedisse para meu
filho ir à portaria e filmar a secretária eletrônica, talvez ficasse a dúvida
para todos que eu poderia estar envolvido nisso. Isso foi numa quarta-feira de
março de 2018, onde entre a ligação do porteiro para a minha casa e as minhas
digitais nos painéis de presença da Câmara tinha um espaço de menos de uma
hora. Eu não estava lá. Depois, a perícia da Policia Civil do Rio ainda chega à
conclusão que aquela voz não é a voz do porteiro em questão. Será que é
interferir na Polícia Federal exigir uma investigação sobre esse porteiro, o
que aconteceu com ele? Ele foi subornado? Ele foi ameaçado? Ele sofre das
faculdades mentais? O que aconteceu para ele falar com tanta propriedade um
fato que existiu há praticamente um ano atrás? É exigir da Polícia Federal
muito, via senhor ministro, para que esse porteiro fosse investigado? Com todo
o respeito a todas as vidas do Brasil, acredito que a vida do presidente da
República tem um significado. Afinal de contas, é um chefe de Estado. Isso é
interferir na Policia Federal? Cobrar isso da sua Polícia Federal? Confesso
que, ao longo do tempo, como bem vos lhes disse, uma coisa é ter uma imagem,
conhecer uma pessoa. A outra é conviver com ela. Nunca pedi para ele para que a
PF me blindasse onde quer que fosse. […]
E outra coisa: é desmoralizante para o presidente
ouvir isso. Mais ainda externar. Ou não trocar, porque não foi trocado, sugerir
a troca de dois superintendentes entre 27. O do Rio, (pela) questão do
porteiro, a questão do meu filho 04, Renan, que agora tem 20, 21 anos de idade.
Quando, no clamor da questão do porteiro, do caso Adélio, que os dois
ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu filho 04 teria
namorado a filha desse ex-sargento. Eu comecei a correr atrás. Primeiro chamei
meu filho (e falei): "abre o jogo". "Pai, eu saí com metade do
condomínio, nem lembro quem é essa menina, se é que eu estive com ela".
Hoje a vida é assim. A intenção de dizer que meu filho namorava a filha do
ex-sargento era que nós tínhamos relacionamento familiar. Eu não me lembro
dele. Pode ser até que tenha tirado foto com ele — durante pré-campanha,
campanha, era comum eu tirar em media 500 fotografias por dia, porque essa era
minha imprensa. E daí eu fiz um pedido para a Polícia Federal, quase como por
favor: chegue em Mossoró (RN) e interrogue o ex-sargento. Foram lá, a PF fez o
seu trabalho, interrogou e está comigo a cópia do interrogatório onde ele diz
simplesmente o seguinte: "A minha filha nunca namorou o filho do
presidente Jair Bolsonaro porque minha filha sempre morou nos Estados
Unidos". Mas eu é que tenho que correr atrás disso? Ou é o ministro, a
Polícia Federal que têm que se interessar? Não é para me blindar porque eu não
estou incurso em nenhum crime. [...]
71. Os fatos
aludidos levaram o Supremo Tribunal Federal a instaurar, por provocação do
Procurador-Geral da República, o Inquérito nº 4.831.
72. Dos elementos
colhidos a partir do discurso do próprio Denunciado, sobressai a constatação de
que as condutas por si assumidas demonstram a ocorrência de crimes de
responsabilidade, a teor do artigo 85, III e V, da Constituição, e dos artigos
7º, item 5, 9º, itens 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079/50, abaixo transcritos:
Constituição:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e,
especialmente, contra:
(...)
III - o exercício dos direitos políticos, individuais
e sociais;
(...)
V - a probidade na administração;
Lei nº 1.079/50:
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre
exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
(...)
5 - servir-se das autoridades sob sua subordinação
imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o
pratiquem sem repressão sua;
(...)
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a
probidade na administração:
(...)
4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma
contrária às disposições expressas da Constituição;
5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas
legais;
6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário
público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno
ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a
honra e o decôro do cargo.
73. Destaca-se,
por fim, que é irrelevante que o Denunciado tenha ou não alcançado êxito na
intenção de interferência na Polícia Federal, vez que a Lei nº 1.079/50 também
alcança os crimes tentados, a teor de seu artigo 2º.
II.3.
MENOSPREZO E SABOTAGEM DE CAUTELAS E MEDIDAS DE CONTENÇÃO DOS EFEITOS DA
PANDEMIA DO COVID-19.
74. Em uma outra
perspectiva, mostra-se necessário analisar a responsabilidade do Presidente da
República à luz do enfrentamento do atual contexto de pandemia da doença
causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da doença denominada
COVID-19.
75. Os fatos que serão a seguir mencionados, no
contexto da profunda crise sanitária decorrente da disseminação do novo
coronavírus em território nacional agregam fatores consideráveis ao panorama de
violações das obrigações do Presidente da República em relação ao exercício do
cargo.
76. Desde a eclosão da emergência de saúde em
escala mundial, o Presidente da República assumiu uma postura absolutamente
temerária e irresponsável em seus atos e pronunciamentos versando sobre o
tema.
77. Com efeito, o Presidente da República
adotou comportamento de viés antagônico e contraproducente ao esforço do
Ministério da Saúde e de diversas instâncias da Federação vinculadas ao Sistema
Único de Saúde (SUS) e aos serviços de prevenção, atenção e atendimento
médico-hospitalar à população.
78. Como se poderá conformar pela narrativa a
seguir, as atitudes do Presidente da República tiveram caráter substancialmente
atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e
brasileiras, em reiterado e perigoso menosprezo à gravidade da emergência de
saúde decretada pelo próprio governo federal, no sentido de perpetrar
intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas governamentais
indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe sanitária
em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na
escalada do número de diagnósticos e mortes associadas à pandemia no
país.
