sexta-feira, 27 de março de 2015

Narrar em tempos pós-modernos: 1001 Sherazades

Heidrun Krieger Olinto (PUC-Rio)
I myself have always aspired to write Barton's version of The 1001 nights
complete with appendices and the like, in twelve volumes, and for
intellectual purposes I needn't even write it.
John Barth


O conto que abre a coletânea Lost in the Funhouse, de John Barth, com suas dez palavras, é, segundo o próprio autor, provavelmente a mais curta narrativa em língua inglesa e, ao mesmo tempo, infinita (Barth, 1984). Intitulada "Frame-Tale", eis a história escrita em maiúsculas nas margens de duas páginas, frente e verso:

ONCE UPON A TIME THERE WAS A STORY THAT BEGAN

Sua leitura é orientada por um minúsculo manual para o usuário com as recomendações de cortar a folha de papel na linha tracejada, torcer os lados e juntar, em seguida, AB com ab e CD com cd. Como resultado, emerge um anel de Möbius de estrutura uni, bi, ou tridimensional, e, de acordo com a direção do nosso olhar, a sua leitura pode iniciar-se ou terminar em qualquer ponto.

Neste IX Seminário Internacional, A Situação da Narrativa no Início do Século XXI, dedicado a Sherazade, gostaria de prestar certa homenagem a John Barth, escritor, teórico e professor universitário, confessada e perdidamente enamorado da bela narradora, e que, em todas as esferas de seus interesses profissionais, ajudou a transformá-la em musa do pensamento pós-moderno. Se existe algum tipo de consenso com respeito a este problemático termo, ele se articula em torno desta figura emblemática, celebrada de forma incondicional, visível não apenas na produção literária contemporânea, mas igualmente nos espaços de sua teorização e nos projetos didáticos vinculados a novas estratégias de leitura.

Inicio, então, a minha história com era uma vez uma história que começava assim: Dizem as crônicas dos antigos sultões da Pérsia que Shariar herdou do seu pai um Império que se estendia muito além da Pérsia, incluindo a Índia e a China, restando para o irmão Shazenam a província da Tartária. Eis a primeira moldura para uma narrativa sobre os infortúnios de dois irmãos que, traídos pelas respectivas esposas, passam a vagar pelo mundo até um dia se transformarem em espectadores de um novo episódio, envolvendo como protagonista um gênio maligno, que esconde no fundo do mar, numa caixa de vidro trancada a sete chaves, uma bela mulher, que, por seu lado, conta a história do seu rapto no dia do seu casamento, seguido por incontáveis traições.

O relato emoldurado em terceiro grau transforma-se em moldura para contar a desgraça de milhares de virgens-de-uma-noite-só, vítimas do sultão que não perdoa a infidelidade das mulheres.

E é apenas a partir deste momento do enquadre da história dentro da história dentro da história dentro da história que surge - não na posição de narradora, mas na qualidade de ouvinte, atenta mas teimosa - a decantada filha do Grão-vizir, totalmente imune aos apelos do pai, que, por meio de fábulas exemplares ("O boi e o burro" e "O mercador e sua mulher", por exemplo) se esforça em fazê-la desistir do seu plano suicida de salvar as companheiras-virgens do inevitável destino nos braços fatais do sultão.

"Não adianta, meu pai - ela disse - nem essa, nem todas as histórias deste mundo me afastarão do meu plano" (Ladeira, 1992: 18).

O que pensar dessa curiosa falta total de ressonância das histórias contadas, justamente nos ouvidos daquela que se transformou em figura mágica do poder sedutor da palavra imaginária, expressa magistralmente pela equação: narrar = viver?

Sherazade, bela, curiosa, mais instruída do que todas as mulheres de seu tempo, lendo muito, conhecendo artes e ciência, filosofia, medicina, e fazendo versos superiores aos dos mais famosos poetas, pretende salvar-se, paradoxalmente, pelo efeito encantatório da fabulação a que ela própria resiste? Como entender a contradição aparente em torno dessa estranha imunidade?
Uma segunda pergunta permite situar as questões que motivam as minhas reflexões sobre a indagação temática deste Seminário: Saudades de Sherazade?

