“Com frequência, é preciso ser um desviante minoritário para estar no real.
Embora, aparentemente, nele não haja nenhuma perspectiva,
nenhuma possibilidade, nenhuma salvação, a realidade
não está paralisada para sempre, ela tem seu mistério e sua incerteza.
O importante é não aceitar o fato consumado”
Edgar Morin
A inaudita perspectiva de uma extinção precoce da espécie humana em decorrência de suas próprias ações, como vêm apontando muitos especialistas nas ciências da Terra, provavelmente será um dos principais estigmas que deve assombrar a humanidade neste século XXI. Inauguramos um tempo sombrio, que nasce sob o signo ignominioso de uma profunda agudização do processo de destruição dos ecossistemas, em aceleradíssimo curso nesta Era do Antropoceno, no qual os humanos alcançaram, por meio da hegemonia capitalista predatória globalizada, o estágio mais avançado do seu ímpeto de dominação e subordinação da natureza e, por consequência, de pulsão de morte e de autoaniquilação.
O trágico século XX foi marcado pelas guerras e pelos totalitarismos desencadeados no seio dos dois principais projetos civilizatórios fracassados – o capitalismo e o socialismo real –, os quais rivalizaram ao longo do período em que a humanidade vivenciou os maiores horrores contra a condição humana. Estima-se que pelo menos 187 milhões de vidas foram dizimadas (Brzezinski, 1993) por deliberações humanas, o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Neste início do século XXI, com a insistência da humanidade em continuar na rota ecocida do sistema-mundo capitalista, a degradação ambiental em escala planetária, combinada ao crescente declínio das democracias e às ameaças dos avanços do fenômeno da algoritmização da vida, ambos patrocinados pela globalização insana de uma visão tecnomercadológica de mundo, constituem os dois principais motores da regressão e da barbárie civilizatória que se anunciam, já para as próximas décadas.
Como compreender as forças que nos arrastaram, ao longo do tortuoso percurso civilizatório, para um modo de viver tão incongruente com a natureza? Como se contrapor a uma sociabilidade capitalista tão dissonante das dinâmicas que sustentam a imensa teia de vida do nosso planeta e que está nos empurrando para uma realidade tão distópica e insustentável? Como entender e resistir a um comportamento humano tão esquizofrênico, ecocida e, no limite, suicida?
Um pensador planetário
Uma das respostas a essas grandes indagações do nosso tempo está na trajetória de vida de um dos mais prodigiosos pensadores contemporâneos, que hoje (8/7/2021) celebra seus 100 anos de insurgência contra um modo de viver de viés unidimensional, fragmentado, controlador e, portanto, desconectado da complexidade do mundo real. Estamos falando do multifacetado Edgar Morin, notável pensador francês que, mesmo tornando-se um centenário, conseguiu manter, até os dias atuais, a sua lucidez e capacidade de compreender e lidar com as realidades tão precárias que ele mesmo vivenciou desde os tenebrosos anos 1920, incluindo-se as adversidades que se impuseram à sua própria vida pessoal. Como ele mesmo sempre gosta de mencionar, uma vida inspirada pelos versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminhante, não há o caminho. O caminho se faz ao andar, ao andar se faz o caminho”.
O renomado sociólogo francês Alain Touraine o chamou de “humanista planetário”. De fato, Morin é reconhecido por muitos como um pensador planetário que, para compreender as muitas facetas do real, optou por transitar, simultaneamente, pela sociologia, filosofia, antropologia, biologia e muitas outras áreas do saber, sempre buscando as conexões (invisíveis aos olhos da racionalização disjuntiva, que tudo separa) entre as diversas ilhas de conhecimento e integrando-as a partir de um “pensamento do contexto e do complexo” que pudesse dar um melhor entendimento das contradições da condição humana e de sua cada vez mais desajustada interação com a realidade complexa que a cerca e que a desafia permanentemente.
Desde cedo, Morin começou a perceber que a realidade não poderia ser reduzida às noções de ordem, certeza, separação e causalidade linear – atributos considerados alicerces dos ideais iluministas da modernidade, ainda muito dominantes na contemporaneidade. Para ele, a busca da compreensão do real está nas incessantes interações e retrointerações entre uma infinidade de componentes que o integram, isto é, a realidade é mais bem compreendida pelo entrelaçamento de atributos como incerteza, desordem e acaso.