79. Desde 31 de
dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou os países para o
surgimento de uma nova enfermidade descoberta na província de Hubei, na China.
Em 30 de janeiro de 2020, a OMS reconheceu a existência de emergência de saúde
pública de importância internacional (ESPII)[41]. A partir de então,
autoridades de distintas nações têm adotado medidas para conter o avanço da
doença, que, no entanto, já atingiu todos os continentes, contaminando um total
de cerca de 5 milhões de indivíduos.
80. Ato contínuo,
mesmo ainda ser ter casos registrados da doença, o Brasil aprovou a Lei nº
13.979/2020, que estipulou medidas para enfrentamento da referida ESPII.
81. Contudo,
desde que registrado o primeiro caso da COVID-19 no Brasil, em 26 de fevereiro
de 2020, o Estado Brasileiro, em especial a União, por força de uma atitude
errática e irresponsável do Presidente da República, falhou conscientemente em
prover a assistência necessária à população, abdicando da sua tarefa precípua
de articular, coordenar e harmonizar nacionalmente as ações de natureza
preventiva e de atendimento, além das medidas de orientação à sociedade e de
fixação de padrões de contenção da devastação humanitária e sanitária causada
pela pandemia, acarretando um sério agravamento da difusão da doença, que levou
o país a ser, atualmente, o principal foco de disseminação do novo coronavírus.
82. No dia 19/5/2020, o Brasil registrou 1179
mortes decorrentes da Covid-19, número que pode ser ainda maior quando se
considera que se trata do país que, proporcionalmente, menos testa sua
população, dentre os dez países com mais casos registrados.[43] Já são, ao
todo, 17.971 vítimas e 271.628 casos confirmados.[44] Esses números trágicos e
assustadores prosseguem em ascensão na presente data, potencializados sob a
grave suspeita de subnotificações.
83. O comentário do Denunciado diante da
recente evolução de tal cenário foi de que “Quem é de direita toma cloroquina.
Quem é de esquerda toma Tubaína”, o que dá a dimensão da ausência de
responsabilidade de quem menosprezou a emergência sanitária e continua a
sabotar as medidas de contenção da pandemia.
84. Em 11 de
março de 2020, a OMS declarou a existência de uma pandemia em escala global.
Àquela altura, o Brasil ainda não registrara morte pela doença, mas já poderia
se preparar para a contenção dos seus maléficos efeitos, que ainda contaminava
pouco mais de uma centena de pessoas em nosso país.
85. No entanto,
mesmo ciente da gravidade das questões emergenciais que se avizinhavam, apenas
em 18/03/2020 o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional –
através da Mensagem n. 93, de 18 de março de 2020 – pedido para que fosse
declarada a ocorrência de calamidade pública a fim de viabilizar a atenuação
dos efeitos negativos da pandemia de COVID-19 para saúde e a economia
brasileira.
86. Como é
possível verificar, a deliberada e injustificada inércia do Poder Executivo
Federal fez com que fosse perdido um tempo precioso na corrida para salvar
vidas de milhares de brasileiros e diminuir as contaminações e adoecimentos.
87. A despeito de
tal morosidade, o Congresso Nacional aprovou, em dois dias, o Decreto
Legislativo n. 06, de 20 de março de 2020, que “reconhece, para os fins do art.
65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de
calamidade pública”.
88. No entanto,
apesar da autorização legislativa para gastos excepcionais, que extrapolam os
limites orçamentários, o Governo Federal apenas autorizou, até 19 de maio de
2020, o dispêndio de menos de 32% do valor total alocado para o enfrentamento à
pandemia.
89. Veja-se
que o próprio Ministério da Saúde, em seu Boletim Epidemiológico nº 6, de 3 de
abril de 2020, data em que o país ainda contabilizava 9.056 casos e 359 óbitos,
alertava para a necessidade de investimentos emergenciais para o enfrentamento
da pandemia, com a necessidade de ampliação para realização de 30 a 50 mil
testes RT-PCR por dia para que se fizesse frente ao avanço do vírus:
A capacidade laboratorial do Brasil ainda é
insuficiente para dar resposta a essa fase da epidemia. Até o momento foram
registradas 25.675 hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave no Brasil,
sendo apenas 7% (1.769/25.675) confirmadas para COVID-19. A Rede Nacional de
Laboratório é semi-automatizada, composta pelos 27 Laboratórios Centrais de
Saúde Pública (LACENs), Instituto Evandro Chagas e todas as unidades da
Fundação Oswaldo Cruz que juntas, em carga máxima, são capazes de processar
aproximadamente 6.700 testes por dia. Para o momento mais crítico da
emergência, será necessária uma ampliação para realização de 30 a 50 mil testes
de RT-PCR por dia. Para isso, o Ministério da Saúde está estabelecendo parceria
público-privada com grandes redes de laboratórios e ampliando a capacidade dos
LACENs, Fiocruz e Instituto Evandro Chagas. No entanto, não há escala de
produção nos principais fornecedores para suprimento de kits laboratoriais para
pronta entrega nos próximos 15 dias.
90. Diante desse
cenário, percebe-se que, após um mês e meio da doença instalada no Brasil, e
mais de dois meses após a declaração da emergência de saúde pública, o
Ministério da Saúde apontava que o país apenas realizava pouco mais de 20%
(vinte por cento) dos testes necessários para um acompanhamento mínimo da
pandemia, capaz de orientar as políticas públicas no sentido de estratégias
focadas em grupos ou localidades específicas.