Por que razão esses contos - inumeráveis - de autoria anônima e de origem diversa, circulando no mundo árabe desde o século VIII (na Pérsia, na Mesopotâmia, na Índia, no Egito), articulados e rearticulados a partir de múltiplas tradições orais e transmitidos em cadeia ininterrupta até serem colhidos por escribas desde o século XI, marginalizados, no entanto, e invisíveis no cânone da literatura árabe erudita, por causa do estigma de sua função de entretenimento nas casas de café, por que motivo, afinal, essas pouco mais de duzentas historinhas fascinaram o tão sofisticado e filosófico século XVIII europeu por ocasião de sua primeira tradução para o francês, por Antoine Galland?

E quais as razões e circunstâncias que transformaram a bela Sherazade em musa incontornável de inumeráveis escritores contemporâneos, rotulados ou não de pós-modernos?

Um olhar sobre algumas hipóteses permite - eventualmente - sinalizar algumas pistas.

Não é de todo improvável supor que o material das histórias "extraordinárias, assombrosas" - das histórias fantásticas, instrutivas, exemplares, anedotas, lendas, histórias de amor, de aventura e viagem -, que compõem a coletânea, de certo modo aberta, dos contos das Mil e Uma Noites, tenha encantado um público ocidental, não apenas pela oferta exótica e pelo efeito de estranhamento diante de um mundo desconhecido, mas também pelo efeito de compensação diante de uma reflexão filosófica árida, sisuda, moralista, alheia a sensibilidades e a sensorialidades.

Os argumentos de John Barth permitem atualizar a questão. Em 1984, por ocasião de um colóquio sobre o fantástico na Universidade de Florida Atlantic, em Boca Raton, ele aproveita a oportunidade de falar mais uma vez sobre "my friend Sherazade" (Barth, 1984:218).

Era uma vez - assim ele inicia a sua conferência intitulada "Tales within Tales within Tales" - que eu escrevi em 1971 uma história sobre Dunyazade, a irmã menor de Sherazade, que estava sentada ao pé do leito nupcial durante 1001 noites, observando o rei fazer amor e escutando todas essas histórias antigas, assombrosas e fantásticas. Na versão de Barth, Sherazade é assistida neste empreendimento narrativo por um gênio americano da segunda metade do século XX, que surgiu misteriosamente por entre as estantes de seus livros por translação temporal e espacial. Este escritor, desde muito jovem apaixonado e inspirado por ela, consente em fornecer-lhe do seu futuro narrativo aquelas histórias do passado narrativo que Sherazade precisava para poder lidar com o seu perigo presente. O gênio americano conhece todas as histórias naturalmente do seu exemplar pessoal do livro de contos das Mil e Uma Noites e a assistência dada a Sherazade permite-lhe solucionar não só os problemas dela, mas também os seus próprios pesadelos e inquietações, que são iguais aos de todos os narradores: o que fazer para escrever mais um romance, mais um e mais um? Em outras palavras, o que fazer para salvar sempre de novo o pescoço do escritor? "Como eu gostaria que essa fantasia fosse real, como gostaria eu de ser aquele gênio e falar com a bela, talentosa e sábia Sherazade!", diria o autor no referido colóquio (Barth, 1984:238).

Na versão ficcional de John Barth, Dunyazadíada, o mundo narrado se localiza nos anos 70, portanto historicamente no tempo dos movimentos pelos direitos civis, em especial da emancipação da mulher, e o momento exato é o fim da milésima primeira noite em que Dunyazade, aliás Duny - irmãzinha menor que durante trinta e seis meses assumia o papel de ouvinte passiva - se transforma em protagonista, narrando em primeira pessoa a sua versão para um novo ouvinte, o irmão do sultão (Barth, 1986). Eis então a estória de Duny:

Sherry estava no último ano da Faculdade de Artes e Ciências na Universidade de Banu Sasan, era rainha da festa da faculdade, oradora da turma, atleta destacada na equipe universitária, tinha uma biblioteca particular de mil livros e a média mais alta na história do campus, de modo que todos os departamentos de pós-graduação do Oriente estavam atrás dela, oferecendo bolsas de estudo. Ela, no entanto, tinha largado a universidade no último semestre para se dedicar em tempo integral à pesquisa sobre a estratégia mais adequada a ser adotada para impedir Shariar de massacrar todas aquelas jovens mulheres e, além do mais, destruir psicologicamente o seu pai.