Por isso, o estranho mundo real, na visão de Morin, comporta riscos constantes de erros e ilusões, face à aleatoriedade que o permeia. “A complexidade”, afirma Morin, “é o desafio, não a resposta”. Diferentemente das visões de mundo que moldaram a experiência humana no passado e ainda a moldam no presente, a complexidade (a origem do termo complexo vem do latim complexus, que significa “o que é tecido junto”) nos remete a uma visão de mundo aberta, plural e incerta. Ela procura acolher e conciliar as inúmeras “verdades” que tentam decifrar a realidade. Ela reconhece que tais “verdades” são indecifráveis, pois resultam de um oceano de relações e de incessantes interações que integram o real. Por isso, lidar com o real é estar em permanente processo de descoberta, desconstrução e reconstrução, em um constante diálogo com a realidade, cujos principais atributos parecem mais próximos da ideia de aleatoriedade, diversidade, ambiguidade, pluralidade, instabilidade, multiplicidade, imprevisibilidade e incerteza.
Uma vida desafiada pelo inesperado
Sua própria experiência de vida, intelectual, política e pessoal, o levou a essa percepção de um real imponderável. Morin já chega ao mundo, em 8 de julho de 1921, tendo seu primeiro contato com o imprevisível. Segundo ele, “o parto foi um momento trágico, no sentido de que a vida de minha mãe necessitava da minha morte e minha vida devia provocar sua própria morte. Minha mãe sobreviveu à expulsão, mas eu nasci quase morto, estrangulado pelo cordão umbilical.” A mãe, Luna Beressi, uma judia sefaradita, em razão de ter contraído gripe espanhola, sofria de uma grave doença cardíaca, o que a desaconselhava ter filhos. Beressi, com quem Morin estabeleceu uma ligação maternal muito forte, faleceu 10 anos depois, o segundo imprevisível devastador na vida de Morin, que lhe provocou “uma Hiroshima interior”.
A partir daí, Morin entra num processo de imersão pessoal, buscando refúgio na literatura e no cinema, principais influências na sua formação. “A literatura, assim como o cinema”, na ideia de mundo de Morin, “quando bem concebidos, representam uma aprendizagem da compreensão humana (…) Entendemos o próximo muito melhor do que na vida real, e é esta compreensão que é preciso inserir na realidade”.
Sua adolescência foi marcada pelas turbulências da Europa dos anos 1930, que se afundou em regimes ditatoriais implacáveis e sanguinários. Em 1940, antes dos nazistas chegarem à França, Morin, com apenas 19 anos e já sem a proteção do seu pai – Vidal Nahoum, também judeu sefaradita, que havia sido convocado para guerra –, resolve assumir sua liberdade. Pega um trem e vai se refugiar em Toulusse onde conseguiu continuar seus estudos. Poucos anos depois, em 1942, para escapar da ocupação das tropas nazistas, foge para Lyon. “Conquistei minha liberdade”, diz ele, “contraditoriamente, quando a França perdeu a sua”.
Após a guerra, em 1945, Morin voluntariou-se para ajudar na reconstrução da Europa e foi nomeado oficial do exército francês de ocupação para trabalhar numa Alemanha devastada. Lá escreveu seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha (L’An zéro de l’Allemagne. Paris, França: La Cité universelle, 1946.). Nessa obra, Morin registra suas primeiras percepções acerca da complexidade do real. Ele mergulha nas contradições da condição humana ao refletir sobre a trágica experiência do povo alemão na guerra. Como uma sociedade que produziu mentes notáveis como Hegel, Marx, Brecht, Kant, Beethoven e tantos outros foi capaz de se deixar levar pelo devaneio nazista? “Perplexo, olhando aquele país destruído”, reflete Morin, “me perguntava como era possível que aquela nação, que abrigou a mais rica filosofia, a mais bela música, uma cultura extraordinária, tenha sucumbido ao nazismo.”