91. Tal
circunstância redundou em uma explosão de subnotificações e na falta de clareza
sobre as melhores políticas a serem formuladas pelos agentes
governamentais.
92. Convém notar
que, até a presente data, a capacidade de realização de testes dn Brasil é
significativamente inferior àquela de outros países que passam pelo mesmo
problema, o que implica o necessário reconhecimento de que os números oficiais
estão substancialmente aquém das reais estatísticas da pandemia. Veja-se o
gráfico referente aos testes por milhão de habitantes em 19 de maio de 2020:
93. Os alertas
dos riscos da inação do poder público diante da pandemia são há muito
noticiados pelas autoridades de saúde pública. Diante da ausência de testes em
massa, entidades médicas vêm divulgando a necessidade de rígidos controles de
movimentação da população nas cidades, com o propósito de conter a curva de
morbidade e, acima de tudo, evitar o colapso iminente do sistema de saúde no
país, o que inevitavelmente obrigaria os profissionais de saúde a elegerem cidadãos
para serem atendidos, em detrimento de outros, agravando as estatísticas de
mortes decorrente da pandemia.
94. Veja-se a
nota de uma das mais respeitadas instituições de ensino e pesquisa da medicina
no país, a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, datada
ainda do mês de março:
Não há contradição entre proteção da economia e
proteção da saúde pública. A recessão econômica decorrente da pandemia será
global e já é inevitável. Medidas de proteção social, especialmente o provimento
de renda mínima para trabalhadores informais e complemento de renda para
populações vulneráveis, a exemplo do que outros países estão fazendo, devem ser
adotadas imediatamente. Esta proteção econômica é um dever do Estado que
garantirá tanto a subsistência dos beneficiários como a preservação de um nível
básico de consumo, protegendo a vida e a economia, inclusive os pequenos
comércios. Neste cenário, os cortes de salários, inclusive de servidores
públicos, constituiriam dano irreparável à economia, com queda ainda mais
brusca de patamares de consumo. Não há que se confundir a economia brasileira
com interesses econômicos de determinados grupos.
O isolamento exclusivo de pessoas em maior risco não
é uma medida viável, especialmente em um país com as características do Brasil,
com elevados índices de doenças crônicas não transmissíveis que constituem
comorbidades relevantes diante da incidência do novo coronavírus. É importante
ressaltar que a Covid-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação
e, como bem revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens
saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados,
podem vir a engrossar as estatísticas de óbitos evitáveis. Ademais, a
experiência de outros países demonstra que, na falta de isolamento, parte
significativa dos profissionais de saúde está sendo infectada por transmissão
comunitária, ou seja, em seu convívio social, reduzindo o contingente de
trabalhadores disponíveis, em prejuízo da saúde desses profissionais e de toda
a sociedade.
95. No mesmo
sentido, veja-se a nota da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI):
Quando a COVID-19 chega à fase de franca disseminação
comunitária, a maior restrição social, com fechamento do comércio e da
indústria não essencial, além de não permitir aglomerações humanas, se impõe.
Por isso, ela está sendo tomada em países europeus desenvolvidos e nos Estados
Unidos da América.
Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem,
fisioterapeutas e todos os demais profissionais de saúde estão trabalhando
arduamente nos hospitais e unidades de saúde em todo o país. A epidemia é
dinâmica, assim como devem ser as medidas para minimizar sua disseminação.
“Ficar em casa” é a resposta mais adequada para a maioria das cidades brasileiras
neste momento, principalmente as mais populosas.
96. A
recomendação da Organização Mundial da Saúde, por sua vez, é expressa ao
encorajar os países que realizem lockdown a aproveitarem esse tempo para
desenvolver ações que previnam a disseminação da doença.
97. Tal
recomendação fundamenta-se em estudos científicos dotados de rígidos critérios
metodológicos, a exemplo daqueles empreendidos pelo Imperial College de
Londres, que desenvolveu um modelo de previsão de cenários de acordo com as posturas
adotadas pelos governos de cada país diante da crise do novo coronavírus. No
relatório datado de 26 de março de 2020, são feitas projeções específicas para
o Brasil (DOC. 19), sintetizadas em matéria jornalística do jornal Folha de S.
Paulo:
O principal objetivo do isolamento social é impedir
que o número de doentes leve os hospitais ao colapso, provocando mortes em
excesso. O Brasil tem 46 mil leitos de UTIs com respiradores, capacidade que só
não será superada na hipótese mais radical de intervenção.
NENHUMA INTERVENÇÃO
Cenário em que a vida segue normalmente. Dessa
maneira, o coronavírus contagiará 188 milhões de brasileiros, dos quais 6,2
milhões terão que ser hospitalizados e 1,5 milhão precisará ser internado em
UTI.
Neste caso, o número de mortes estimado é de
1.152.283.
DISTANCIAMENTO SOCIAL
No caso de adoção de medidas como proibição de
eventos, redução na circulação, restrição a encontros, uma estratégia mais
branda e operacionalmente mais viável que as duas seguintes, o número de mortes
chega a 627 mil brasileiros, nos cálculos do Imperial College.
São infectados 122 milhões de brasileiros, dos quais
3,5 precisarão de hospitalização e 831 mil terão que ocupar uma UTI.
COM DISTANCIAMENTO SOCIAL E ISOLAMENTO DOS IDOSOS
Protegendo os idosos, parcela da população mais
suscetível a complicações e mortes provocadas pelo coronavírus, o número de
mortes chega a 530 mil, nos cálculos dos cientistas. Nesse cenário eles só
devem sair de casa apenas em situação de absoluta necessidade.