Ciências Políticas, a primeira opção, não a levou a nada porque o sultão poupava as filhas de oficiais do exército mais graduados e escolhia as vítimas entre famílias intelectuais e outras minorias liberais. Aliás, o ódio pelas mulheres era tolerado e até apoiado pelas instituições tradicionais. Ainda por cima, Shariar mandava assassinar apenas virgens de casta superior, o que, calculadamente, impedia a formação de uma base popular para uma guerra de guerrilha.

Em todo o caso, Sherry começava a achar pior a represália de uma invasão externa com a ajuda do irmão do que a própria política do sultão, de uma virgem-por-noite. Daí Sherry e Duny desistirem das Ciências Políticas e tentarem Psicologia, que, no entanto, se revelava logo outro beco sem saída, porque Sherry descobria que a ira do sultão por ter sido chifrado era menos em decorrência de grilos específicos de sua psique do que de algum tipo de patologia, devido a problemas culturais e à sua posição de monarca absoluto.

Daí, quando nada mais funcionava, Sherry voltou-se, por estranho que possa parecer, para o seu primeiro amor, a mitologia e o folclore, aprofundando-se em todos os enigmas, adivinhações e temas secretos que pôde desencavar.

Precisamos de um milagre, Duny - ela disse - e os únicos gênios que eu já encontrei existiram em livros e não em anéis de mouros ou lâmpadas de judeus. A mágica está nas palavras abracadabra, abre-te sésamo e todas as outras - mas a verdadeira mágica está em entender quais as palavras que funcionam, quando e para quê. O truque está em aprender o truque (Barth, 1982:10).

Pequena Duny - ela disse com ar sonhador - faça de conta que tudo isso é a trama de uma história que estamos lendo e que você e eu e papai e o Rei somos todos personagens de ficção. Nesta história, Sherazade encontra um meio de fazer o Rei mudar de opinião sobre as mulheres e transformá-lo em marido gentil e carinhoso. Não é difícil imaginar uma história assim, é? Ora, seja qual for o meio encontrado - um passe de mágica, ou uma história mágica com a resposta, ou qualquer coisa mágica - tudo se resume a certas palavras na história que estamos lendo e essas palavras são feitas com as letras do nosso alfabeto" (11).

Foi nesse instante que apareceu um gênio do nada, no meio das estantes dos livros, um sujeito de pele clara, de uns quarenta anos, sem barba e calvo como um ovo, parecendo tão assustado quanto nós duas.

"Você é realmente Sherazade? - ele perguntou - Nunca tive um sonho tão claro e real!"(11). Parecia-lhe um sonho tornado realidade. Ele era um escritor de contos numa terra no outro lado do mundo e se encontrava numa profunda crise de inspiração, tendo o seu trabalho chegado a uma paralisia total.
Houve um tempo, segundo ele, em que o povo do seu país gostava de ler, mas nos tempos atuais os únicos leitores de ficção eram críticos, outros escritores e estudantes de Letras contrariados porque se pudessem escolher novamente prefeririam música e desenhos a palavras.

Sua própria carreira tinha alcançado um hiato, pois ele não queria nem repudiar e nem repetir realizações passadas; aspirava a ir além delas em direção a um futuro com o qual estas não estavam em sintonia e, ao mesmo tempo, queria retornar às fontes originais da narrativa.

"Meu projeto - ele nos disse - é aprender onde ir, descobrindo onde estou e revisando onde estive - onde nós todos estivemos"(12).

Segundo ele, existe um tipo de caracol que vai construindo sua casca com qualquer coisa que aparece à sua frente à medida que caminha, e, instintivamente, planeja sua trilha na direção do melhor material disponível para sua casca; carrega sua história nas costas, vive nela, acrescentando novas e maiores espirais do presente, conforme cresce.