Assim foi a adversa trajetória de Morin nas suas primeiras experiências de vida. Outros momentos marcantes de sua vida podem ser consultados no sítio eletrônico produzido pelo SESC-SP (acesso aqui), que reúne o melhor acervo, disponível no Brasil, sobre a vida, a obra e a visão de mundo desse extraordinário pensador.
A cegueira diante da complexidade do real
Todas essas experiências intensas parecem ter ajudado Morin a desenvolver suas múltiplas capacidades de compreensão do real, para além do que a visão de mundo hegemônica sempre impôs em cada momento histórico. Capacidades que se manifestam de forma vigorosa até hoje, mesmo ele tendo alcançado o seu centenário. Para Morin não há como observar e compreender o real sem que haja uma religação das muitas disciplinas e saberes que foram apartados pelo “grande paradigma do Ocidente”, concebido por Descartes e irradiado para o mundo dentro do processo histórico de dominação europeu, a partir do século XVII. Sua principal proposta para melhorarmos nossa percepção do real está no “pensamento complexo”, que procura compreender que os fenômenos da natureza (incluindo a humana) não podem ser traduzidos pelas dualidades cartesianas, tais como ordem/desordem, sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria, qualidade/quantidade, emoção/razão, liberdade/determinismo, dentre muitas outras. Na visão complexa de mundo elaborada por Morin, todas essas dicotomias não são atributos da realidade tão separados e excludentes como imagina a visão de mundo cartesiana, que sustenta o ideário tecnoeconomicista atualmente hegemônico.
Sua postura torna-se cada vez mais rebelde diante de uma academia produtora de conhecimentos estanques, compartimentalizados e, consequentemente, reprodutora de mentes embotadas para o real, acomodadas num “conformismo cognitivo”. Por isso sua preocupação com a pertinência do conhecimento gerado pela academia. Para Morin, “o parcelamento e a compartimentalização dos saberes impedem de aprender ‘o que está tecido junto’”. Contrariando a primazia da objetividade e da razão, Morin transgride o modo de fazer Ciência e opta por compreender o real a partir de novos métodos de cognição.
Um desses métodos, por exemplo, é o que adota o princípio dialógico, conforme ele mesmo expressa neste depoimento sobre suas primeiras pesquisas sociais: “quando se deseja estudar uma comunidade, seres humanos, devemos, evidentemente, ser 100% objetivos, procurar considerar os fatos, os dados assim como se apresentam. Ao mesmo tempo, era preciso ser 100% subjetivo, quer dizer participar, comunicar, amar as pessoas. Ou seja, é preciso utilizar inteiramente a objetividade e a subjetividade, apesar de que a subjetividade era considerada pela maioria dos sociólogos como sendo algo negativo.” Para Morin, os supostos antagonismos que integram a realidade não são mutuamente excludentes como pensa a visão binária de mundo ainda predominante. Eles são, simultaneamente, concorrentes e complementares, razão pela qual precisamos saber abracá-los para compreendermos e lidarmos melhor com o real.
Foi graças ao trabalho de Morin que muitos autores de diversas áreas do conhecimento passaram a desenvolver novos métodos de cognição e investigação dos problemas que se colocam diante da experiência humana. A partir desse novo olhar, que considera que o real é “tecido junto”, novos pressupostos para colocar o pensamento complexo em prática já estão sendo adotados. Daí surgiu, como uma das estratégias para abordarmos melhor os desafios contemporâneos, a aplicação dos chamados operadores cognitivos do pensamento complexo, também chamados de operadores de religação. São eles: circularidade, autoprodução/auto-organização, operador dialógico, operador hologramático, integração sujeito-objeto e ecologia da ação.
Para quem deseja aprofundar-se na gigantesca obra de Morin, que compreende mais de 100 livros (incluindo-se as muitas parcerias que fez com diversos autores), e nas suas formulações sobre a teia de relações que integram o mundo real, os seis volumes de O Método (A natureza da natureza, 1977; A vida da vida, 1980; O conhecimento do conhecimento, 1986; As ideias, 1991; A humanidade da humanidade, 2001; Ética, 2004), contendo mais de 2.500 páginas, sistematizam e explicitam uma epistemologia do pensamento complexo. Nessa obra, Morin oferece muitos elementos para quem deseja uma melhor compreensão das muitas nuances implicadas nas concepções sobre a vida, a condição humana, o nosso destino, e propõe uma ética de religação que nos permita uma melhor conexão com a complexidade do mundo real e com a construção de um futuro possível, de modo a evitar o abismo para o qual estamos caminhando.