São infectados 121 milhões de brasileiros, 3,2
milhões precisam ser hospitalizados e 702 mil ficam em estado crítico, que
requer tratamento em UTI.
COM SUPRESSÃO TARDIA
Além de determinar o distanciamento social de toda a
população, são feitos testes massivos, os casos positivos são isolados e os que
tiveram contato com eles, monitorados. É o que fez a Coreia do Sul. As medidas
são aplicadas quando há 1,6 morte por 100 mil habitantes por semana. Nesta
semana, a taxa de mortes por 100 mil por semana brasileira foi 0,04.
Essa abordagem mais rigorosa reduz o número de mortes
a 206 mil.
São contaminados 49,6 milhões de brasileiros, dos
quais 1,2 milhão precisarão ser internados em hospitais, e 460 mil terão
necessidade de cuidados intensivos. No pico da pandemia, a necessidade será de
460 mil leitos de hospital e 97 mil leitos de UTI.
98. A despeito do
quadro trágico desenhado já em meados do mês de março de 2020, o governo
federal adotou posturas erráticas e o Presidente da República, ora Denunciado,
tornou-se responsável pela completa ausência de direção clara no combate à
pandemia. Converteu-se em autêntico sabotador das políticas públicas
responsáveis e prudentes na área de saúde em nosso país, justamente no momento
mais delicado que a saúde pública enfrentou em toda a nossa história.
99. Em 9.3.2020,
o Presidente da República manifestou-se, pela primeira vez, sobre a chegada do
novo coronavírus (Sars-Cov-2) ao país, durante evento realizado na cidade de
Miami-Flórida, nos Estados Unidos da América. Na ocasião, apontou que “Os
números vêm demonstrando que o Brasil começou a se arrumar em sua economia.
Obviamente, os números de hoje têm a ver, a queda drástica da Bolsa de Valores
no mundo todo, tem a ver com a queda do petróleo que despencou, se eu não me
engano, 30%. Tem a questão do coronavírus também que no meu entender está
superdimensionado o poder destruidor desse vírus, então talvez esteja sendo
potencializado até por questão econômica”.
100. Em 10.3.2020, novamente em
Miami-Flórida, Estados Unidos, o Presidente minimizou a crise causada pelo novo
coronavírus e atacou a cobertura midiática dos acontecimentos, afirmando que
“Muito do que tem ali é mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso
tudo que a grande mídia propaga”.
101. Em 11.3.2020, data em que a
Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de pandemia da
COVID-19, o Presidente brasileiro afirmou que “O que eu ouvi até o momento,
outras gripes mataram mais do que essa”.
102. Em 15.3.2020, contrariando todas as
recomendações oficiais e ainda enquanto aguardava confirmação de exame de
diagnóstico da COVID-19, o Presidente participou de manifestações convocadas
contra as instituições republicanas, realizadas em 15 de março de 2020, tendo
entrado em contato com, pelo menos, 272 pessoas. No mesmo dia, em entrevista ao
canal CNN Brasil, afirmou que “Quando você proíbe futebol e outras coisas, você
parte para uma histeria. Proibir isso ou aquilo não vai conter a expansão” e
acrescentou que “Devemos tomar providências, pode se tornar uma questão
bastante grave, a do vírus. Mas a economia tem que funcionar porque não podemos
ter uma onda de desemprego”.
103. Em 16.3.2020, em manifestação
reveladora, o Presidente da República deu mostras de ter uma preocupação maior
com a sua permanência no cargo que ora ocupa do que com a saúde e a integridade
física dos brasileiros, ao enunciar que “Se afundar a economia, acaba o meu
governo, acaba qualquer governo. É uma luta pelo poder. Estou há 15 meses
calado, apanhando, agora vou falar. Está em jogo uma disputa política por parte
desses caras”.
104. Em 20.3.2020, a despeito da
recomendação da comunidade científica no sentido de ser recomendável o
isolamento social, o Presidente denominou de “medidas extremas” o impedimento
temporário de realização de deslocamentos em atividades não essenciais, adotado
por governadores de unidades da federação já atingidas pelo novo
coronavírus.
105. Em 24.3.2020, em pronunciamento
nacional de rádio e televisão, o Presidente da República voltou a chamar de
histeria a adoção de medidas preventivas contra o contágio pelo novo
coronavírus. Sem apresentar qualquer dado com mínimo respaldo técnico, afirmou
que Estados e Municípios “devem abandonar o conceito de terra arrasada, a
proibição de transporte, o fechamento dos comércios e o confinamento em massa”
e que “São raros os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos”,
referindo-se à COVID-19 como uma “gripezinha”.
106. Em 26.3.2020, as redes sociais do
governo federal passaram a publicar materiais referentes à campanha
publicitária denominada O Brasil não pode parar, que defendia o retorno à
rotina normal de atividades no país, enquanto os números de infectados pela
epidemia saltavam para a casa dos milhares.
107. Veja-se o teor da campanha:
[print de redes sociais]
108. Paralelamente, teve início a
circulação, também em redes sociais, da campanha em vídeo, acessível no link https://www.youtube.com/watch?v=OosQexo9_lk&feature=emb_title ,
a qual tinha o nítido viés de incentivar a população a retomar suas atividades
habituais e desestimular as políticas de distanciamento social recomendáveis
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde
brasileiro à época.
109. O Presidente declarou, ainda,
que acreditava que o Brasil não chegaria à quantidade de óbitos de países como
Estados Unidos e Itália, porque “o brasileiro tem que ser estudado, não pega
nada. Vê o cara pulando em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada”.