Podemos abandonar, neste ponto, a história de Dunyazade, porque os tópicos temáticos sobre a arte de narrar e sobre a arte de ler/ouvir encontram-se, ainda, discutidos de forma magistral em dois ensaios de John Barth, que se transformaram em manifestos programáticos, hoje clássicos, do projeto pós-moderno na literatura.

Não foram as histórias inventadas por Sherazade que seduziram John Barth, mas, antes, a sua narradora e as circunstâncias extraordinárias do seu gesto narrativo. Em outras palavras: a situação de Sherazade e as convenções narrativas da história moldura; o significado das Mil e Uma Noites; a relação terrível mas fecunda entre a narradora e a sua audiência; o ultimato de publicar ou perecer (publish ou perish) e as suas conseqüências fatais; e ainda o papel crucial da pequena Dunyazade ao pé da cama, que no final se transforma de ouvinte em contadora de histórias.

O que interessa a John Barth de modo especial é o fenômeno estrutural das histórias inseridas em histórias, um fenômeno que, de certo modo, implica a narração de histórias sobre histórias e, mais ainda, histórias sobre a arte de narrar histórias. Trata-se de um problema tão antigo, persistente e onipresente como os próprios impulsos narrativos.

Uma segunda resposta diz respeito às categorias de realidade e de ficção. Jorge Luis Borges, inspirado por Schopenhauer, estabeleceu uma equivalência entre realidade e ficção, no sentido de tratá-las como representação a partir do uso de categorias, relações, conceitos de tempo e de espaço, como ficção nossa, traduzível como fantasia compartilhada. Em outras palavras, a diferença entre a fantasia que chamamos de realidade e a fantasia que consideramos fantasia depende dos nossos consensos culturais.

Neste sentido, Gabriel García Márquez, citado por John Barth, acha, por exemplo, que o surrealismo que os gringos acreditam encontrar em sua ficção corresponde, na verdade, à realidade da vida cotidiana em seu país.

Em relação a Borges, John Barth lembra a sua fascinação pela idéia de que o erro de um copista pudesse provocar um regresso infinito, ao transformar, na 602.ª noite, a própria Sherazade em narradora dos contos das Mil e Uma Noites, rompendo, assim, o enquadre lógico das histórias emolduradas, inserindo o narrador exterior no mundo por ele mesmo narrado.

A razão do interesse de Borges por essa estrutura em abismo - que encerra uma história na outra, na outra, na outra, na outra... - é insinuada pelo próprio autor a partir da "perturbação metafísica" que esse tipo de narrativa provoca. Esses contos, dizia Borges, inseridos em outros contos, que se articulam como aquelas esferas chinesas, dentro das quais há outras esferas, produzem um efeito curioso, quase infinito, como uma espécie de vertigem (Borges, 1985:84).

Sua explicação é simples: quando os personagens de uma obra se transformam em leitores ou autores de ficção, eles nos lembram os aspectos fictícios de nossa própria existência (Barth, 1967:33).
Essas histórias, que se estendem simultaneamente para o "mundo real" e para o "mundo da ficção", interrogando posições narratológicas e temáticas, representam, neste contexto, eventuais respostas contemporâneas para o realismo, na comunicação literária atual. E, como já sabemos, respostas históricas e, por isso, volúveis.

Ainda que John Barth tente atenuar o peso destas reflexões filosóficas discursivas na literatura contemporânea, elas emergem natural e permanentemente no interior de sua obra, seja pelas viagens no tempo, seja pelas contaminações constantes da realidade pelo irreal ou pela própria fórmula estrutural do texto dentro do texto. Estes procedimentos, que acentuam anacronismos, reversibilidades no tempo, travessias entre supostos espaços reais e ficcionais, aprofundam tópicos temáticos que formavam exaustivamente o repertório e o horizonte de indagações acerca da literatura, especialmente em suas configurações modernistas e pós-modernistas.

