quinta-feira, 10 de maio de 2018

Desmonte e repactuação do Brasil

10.05.2018

Joaquim Ernesto Palhares

Os ciclos históricos têm começo e fim. O ciclo iniciado nas grandes greves do ABC dos anos 1970 e 1980 condensou impulsos que nos fizeram chegar até aqui. Agora já não tem mais a força necessária para nos levar adiante até porque as condições objetivas mudaram nesses quase 40 anos.

A classe trabalhadora brasileira também sofreu transformações. Gerações mudaram. A precarização avançou. Empregos de baixa qualidade predominam em um cenário de industrialização declinante.



Precisamos de novos instrumentos com abrangência e capilaridade para enfrentar o mais virulento cerco contra conquistas democráticas históricas, incluindo-se os direitos políticos, sociais e trabalhistas desde o golpe de 1964.

Sacrificar 90% da sociedade para gerar riqueza em benefício de 1%: esse é o programa econômico do conservadorismo para a encruzilhada atual do desenvolvimento brasileiro.

Não há nada mais importante nesse momento do que organizar a capacitação política do campo progressista para enfrentar a severidade dessa ofensiva que interdita a inauguração de um novo ciclo de avanço social e ameaça mergulhar o país num formol de sacrifício inútil e seletivo.

A hesitação diante da tarefa incontornável pode nos impor uma derrota por décadas.

Em 12 anos de governos de centro-esquerda demos passos efetivos na construção da nova fronteira de soberania no século XXI: aquela calcada na justiça social e em alianças internacionais progressistas. Mas descuidamos do indispensável: a contrapartida da organização popular capaz de sustentar e adicionar avanços a esse percurso.

A fatura chegou.

Sem o protagonismo de uma frente democrática e popular, profundamente enraizada em comitês populares de luta, afundaremos no limbo de um ciclo em que os derrotados nas urnas de 2002, 2006, 2010 e 2014 comandarão a economia, o Judiciário, a mídia, o parlamento e o imaginário social.

A ênfase é rebaixar o custo do trabalho, interditar o pleno emprego para sempre, minar os sindicatos, acuar o poder de barganha do trabalho, impor, enfim, o custo da crise e da restauração neoliberal nos ombros das famílias assalariadas.

O Brasil gasta pouco mais de 1% do PIB com todas as universidades públicas federais e com o Bolsa Família. Mas ainda destina 5,7% do PIB aos rentistas da dívida pública interna.

Cortamos o PAC, entregamos o pré-sal, definhamos o Minha Casa, implodimos a reforma agrária, congelamos os recursos para a escola e a educação. Mas a economia só faz patinar. A inadimplência é recorde atingindo 5,6 milhões de empresas e 61 milhões de brasileiros.

O assalariado está acuado; as empresas não vendem nem contratam; o investimento público é insuficiente até para reparar a depreciação de estradas, pontes, hidrelétricas.

Em resumo, não apenas estagnamos, estamos sendo arrastados por uma correnteza regressiva de consequências já visíveis na miséria e nos índices de violência.

O golpe empurra a oitava maior economia do planeta para um processo de mexicanização trágico. 

Vive-se o ocaso de uma nação, sob o comando de uma aliança do que de pior já se produziu no país, entre a mídia, a escória política, o dinheiro e o Judiciário.

Reverter esse quadro não é obra que se possa atribuir a uma liderança ou a um partido; e nem só à atividade política convencional. 

O Brasil necessita urgentemente viabilizar um novo braço coletivo que fale ao povo em diferentes idiomas: do político ao cultural, passando pelas formas de viver e de produzir em sociedade no século XXI.

Que seja, esse braço coletivo, maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da direita, abrir espaço para a sociedade voltar a acreditar na sua capacidade e no poder da democracia para alargar as avenidas do futuro brasileiro. 

Listar plataformas e bandeiras é quase um truísmo, tão vertiginosa é a sua evidência na encruzilhada atual.

Afastar o país do desmonte neoliberal implica coibir a mobilidade dos capitais, taxar o lucro financeiro, os bancos, tributar a herança e a república dos acionistas e, assim, destinar fôlego fiscal à infraestrutura, à pesquisa, à competitividade, à saúde pública, à educação de qualidade, à moradia, à cultura.

Nada disso acontecerá sem romper um oligopólio de comunicação que envenena o discernimento social, sabota o pacto entre o desenvolvimento e a sociedade e interdita o debate democrático dos grandes desafios do nosso tempo.

O Brasil se inquieta, mas carece de uma direção clara e firme para sair do atoleiro e da prostração.

Em diferentes áreas, vicejam sementes da mobilização necessária para construir uma frente ampla democrática e progressista que abrace as tarefas de hoje e de amanhã.

Carta Maior, modestamente, quer contribuir com esse mutirão. 

No final da campanha de 2014, antevendo o esgotamento de um ciclo, ajudamos a criar o Fórum 21. Intelectuais, lideranças e quadros de todos matizes da esquerda têm se debruçado ali sobre os gargalos do desenvolvimento brasileiro.

Trata-se agora de sair da esfera dos colóquios dispersos e avulsos para o impulso de uma agenda unificada, prática e desassombrada.

Para isso, todavia, há um requisito: as lideranças políticas, na ausência de Lula, mas umbilicalmente sintonizadas a ele, falando pela voz dele, precisam ter a coragem histórica de criar a agenda e a frente ampla que a história cobra nesse momento.

É necessário instituir um comitê provisório de organizações e personalidades para oferecer uma referência clara de direção à sociedade. E que seja reconhecida como a voz coletiva de Lula, falando do Brasil para o Brasil e pelo Brasil.

Mirem-se na Espanha. E, sobretudo, na plataforma que empolgou Barcelona a conclamar seus cidadãos a construir uma cidade que afronte a precariedade, a incerteza, a mediocridade da vida miserável que nos reserva a lógica neoliberal.

É crucial dispor de um instrumento de comunicação para isso.

Sobretudo, porém, para que essa ferramenta deixe de ser uma miragem, para se tornar uma referência aglutinadora da ação, é preciso ter o discernimento claro sobre a engrenagem a afrontar.

O Especial 200 Anos de Karl Marx é uma contribuição neste sentido. O que ele enfatiza, com textos marxistas calcados na discussão concreta dos impasses do presente, é que a superprodução de capitais é a contraface indissociável da escassez de demanda, agravada pela precarização do trabalho em nossa época. 

Dessa servidão rentista, a sociedade não se livrará pela lógica de mercado. É forçoso organizar a resposta política a ela. 

Mas também de modo de vida. 

Não se pode recusar a servidão capitalista dos mercados, sem arguir igualmente seu padrão de consumo, por exemplo. Ou sua transformação da natureza em mercadoria. Ou da arte em analgésico.

Nenhum ajuste de mercado fará isso por nós – é esse o círculo de ferro que os textos aqui reunidos ensejam a romper. Foi com esse objetivo que corremos o risco de publicá-los em desafio à norma da simplificação e da frivolidade dominante.

O que o país precisa é que as forças progressistas assumam a contrapartida organizativa desse desassombro. Ou então o Brasil afundará refém da espiral descendente comandada pelos Temer, Moros, Frias, Marinhos, Bolsonaros e assemelhados.

Os textos desse especial –repita-se – não são afeitos à leitura apressada. Porém são dotados da urgência política que pavimenta a compreensão dos afazeres do nosso tempo.

Desejamos que nossos leitores e as lideranças políticas progressistas dediquem uma fatia de atenção a essa leitura. E extraiam daí as consequências históricas para o Brasil que poderíamos ser, mas do qual estamos sendo coagidos a desistir.

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