Destaco também mais dois livros de Morin, um voltado para a educação e outro para a política, que me parecem centrais para o entendimento da necessidade de mudança para uma nova sociabilidade, fora da lógica de mercado, que os nossos tempos reclamam. O primeiro é o ensaio Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez – UNESCO/ONU Brasil, 2000), que convida o atual sistema educacional, aprisionado pela lógica do produtivismo do mercado, que opera a partir de fundamentos meramente utilitaristas e só reforça ainda mais a exacerbação do individualismo, a rever seus pressupostos e a buscar uma educação emancipadora de sujeitos, mais centrada no desenvolvimento da compreensão da condição humana e da necessidade de uma cidadania planetária, que nos permita lidar melhor com as múltiplas crises da atualidade. O segundo trata-se do livro Rumo ao Abismo? – Ensaio sobre o Destino da Humanidade (Bertrand Brasil, 2010), no qual denuncia o agravamento da gigantesca crise planetária e a incapacidade do pensamento político atual de propor uma nova política de civilização que evite o mergulho na barbárie. Para Morin, precisamos abandonar o sonho de dominação e “substituir a noção de desenvolvimento pela de uma política da humanidade e a de uma política de civilização”.
Compreender a condição humana
Um dos legados mais importantes da abrangente obra de Morin talvez esteja nas suas reflexões em torno da condição humana. No seu entendimento acerca dos caminhos a serem traçados para enfrentarmos os principais desafios contemporâneos está a ideia de que “o século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas”. Morin nos instiga, portanto, a abdicar dessa visão unilateral que define o ser humano exclusivamente pela racionalidade tecnoeconomicista. O homem é, a um só tempo, sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista), prosaicus e poeticus (prosaico e poético).
Somos, portanto, mais bem compreendidos pela ideia de um Homo complexus, que nas palavras de Morin significa que “o ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável”. Daí a necessidade de voltarmos mais nossas atenções para a condição humana e menos para o aperfeiçoamento das técnicas e dos instrumentos, pois a crise de civilização que enfrentamos, em grande medida, é fruto dessa incompreensão. Precisamos entender, como o próprio Morin alerta, que “quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros”.
Assim como prevaleceu ao longo de quase todo o percurso civilizatório, nossas inclinações para ilusões desnecessárias – talvez as mais nocivas sejam a ilusão de ordem, controle e dominação –, que ainda persistem com mais intensidade na contemporaneidade, estão a nos empurrar para o abismo. Nas duas últimas décadas, elas se expressam especialmente por meio da aposta que tem sido feita no avanço da tecnologia para resolver todos os problemas do mundo. Trata-se do chamado movimento transumanista que pressupõe que o ser humano caminha para um aperfeiçoamento que o alçará à condição de pós-sapiens, mediante os aparatos e as manipulações a cargo da inteligência artificial. Como alertou recentemente o próprio Morin (entrevista ao Le Monde, em 20/4/2020), ao refletir sobre a crise sanitária gerada pela pandemia da Covid-19, “a loucura eufórica do transumanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem não apenas sobre a natureza, mas também sobre o seu destino, ao prever que o homem terá acesso à imortalidade e controlará tudo pela inteligência artificial.”
Contrariando os supostos benefícios em prol de um progresso da humanidade, que poderiam advir a partir dos algoritmos, o que se conseguiu até agora com essa visão cibernética de mundo foi amplificar assustadoramente o ímpeto de controle, dominação e apropriação da verdade que caracteriza a cultura patriarcal milenar. De um lado, afloram novamente novas regressões sob variadas formas: ameças às democracias em muitos países, corrupção generalizada, desigualdades socioeconômicas brutais, regimes totalitários, arroubos nacionalistas, crime organizado, xenofobia, racismo e outras formas de desagregação do tecido social. De outro, assistimos inerte a um processo de degradação ambiental em escala planetária, que já nos colocou dentro da sexta extinção em massa e ameaça nossa sobrevivência como espécie.