Paralelamente, também sem exibir qualquer elemento científico capaz de fundar
sua afirmação, começou a sustentar que a utilização da hidroxicloroquina teria
absoluta eficácia contra a COVID-19: “Até agora, do pessoal que estou falando,
é 100% a efetividade que está sem notando, 100%”.
110. Em 29.3.2020, além de comparecer a
uma feira livre na cidade-satélite de Ceilândia, a áreas comerciais em
Taguatinga e Sudoeste, no Distrito Federal, Jair Bolsonaro indicou a intenção
de publicar decreto para determinar o retorno ao trabalho de todos os cidadãos
brasileiros: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, mas estou com vontade
de baixar um decreto amanhã: toda e qualquer profissão legalmente existente, ou
aquela voltada para a informalidade, mas que for necessária para o sustento dos
seus filhos, para levar o leite para os seus filhos, levar arroz e feijão para
a sua casa vai poder trabalhar”.
111. Afirmações do gênero se repetiram ao
longo de todo o mês de abril, quando o Presidente passou a se engajar na
propaganda do uso da hidroxicloroquina e da cloroquina como medicamentos para o
tratamento da enfermidade, a despeito da existência de sólidos estudos
científicos apontando a ineficácia e os riscos associados à prescrição
indiscriminada de ambas. Determinou, ainda, a produção em escala dos
medicamentos pelo Exército Brasileiro, adquirindo os insumos a preço
exorbitante, em valor quase seis vezes superior ao pago pelo Ministério da
Saúde em contrato firmado no ano de 2019.
112. E também participou de diversos atos
públicos sem a devida proteção, descumprindo todas as orientações de seu
próprio Ministério da Saúde para prevenção da difusão da COVID-19.
113. Não bastasse isso, o Presidente, em
16 de abril de 2020, demitiu o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta,
por não concordar com as medidas adotadas pelo corpo técnico da pasta durante a
condução da crise. Nomeou, então, Nelson Teich, médico oncologista, que também
veio a ser dispensado em virtude de divergências com as opiniões do Presidente,
menos de um mês depois de assumir o cargo.
114. Notícias divulgadas pela imprensa
nacional dão conta de que, em ambos os casos, a dispensa se deu em virtude de
discordâncias em torno de três questões: inclusão da cloroquina no protocolo de
atenção à saúde de pessoas enfermas; adesão dos ministros às determinações de
isolamento social levadas a cabo por estados e municípios; e expansão
indiscriminada da listagem de atividades consideradas essenciais por meio de decreto
presidencial, com o único propósito de promover a retomada imediata de
atividades econômicas, em contrariedade às recomendações das entidades
internacionais e nacionais de saúde.
115. O resultado, após menos de três
meses da chegada do vírus ao país, é catastrófico. Em 19 de maio de 2019, o
Brasil é o terceiro país do mundo com mais pessoas confirmadas com a doença
(embora, como visto, seja um dos que menos testa). Também é o sexto em número
de mortes causadas pela COVID-19.
116. Além disso, o país é o único, entre
os seis com maior número de casos, em que a curva de contágio ainda é
claramente ascendente. Veja-se:
[gráfico]
117. Estudo recente de pesquisadores da
Fundação Getúlio Vargas, por sua vez, associou diretamente os discursos do
Presidente da República à acentuação de comportamentos de risco:
118. Imprescindível, por outro lado,
fazer menção à peculiar situação de vulnerabilidade a que vêm sendo expostas as
populações tradicionais diante da situação de pandemia. A omissão em prover
ações de prevenção e atendimento pode implicar o adoecimento e morte de parte
considerável desses grupos.
119. Entre os povos indígenas,
estimativas de estudiosos liderados pela demógrafa Marta Azevedo (Unicamp)
indicam que mais de 80 mil pessoas encontram-se em situação de vulnerabilidade
crítica.
120. Investigação da Agência Pública, a
seu turno, aponta que tais populações têm sido abandonadas à própria sorte,
sujeitando-se a constantes invasões de seus territórios, sem que haja qualquer
ação de fiscalização e controle de acesso:
Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas
pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas
enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o
final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um
adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em
Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e
contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos
e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).
121. De igual modo, entre as populações
quilombolas, a situação é alarmante. A ausência de titulação dos territórios
tem dificultado o acesso a serviços essenciais, como saneamento básico, oferta
de água potável, energia elétrica e redes de telecomunicação. Com isso,
torna-se ainda mais difícil a prevenção do adoecimento e o acesso a recursos
para que tais grupos possam fazer frente à pandemia.
122. Não resta dúvida, à luz de tais
informações, de que a conduta pessoal do Presidente da República na condução da
crise da COVID-19 teve o condão de torná-lo incurso no tipo prescrito no art.
5º, item 11, e no art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/1950. De fato, as
contraproducentes decisões tomadas e orientações emitidas pelo Presidente da
República durante a grave crise sanitária contribuíram diretamente para a
ofensa a tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, bem como para uma
maior dimensão da pandemia ora vivenciada, frustrando a fruição plena de
direitos fundamentais por cidadãos brasileiros.
123. Frente à gravidade da situação da
pandemia, desde há muito anunciada pelas autoridades de saúde, as opiniões
pessoais e os atritos de cunho político deveriam tornar-se irrelevantes. Teria
sido necessária uma ação responsável e uma governança compenetrada, à altura do
desafio. Os diversos poderes e as diversas esferas da Federação deveriam ter
agido de forma conjunta, unificada e conforme o texto constitucional.