Um olhar sobre os dois textos do autor, antes mencionados, "The Literature of Exaustion", de 1967, e "The Literature of Replenishment", de 1980, não deixa dúvida sobre os seus compromissos assumidos e sublinham, mais uma vez, as ligações amorosas com a sublime Sherazade.

John Barth, um dos primeiros escritores a ser chamado de pós-moderno, tenta entender ele próprio o que esse rótulo pode significar, por ocasião de um curso sobre o assunto, em 1980, a convite da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Na ausência de uma definição a partir de marcas convergentes, ele se declara de antemão avesso a ser membro de um clube do qual não fazem parte, igualmente, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez e o italiano Italo Calvino. Uma análise superficial de sua própria produção ficcional pareceu-lhe curiosamente atravessada por traços estéticos pré-modernistas, modernistas e pós-modernistas, não apenas em obras sucessivas, mas igualmente numa mesma obra. O exemplo revela uma literatura indiferente em relação a fronteiras legitimadas por vínculos nacionais e mostra, ao mesmo tempo, a presença sincrônica de marcas históricas e estéticas heterogêneas.

Mas o que, afinal, estava em questão e perturbava os escritores e críticos da literatura, quando John Barth publicava em 1967 o primeiro dos dois ensaios teóricos? A progressiva megacomercialização da indústria livresca vinculada ao mercado da multimídia tinha motivado algumas mudanças de atitude nos hábitos de leitura. Livros que se ofereciam ao leitor em forma de fita cassete, sob a bandeira de listen for pleasure, para acompanhar o seu tricotar caseiro e o seu jogging social, e, ainda, os contratos de editoras para tiragens acima de duzentos mil exemplares, combinados com a venda de direitos para TV, cinema e vídeo, souvenirs, camisetas, jogos, posters e cosméticos, não só tornaram a relação texto/leitor intransparente, como deslocaram os acentos tradicionais. Assim, Judith Krantz, do alto da edição de três milhões de exemplares de Princess Daisy, se mostrava indiferente à crítica arrasadora das instituições literárias acadêmicas, porque se dizia amada pelas multidões e levada a sério pelos editores e banqueiros. Em compensação, críticos como Leslie Fiedler, nos anos 70, declaradamente a favor do que então chamavam de democracia cultural, ensaiam retiradas cautelosas durante a década de 80, constatando que "no fundo sabemos que literatura é o que ensinamos nos departamentos de Letras ou, dito de outro modo, o que ensinamos nos departamentos de Letras é literatura" (Förster, 1986:30).

John Barth, por seu lado, ao citar o diálogo entre dois escritores contemporâneos rotulados de pós-modernos, revela a sua própria posição a respeito. A confissão do escritor John Gardner, de que ele gostaria que os seus livros fossem amados por todo o mundo, é questionada pelo escritor William Gass a partir do argumento de que ele, com esta posição, confunde amor com promiscuidade. E, do mesmo modo, como este último não gostaria que a sua filha fosse amada por todos os homens, tampouco queria que isto acontecesse com os seus próprios livros (1984:203). Em outra passagem do mesmo texto, ao caracterizar o seu escritor pós-moderno ideal, Barth retoma a delicada relação entre o autor e o público leitor, do seguinte modo: ele certamente não pode aspirar a atingir e a emocionar os fãs de James Michener e Irving Wallace, sem falar dos analfabetos lobotomizados dos meios de comunicação de massa. Mas deveria, isto sim, aspirar a comover e a encantar um público mais amplo do que aquele círculo reduzido, que Thomas Mann chamava de primeiros cristãos, ou seja, os devotos profissionais da Grande Arte (203).

Em todo caso, uma das questões adormecidas durante longo tempo na esfera do ensino da leitura de literatura volta a ter espaço. Uma questão que Umberto Eco e John Barth, que com frequência se citam mutuamente, têm colocado com insistência.