No fundo, o que Morin nos mostra é que estamos no cerne de uma mudança de época histórica, na qual há uma profunda crise de percepção que fragmenta os modos de interpretação da realidade e que constitui a gênese da vulnerabilidade institucional que fragmenta os modos de intervenção nessa mesma realidade. Há, assim, com o atual modo de vida centrado no desenvolvimento tecnoeconômico, que alimenta a insanidade do crescimento do sistema de produção capitalista, um agravamento sem precedentes da crise planetária. Por isso, Morin propõe uma passagem do pensamento linear cartesiano (enfoque em fragmentação, controle e previsibilidade) – cujas concepções remontam à época de Aristóteles, Platão e Sócrates, na Grécia antiga –, bem como do pensamento sistêmico (enfoque em conjuntos, padrões e totalidades), desenvolvido ao longo do século XX, para o pensamento complexo, cujo enfoque está nas interações, incertezas e imprevisibilidades, que é bem mais abrangente para lidar com a complexidade da condição humana e da realidade que a cerca. Daí a necessidade de aplicarmos novos operadores cognitivos, conforme mencionado antes, para podermos colocar o pensamento complexo em prática e, desse modo, nos religarmos novamente à nossa condição natural.
A esperança na metamorfose
No entanto, esse pensamento complexo proposto por Morin ainda está muito longe de superar o pensamento linear e o pensamento sistêmico. Por isso, torna-se tão difícil abraçarmos novos modos de cognição que nos permitam lidar melhor com a complexidade do mundo natural ao qual estamos imbricados e com as múltiplas crises que se manifestam na contemporaneidade. Como diz Morin, “por todo lugar se aceleram e se amplificam a crise da democracia, a crise da biosfera, a crise do pensamento, o sonambulismo político, e também os delírios xenófobos, racistas e belicistas”. Razão pela qual ele alerta que “a desintegração é provável. O improvável, mas possível é a metamorfose”. A aposta na metamorfose, a que ele se refere, é o elemento catalisador da capacidade humana, diante da possibilidade da autodestruição, de mudar seu modo de ver e interagir com o mundo e, desse modo, ressignificar-se diante de uma crise tão profunda, pois, nas atuais condições do nosso planeta, sem uma mudança radical em nosso modo de estar no mundo não teremos futuro. “Quanto mais nos aproximamos da catástrofe”, diz Morin, “mais a metamorfose é possível. Então, a esperança pode vir do desespero”.
Todos os cenários, seja no âmbito político, ecológico, social ou econômico, apontam para o fim da longa história de prevalência da cultura patriarcal, que também se originou de uma metamorfose ocorrida no neolítico. Segundo a socióloga austríaca Riane Eisler, a partir de algum momento por volta da época da revolução agrícola, deu-se a grande bifurcação cultural do ocidente, na qual os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, a chamada cultura matrística que predominava até então, para a “sociedade de dominação”, que resultou na cultura patriarcal vigente até hoje (O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2008). Desde essa época aos dias atuais, a história da civilização tem sido uma história de guerras, massacres e destruições, em nome de um suposto progresso da humanidade.
As próximas décadas, portanto, contêm todos os elementos para serem marcadas por uma nova metamorfose, com todas as indesejáveis agruras que esse tipo de fenômeno comporta. Como lembra Morin, “a História humana nasceu de uma metamorfose não programada que teria parecido impossível a todo observador extraterrestre há dez mil anos”. É a partir dessa perspectiva que Morin parece encontrar, doravante, alguma possibilidade de regeneração, muito embora haja um forte e crescente sentimento coletivo de desesperança que não vê mais alternativas à civilização.
O fato é que temos uma realidade cada vez mais distópica no horizonte. Qual percurso, então, poderia nos desviar do colapso civilizatório? Com muito esforço de otimismo, se buscarmos algum aprendizado das muitas regressões do passado, um novo modo de viver certamente seria algo que aceitasse a nossa limitada e contraditória condição natural e tentasse superar o nosso aprisionamento à cultura patriarcal. Não resta à civilização outra saída que não seja abandonar a visão mercadológica de mundo e assumir uma visão relacional (complexa) de mundo, que considere o entrelaçamento de todas as dimensões da condição humana e do mundo natural, com o qual temos uma irremediável relação de interdependência.