124. A Constituição promulgada em 1988
introduziu capítulo específico aos direitos sociais, o que fez de modo a
incluir o direito à saúde no título voltado aos direitos e às garantias
fundamentais, in verbis:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
125. Adiante, a Constituição Federal
dedica toda uma Seção a discorrer sobre o direito à saúde, dispondo tratar-se
de direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas
sociais e econômicas:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
126. Para tanto, a Constituição
brasileira estatui que as ações e os serviços de saúde são de relevância
pública, integrando uma rede regionalizada – com direção única em cada esfera
de governo – e hierarquizada que, em sua totalidade, constitui um sistema
único, in verbis:
Art. 197. São de relevância pública as ações e
serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre
sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita
diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de
direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde
integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único,
organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada
esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
(...)
127. Desse modo, além do reconhecimento
dos direitos sociais enquanto espécie dos direitos fundamentais, sobre os quais
sequer se admite restrição por meio de emenda constitucional, tem-se que o
posicionamento em capítulo próprio denota a sua relevância na nova ordem
constitucional, a qual, por pautar-se no compromisso com a cidadania e a
dignidade humana, assegura-lhes plena eficácia.
128. Nesse contexto, o direito social
fundamental à saúde, ao não se subsumir à mera prestação de serviços, portanto,
consubstancia instrumento imprescindível à promoção do bem de todos, sem
preconceitos e quaisquer formas de discriminação, e à construção de uma sociedade
justa e solidária.
129. Estes são, justamente, os
compromissos insculpidos no Título I da Constituição Federal, destinado a
instituir os fundamentos do Estado Democrático de Direito e os objetivos da
República Federativa do Brasil:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e
solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
130. No que diz respeito à eficácia dos
direitos sociais, o texto constitucional não deixa margem para dúvidas ao
dispor que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CRFB).
131. Disso decorre, portanto, o dever do
Estado – nos diferentes níveis da federação – de pautar a sua atuação em
estrita observância à garantia de máxima efetividade quando se tratar de
matérias afetas a direitos e garantias fundamentais, notadamente ao direito
social à saúde ameaçado por ocasião da pandemia COVID-19, pelo que estas exigem
prestações positivas do Estado.
132. Tal garantia de máxima efetividade,
contudo, somente pode ser alcançada objetivamente se as ações estatais forem
fundadas em critérios técnicos, apurados pelos órgãos com a atribuição
constitucional, legal e regulamentar para tal, a abrangerem não apenas aqueles
constituídos a partir do direito interno, mas também os que derivam das
formulações de direito internacional.
133. Há que se destacar que, consoante se
extrai do art. 5º, § 2º da Constituição, “os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte”, sendo inequivocamente incorporados ao ordenamento
brasileiro com natureza supralegal.
134. Sobressai, neste contexto, o teor
das determinações exaradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), aplicáveis
à pandemia que ora afeta todos os continentes do planeta.
135. Como já referido, em 30 de janeiro
de 2020, a OMS conferiu à epidemia do novo coronavírus o status de “emergência
de saúde pública de importância internacional”, o que significa, nos termos do
Regulamento Sanitário Internacional de 2005, “um evento extraordinário que
(...) é determinado como: (i) constituindo um risco para a saúde pública para
outros Estados, devido à propagação internacional de doença; e (ii)
potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada”.
136. Sob essas condições, exsurge a
necessidade imperativa de seguimento das diretrizes formuladas por aquela
entidade internacional. Veja-se que, de acordo com o artigo 2º, alínea a, da
Constituição da OMS, compete àquela entidade “atuar como autoridade diretora e
coordenadora dos trabalhos internacionais no domínio da saúde”. Referido texto
normativo foi internalizado pelo Brasil por meio do Decreto nº 26.042, de 17 de
dezembro de 1948, tornando compulsórias para o país a adoção das medidas
indicadas pela Organização Mundial da Saúde em circunstâncias tais como aquelas
atualmente verificadas.
137. Na execução das diretrizes de saúde
emanadas da OMS, os Estados deverão observar o dever de due diligence, devendo
atuar “utilizando-se de seus melhores esforços para lidar com certos riscos,
ameaças ou danos”, o que engloba o obrigação de fazer tudo quanto seja
razoavelmente esperado para diminuir as lesões à saúde coletiva.
138. A razão de ser essencial do dever de
due diligence no âmbito da OMS decorre do compromisso firmado entre os países
de mutuamente envidarem esforços para conter quadros epidêmicos, evitando, por
exemplo, que a transmissão de infecções de modo transfronteiriço possa gerar
quadros de crise global ou, quando isso não é possível, que ao menos sejam
reduzidos os efeitos deletérios das enfermidades.
139. Quanto ao dever de não causar danos,
este implica a obrigação de máxima precaução em torno de temas relacionados à
saúde e à integridade humanas. De acordo com o Projeto de Artigos sobre Danos
Transfronteiriços decorrentes de Atividades de Risco, formulado pela Comissão
de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU), os Estados
devem prevenir a ocorrência de danos transnacionais adotando todas as providências
necessárias para minimizar os riscos associados.
140. Esse dever aparece de forma
explícita em documentos internacionais referentes a outras matérias, tais como
a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que
ratificou os princípios da ONU a respeito do meio ambiente humano. Em
conformidade com o Princípio nº 2 daquela declaração:
os Estados têm o direito soberano de aproveitar seus
próprios recursos segundo suas próprias políticas ambientais e de
desenvolvimento, e a responsabilidade de velar para que as atividades
realizadas dentro de sua jurisdição ou sob seu controle não causem danos ao
meio ambiente de outros Estados ou de zonas que estejam fora dos limites da
jurisdição nacional.