Umberto Eco, por exemplo, analisa com interesse profundo uma pergunta feita por Leslie Fiedler acerca da curiosidade em saber se ainda terá vez algo que possa ser lido com a mesma paixão tanto na cozinha, como na sala e no quarto das crianças, algo como A Cabana do Pai Tomás. Mas quando Fiedler ensaia colocar Shakespeare ao lado dos que sabiam divertir, juntamente com ...E o Vento Levou, Umberto Eco atenua esta sua afirmação: "Todos sabemos que se trata de um crítico por demais sutil para acreditar nisso" (1985:60). Mas o que importa nesta questão é o libelo de Fiedler a favor do rompimento da barreira, antes de mais nada, erguida para separar a esfera da arte da experiência da fruição prazerosa.

Eco dizia em O Pós-escrito a O Nome da Rosa, com todas as letras: "Eu queria que o leitor se divertisse" (Eco, 1985:48). Para ele, a redescoberta, não só do enredo, mas também do prazer, viria a ser realizada pelos escritores e teóricos americanos do pós-modernismo. John Barth, por seu lado, cita como síntese pós-modernista o livro Cosmicômicas, de Italo Calvino (1992). Trata-se de

fábulas da era espacial maravilhosamente escritas, terrivelmente sedutoras - que John Updike chamou de sonhos perfeitos - cuja matéria é tão moderna quanto a nova cosmologia e tão antiga quanto os contos folclóricos, mas cujos temas são o amor e a perda do ser amado, a mudança e a permanência, a ilusão e a realidade, sem excluir boa parte da realidade especificamente italiana. Como todo escritor dotado de grande imaginação, Calvino alça vôo a partir de fatos pontuais e tangíveis: além das nebulosas, dos buracos negros e do lirismo, encontra-se, também uma porção de pasta, de bambini e de mulheres sedutoras (Barth, 1984:204).

Trata-se de aventuras cosmicômicas que transformam reflexões filosóficas e teorias científicas sobre a origem e a evolução do universo em deliciosas histórias, cheias de humor, emoção e pensamentos terrestres. Histórias do livro, delirantes e hilariantes, inspiradas em Giordano Bruno, Beckett, Lewis Caroll, Borges e no marinheiro Popeye. Formulam-se, ainda, sisudos tratados filosóficos e enunciados extraídos do discurso científico que estimulam a fantasia inesgotável do autor e excitam a imaginação adormecida do leitor. Em suma, trata-se de uma caixinha de surpresas que nunca deixa de explorar os múltiplos caminhos da arte de narrar.

John Barth incita todos a ler esse escritor pós-modernista autêntico o quanto antes, "sobretudo porque a sua ficção é ao mesmo tempo deliciosa e rica em proteínas" (404).

Algo semelhante poderia dizer-se a respeito das próprias reflexões teóricas de Calvino, preparadas para ser discutidas em seis conferências na Universidade de Harvard no ano letivo de 1985-86. O título em inglês dado por ele ao ciclo de palestras era Six memos for the next millennium. As palestras nunca chegaram a acontecer; Calvino morreu antes e a última nem sequer foi escrita.
Feitas de divagações, memórias, trechos autobiográficos, essas conferências tematizavam a crise contemporânea aguda da linguagem e identificavam as qualidades que orientam as atividades dos escritores e da literatura pela leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Na perspectiva atual, elas são vistas como precioso legado do milênio do livro para a geração do ano 2000. Assim pelo menos o querem orelha e contracapa que apresentam o livrinho de cento e poucas páginas como testamento artístico de um dos protagonistas literários do fim do segundo milênio (Calvino, 1990). Sendo o primeiro escritor italiano a ser convidado a participar desse ciclo tradicional, realizado pela Universidade de Harvard, Calvino preparou-se para a tarefa com esmero e com a responsabilidade especial de representar uma tradição literária secular. Assim, a primeira das seis - ou melhor, cinco - propostas, com o título de "Leveza", baliza-se em figuras consagradas da filosofia, da ciência e da literatura, fazendo desfilar, desordenadamente, em vinte e seis páginas, nomes tais como Ovídio, Lucrécio, Kundera, Boccaccio, Cavalcanti, Dante, Emily Dickinson, Henry James, Shakespeare, Cervantes, Rabelais, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift, Newton, Giordano Bruno, Luciano de Samósata, Ludovico Ariosto, Leopardi, Galileu, Voltaire, Leibniz, Pitágoras. A conferência explora caminhos novíssimos ou antigos, estilos e formas no universo infinito da literatura, articula o imaginário da literatura com diferentes ramos da ciência, destacando mensagens do ADN, impulsos neurônicos, quanta, neutrinos e informática, fazendo com que realidades físicas coexistam ao lado de fábulas mitológicas. Desliza para terrenos da antropologia e da etnologia, incluindo mulheres, bruxas e a Santa Inquisição. Matéria misturada confusamente ao sabor do acaso: "Há demasiados fios intrincando-se em um discurso? Qual deles devo puxar para ter em mãos a conclusão?" (Calvino, 1990: 39).