Se tivéssemos hoje alguma instância de governança global com esse propósito, que alcançasse os consensos necessários entre os países mais desenvolvidos, que ditam os destinos da humanidade, uma política de civilização, tal como defendida Morin, provavelmente contemplaria pelo menos as seguintes abordagens de transformação: uma estratégia de redução da sobrecarga populacional sobre a Terra, para mitigar as mudanças climáticas já em curso; a articulação de uma democracia global, que tolere o pluralismo de modos de vida; o resgate do sentido de comunidade e de preservação dos bens comuns, que foram destruídos pelas relações narcisistas, excludentes e predatórias do mercado; e a formulação de uma nova economia relacional, que dê centralidade à vida ao cuidado da nossa Casa Comum e não à acumulação e ao consumo. A construção de um futuro reconhecível necessariamente passa por este caminho, mas ele está muito longe de ser uma realidade.
Ao que tudo indica, daqui em diante, o futuro da humanidade ficará, cada vez mais, sob os desígnios do acaso e da metamorfose. Há aproximadamente vinte anos, quando escrevia o último livro de sua principal obra, La Méthode 6 – Éthique (Editions du seuil, 2004), Morin vislumbrava dois desfechos para o atual impasse civilizatório imposto pelas múltiplas crises da contemporaneidade. Segundo ele, poderíamos sair da História “por cima”, pela regeneração do poder absoluto dos Estados, ou “sair por baixo”, pela regressão generalizada e pela “explosão de uma barbárie à Mad Max”. No entanto, Morin parece já ter descartado a primeira saída, conforme podemos observar das suas manifestações nos últimos anos, e indica ter se rendido aos muitos prognósticos que apontam cada vez mais para a barbárie. Nas palavras dele, “a barbárie está presente, hoje, ameaçando-nos novamente, esta velha barbárie de destruição e ódio, aliada a uma nova barbárie, nascida em nossa civilização, uma barbárie fria, gélida, a da técnica e dos cálculos que ignoram os sentimentos e a vida.”
O inestimável trabalho de Morin nos mostra que quaisquer tentativas humanas de moldar a realidade, seja pela visão mercadológica de mundo, seja pela visão cibernética de mundo, ou alguma outra, que estão disputando hegemonia nesta mudança de época histórica, estarão fadadas ao fracasso, o que pode acelerar ainda mais a interrupção prematura da experiência humana neste planeta já gravemente degradado. É bem melhor apostarmos nosso futuro na reforma do pensamento, como propõe Morin, na aceitação da pluralidade de modos de viver, na revisão de nossas crenças e valores patriarcais, numa visão de mundo que dialogue com a complexidade da natureza, que se afaste das ilusões de controle, hierarquia e apropriação da verdade, que aceite a aleatoriedade, a ambiguidade, as contradições, a multiplicidade, a imprevisibilidade e a incerteza que conduzem a nossa limitada condição natural.
Salve a vitalidade de Edgar Morin! Salve a sua centenária e vigorosa rebeldia! Uma rebeldia que nos instiga a aceitar e a abraçar a complexidade das dinâmicas que sustentam a vida, para nos livrarmos do engodo da insanidade capitalista que está destruindo a nossa humanidade e a nossa biosfera. Uma indispensável inspiração para superarmos os impasses civilizatórios deste século, enquanto ainda temos tempo.
Referências
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro. São Paulo: Palas Athena, 2007.
MARIOTTI, Humberto. Os operadores cognitivos do pensamento complexo. 2007.
MORIN, Edgar. Elogio da metamorfose. EcoDebate, 12 de janeiro de 2010.
MORIN, Edgar. Entrevista ao Le Monde, 20 de abril de 2020.
MORIN, Edgar. Dos Demônios: Atelier ao vivo do pensamento de Edgar Morin. Sesc São Paulo, 28 e 29 de agosto, 2000.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.
MORIN, Edgar. Meu Caminho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
MORIN, Edgar. O método 6: ética. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez/ UNESCO, 2000.
MORIN, Edgar. Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
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