141. No que tange ao dever de proteger o
direito à vida, este encontra respaldo no art. 6º do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos, firmado em 1966 e internalizado no Brasil por meio
do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. A obrigação dos Estados decorrente do
mencionado dispositivo não abarca apenas a responsabilidade por não extirpar
intencionalmente as vidas dos cidadãos que estejam sob sua jurisdição. É
preciso, também, que sejam realizados todos os esforços razoáveis para
salvaguardar as vidas que estejam sob sua responsabilidade.
142. Nesse sentido, importa verificar que
a jurisprudência de cortes internacionais de direitos humanos tem reconhecido
como parte inerente ao direito à vida a adoção de medidas capazes de garantir
com efetividade a proteção da integridade física dos cidadãos, tal como
decidiram o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Calvelli e Ciglio v.
Itália e a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Ximenes Lopes v. Brasil,
conforme se extrai dos trechos a seguir adunados
Calvelli e Ciglio v. Itália (TEDH): “O Tribunal
assinala que, em virtude do artigo 2º [da Convenção Europeia sobre Direitos
Humanos], a Itália estava obrigada a ter estabelecido um marco regulatório que
obrigasse os hospitais, tanto públicos quanto privados, à adoção de medidas
adequadas para assegurar a proteção à vida de seus enfermos”.
Ximenes Lopes v. Brasil (CorteIDH): “O Tribunal
dispôs que o dever dos Estados de regular e fiscalizar as instituições que
prestam serviço de saúde, como medida necessária para a devida proteção da vida
e integridade das pessoas sob sua jurisdição, abrange tanto as entidades
públicas e privadas que prestam serviços públicos de saúde quanto aquelas
instituições que prestam exclusivamente serviços privados de saúde (...).
Especialmente com relação às instituições que prestam serviço público de saúde,
como fazia a Casa de Repouso Guararapes, o Estado não somente deve regulá-las e
fiscalizá-las, mas tem, ademais, o especial dever de cuidado com relação às
pessoas ali internadas”.
143. Já em matéria de proteção ao direito
à saúde, ressaem as obrigações jurídicas dos Estados de promoverem a “prevenção
e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem
como a luta contra essas doenças” e de “criação de condições que assegurem a
todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade”, conforme
preconizado pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC), em seu art. 12, (2), c e d.
144. A esses deveres objetivos do Estado,
acrescenta-se o necessário cumprimento das obrigações jurídicas referidas no
Regulamento Sanitário Internacional (RSI), documento já mencionado
anteriormente que tem o propósito de estabelecer condutas diante de eventos que
afetem a saúde coletiva de múltiplos territórios. As medidas normativas
determinadas pelo RSI são assim enumeradas por Coco e Dias:
Outras obrigações de due diligence que repousam no
RSI incluem: o dever de avaliar se os eventos anteriormente descritos podem
constituir potencialmente uma “emergência de saúde pública de importância
internacional” e, em caso positivo, de notificar – eficientemente e, em
qualquer caso, dentro de 24 horas – a Organização Mundial de Saúde (OMS) a
respeito da avaliação e de qualquer medida de saúde que o Estado em questão já
tenha adotado em resposta (Artigo 6(1)); o dever de continuamente compartilhar
todas as informações de saúde pública relevantes com a OMS (Artigo 6(2)), mesmo
em caso de eventos de saúde pública não usuais ou inesperados, como é o caso do
surto de COVID-19 (Artigo 7); o dever de embasar a implantação de qualquer
medida de saúde em princípios científicos, nas evidências disponíveis em
qualquer orientação, recomendação ou informação provida pela OMS (Artigo
43(2)).
145. Consoante enunciado pelos autores do
estudo, extrai-se da leitura do Artigo 43(2) do RSI um dever objetivo dos
Estados de promoverem políticas públicas de enfrentamento às emergências
sanitárias baseadas em critérios científicos e nas recomendações provenientes
da Organização Mundial da Saúde.
146. Por fim, mas não menos importante, é
imperativo mencionar, como derivação direta do princípio de due diligence, o
dever de proteção às pessoas em caso de desastres, que encontra fundamento no
artigo 10 do Projeto de Artigos da Comissão de Direito Internacional da ONU
sobre a matéria. Extrai-se do dispositivo que “O Estado afetado tem o dever de
assegurar proteção às pessoas e prover assistência emergencial no seu
território” (1) e que “O Estado afetado tem o papel primário na direção, no controle,
na coordenação e na supervisão dessa assistência emergencial” (2)[86], o exato
oposto do que tem perseguido o governo federal, por meio de seu principal
representante.
147. De todas essas enunciações concretas
do dever de due diligence, extraem-se dois horizontes de responsabilização do
Estado Brasileiro. (a) De um lado, parece claro que, em sendo o país signatário
dos principais atos de direito internacional acionados na situação sob apreço,
o direito ao atendimento dos critérios técnicos e científicos nas práticas
sanitárias estatais incorporou-se ao patrimônio jurídico dos cidadãos
brasileiros com caráter, ao menos, de norma supralegal (conforme art. 5º, §2º,
da Constituição). (b) De outro lado, também é evidente que a desobediência aos
referidos critérios deriva da responsabilidade pessoal do ocupante eventual do
cargo de Presidente da República, porquanto as responsabilidades internacionais
do Estado Brasileiro atraem a este último a imputação imediata de obrigações
cogentes perante instâncias multilaterais.
148. E esta é a vocação da Lei do
Impeachment ao classificar, entre os crimes contra a existência da União, a
violação dos tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.