Não é difícil imaginarmos a continuação da história da história da história das 1001 noites no início do nosso novo milênio. Provavelmente as novas sherazades se teriam matriculado em Estudos Culturais, multi, trans e pós-culturais e nos Estudos Pós-coloniais, com atenção especial aos Estudos Orientais. E certamente teriam ensaiado novas formas de escrita inspiradas pelas imagens e pelas novas tecnologias midiáticas e intermidiáticas.

O que John Barth pretendia sinalizar ao usar o termo exaustão referia-se explicitamente tanto aos conteúdos de um realismo ingênuo na literatura, alheio a todo um novo repertório de questões sobre as complexas relações entre ficção e realidade, e as suas formas de representação, quanto às formas metalingüísticas radicais que se tinham transformado, no alto modernismo, em tópico temático quase exclusivo para a discussão sobre a própria arte de escrever.

"Eu não sou filósofo, dizia ele, eu sou contador de histórias" (Barth, 1984:222).
Tampouco se tratava de opções excludentes de extremidades polares. O escritor pós-moderno se balança nas zonas intermezzo do isto e aquilo e não do isto ou aquilo. Cuidando da razão e do coração com virtuosismo, maestria e paixão. Eis a sua fórmula da plenitude.

E eis também uma resposta à nossa pergunta inicial. Como explicar o curioso paradoxo da certeza da força de sedução que Sherazade depositava em sua própria capacidade narrativa, quando este ato exercido pelo pai demonstrara exatamente o efeito contrário? Uma reflexão sobre a paixão avassaladora do gênio americano pela contadora árabe secreta uma possível chave.

Trata-se, em última instância, do equilíbrio instável entre os contos narrados e a arte de narrá-los que se aproxima do projeto estético revigorado de John Barth expresso, repito, pela sinergia razão - coração - virtuosismo - maestria - paixão. Diante deste ideário, o destino das pobres histórias exemplares, de advertência, do Grão-vizir, estava selado de antemão.

Certamente, a Sherazade do novo milênio encontrará novas soluções fantásticas, assombrosas, que hoje mal podemos intuir.

Saudades dela? Não precisamos. Ela está entre nós, aqui e agora.

Referências bibliográficas:

Barth, John. Dunyazadíada. In: ______. Chimera. São Paulo: Marco Zero, 1986. p. 7-49.
______. The literature of exhaustion. The Atlantic, 220, 2, p. 29-34, 1967.
______. The literature of replenishment. In: ______. The Friday Book. New York: Putnam, 1984. p.193-206.
______. Lost in the Funhouse. New York: Doubleday, 1968.
______. Tales Whithin Tales Within Tales. In: ______. The Friday Book. New York: Putnam, 1984. p. 218-238.
BORGES, Jorge Luis. As mil e uma noites. In: ______. 7 noites. São Paulo: Max Limonad, 1985.
CALVINO, Italo. As cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
______. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ECO, Umberto. Pós-escrito a "O nome da rosa". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
FÖRSTER Hans. The end of intelligent writing? Buchmarkt und literarische Situation in den USA zu Beginn der achtziger Jahre. Zeitschrift für Anglistik und Amerikanistik, n. 34, p. 25-32, 1986.
LADEIRA, Julieta de Godoy. As mil e uma noites. São Paulo: Scipione, 1992.


Transcrito de http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_06.html

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