149. Quanto a esse último tema, não é
demais recobrar a possibilidade de acionamento perante órgãos internacionais,
prevista no artigo 75 da Constituição da OMS, o qual, em tese, poderia até
mesmo embasar eventual queixa de outro Estado que venha a se sentir afetado
pela ausência de providências eficazes adotadas pelo Brasil:
Artigo 75
Qualquer questão ou divergência referente à
interpretação ou aplicação desta Constituição que não for resolvida por
negociações ou pela Assembléia da Saúde será submetida ao Tribunal
Internacional de Justiça, em conformidade com o Estatuto deste Tribunal, a
menos que as partes interessadas concordem num outro modo de solução.
150. Com as características já conhecidas
do novo coronavírus, não seria de espantar que outra nação buscasse a Corte
Internacional de Justiça para que sejam adotadas providências em face do
comportamento vacilante do governo brasileiro na prevenção à pandemia. Isso
porque a omissão do Estado Brasileiro em prover todos os meios para a contenção
da pandemia pode acarretar a ocorrência de danos transfronteiriços,
desperdiçando-se, assim, todo o esforço em que se engajaram numerosas nações de
todo o globo para conter o avanço da enfermidade.
151. Inequívoco, ainda, que a conduta
presidencial exorbitou o campo estrito de discricionariedade administrativa no
campo da saúde. Note-se que, entre os princípios regentes da Administração
Pública, na forma do art. 2º da Lei nº 9.784/1999, encontra-se o da
razoabilidade, de modo que a atuação dos agentes públicos deve atentar, ao
“atendimento a fins de interesse geral”, à “objetividade no atendimento do
interesse público” e à “adequação entre meios e fins”.
152. A constatação de que a atuação
pessoal do Presidente da República, diante da crise do novo coronavírus,
pautou-se pela contínua lesão ao princípio da razoabilidade acarretou atentado
significativo a um princípio basilar da Administração Pública, que, como tal,
impõe o reconhecimento de ato de improbidade, na forma do art. 11, caput, da Lei
nº 8.429/1992. Embora a aplicação do referido dispositivo não acarrete, por si
só, a deflagração de impeachment, por certo que o reconhecimento da referida
lesão qualifica os crimes de responsabilidades já descritos à exaustão.
153. Diante do exposto, verificam-se
violadas as obrigações legais do Denunciado, tanto do ponto de vista interno
(dever de proteção à saúde dos indivíduos), quanto do ponto de vista externo
(dever de cumprimento dos tratados internacionais), restando configurados os
tipos penais veiculados pelos arts. 5º, inciso 11; 7º, inciso 9; e 8º, inciso 7
e 8, da Lei nº 1.079/1950.
III.
DOS
PEDIDOS
154. Por
todo o exposto, apresentam os seguintes requerimentos:
a) Que seja recebida,
processada e julgada procedente a denúncia contra o Presidente da República por
crime de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos I, II,
III, IV e V da Constituição da República e nos termos das tipificações
decorrentes da incidência do art. 5º, inciso 11; do art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6
e 7; do art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9; do art. 8º, incisos 7 e 8; e do art.
9º, incisos 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, a
efetivamente habilitar o recebimento da denúncia, conforme o art. 218, § 2º, do
RICD, seu processamento e procedência, seguidos da decretação da acusação pela
Câmara dos Deputados e remessa ao Senado Federal, visando à suspensão das
funções presidenciais e ao julgamento definitivo do impeachment, com a
prolação de decisão condenatória e subsequente destituição do acusado do cargo
de Presidente da República, com a sua inabilitação para o exercício de função
pública pelo prazo de oito anos, nos termos do artigo 52, parágrafo único, da e
os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 e de acordo com o
objeto acima sintetizado;
b) Uma vez que os Autores e
as Autoras da presente denúncia procedem ao seu respectivo protocolo em formato
virtual, com assinaturas de apenas parte dos Denunciantes certificadas
eletronicamente, na forma da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e, assim
reconhecida sua autenticidade para a finalidade constante no art. 218, §1º, do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados; e considerando as excepcionais
circunstâncias atualmente vivenciadas em face da pandemia da COVID-19, que não
permitem deslocamentos para certificação digital, reconhecimentos de firma em
cartórios nem mesmo a autenticação presencial de documentos (conforme Ato da
Mesa Diretora nº 118/2020, a impossibilitar o comparecimento individual às
dependências da Câmara dos Deputados), requerem a validação presencial ou
eletrônica posterior das assinaturas restantes, sem que haja prejuízo ao
andamento da denúncia, tampouco impugnação da autoria daqueles que suprirão os
requisitos formais tão logo seja restabelecida a normalidade dos serviços
cartoriais e de secretarias referenciados;
c) a juntada dos
documentos anexos como elementos de comprovação da prática dos crimes de
responsabilidade narrados na presente denúncia;
d) a produção de prova
testemunhal, mediante a oitiva das pessoas indicadas a seguir, as quais deverão
ser intimadas para tal finalidade em conformidade ao que dispõe o artigo 18 da
Lei n. 1.079/50, sem prejuízo da produção de outras provas, de qualquer
natureza, visando à comprovação dos fatos ora apontados como ensejadores de
crimes de responsabilidade;
ROL DE
TESTEMUNHAS:
1. Carlos Henrique
Oliveira.
2. Francisco de Assis
Sampaio (Dida Sampaio).
3. Artur Chioro.
4. Jefferson Botega.
5. Sérgio Fernando
Moro.
6. Clarissa Oliveira.
7. Renato Onofre.
8. Ricardo Della
Coletta.
Pedem deferimento.
Brasília, 21 de maio de 2020.
*As notas
de rodapé foram excluídas para facilitar a leitura do texto
Acompanhe o registro do Coronavírus pelo mundo
Renato Aroeira – O que faço com tantos pedidos de impeachment ?
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