sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Salinger, Cortázar, Borges: a história da mítica lista de livros de Cristovão Tezza

Sandro Moser

Durante os anos em que foi professor de língua portuguesa na Universidade Federal do Paraná, entre 1986 e 2009, o escritor Cristovão Tezza abriu os períodos letivos apresentando aos alunos uma lista de livros.


No catálogo, cerca de cem títulos em que o professor fazia “um apanhado mais ou menos arbitrário da prosa do século 20, no Brasil e no mundo”. Um recorte, a um só tempo, tentador e impenetrável aos olhos dos jovens alunos.

Partia do obrigatório clássico adolescente “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger, até a “A Chave”, prosa erótica do japonês Junichiro Tanizaki. Do “anti-romancista” austríaco Robert Musil aos ícones latinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar.

As listas despertavam sede literária semelhante àquela que o personagem do professor Keating, vivido por Robin Williams no filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989), despertava em seus alunos.

No caso, uma sociedade de prosadores vivos e mortos que marcaram a literatura no século 20. E com consequências nem tão trágicas.

“Quando a lista chegava à tua mão, era um grande mistério. Ali encontrei autores que me despertaram para a literatura. Com o passar do tempo, me vi vencendo a lista e melhorando a minha formação de um jeito que só a leitura permite”, relembra o escritor e tradutor Christian Schwartz, ex-aluno de Tezza e um dos muitos que guardam o índice como souvenir literário e afetivo dos tempos universitários.

A ex-aluna Manuela Salazar, mestranda em comunicação na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), conta que no primeiro dia de aula surgiu o mesmo espanto que se tem diante de uma grande biblioteca: “Numa vida, nunca vai dar tempo de ler tudo isso!” Mas as indicações do mentor abriram para ela um mundo “difícil de acessar como leitor autodidata”.

Tezza conta que sua ideia era dar “algumas boas referências culturais” aos alunos, misturando obras clássicas a recém-lançadas. “Todo ano eu readaptava a lista, mas mantendo o mesmo espírito – obras que permitissem uma boa discussão temática”.

Como a disciplina era anual e tinha um programa aberto, da linguística à interpretação de textos, o autor de “Um Erro Emocional” criou as listas para trabalhar a literatura “de uma forma livre e mais lúdica”. A mesma com que seus professores no Colégio Estadual do Paraná tinham mexido com sua cabeça em sua adolescência curitibana.

Seminários extremos

A experiência foi aprimorando a ideia. Tezza decidiu que todo aluno precisava ler de três a cinco livros. Destes, o aluno escolheria um para apresentar diante da turma. As últimas três semanas do ano eram reservadas às “performances” de interpretação dos livros escolhidos.

Cada apresentação era acompanhada de um texto distribuído aos colegas. Logo, os ‘seminários de literatura’ se tornaram um sucesso nas turmas. E com o passar do tempo, as interpretações começaram a ficar extremas, para o bem e para o mal.

“Houve um ano em que o aluno que havia escolhido ‘O mez da grippe’, do Valêncio Xavier, levou o próprio Valêncio para conversar sobre o livro. Outros faziam pequenos quadros de teatro, ou filmes em VHS, porque a praga dos celulares ainda não havia entrado em cena”, diz Tezza.

Algumas representações, no entanto, exageraram a dose e, por seus exageros, ganharam status de “lenda urbana”.

Numa delas, os alunos que discorriam sobre o romance “Desonra”, do prêmio Nobel sul-africano J.M. Coetzee, escolheram reencenar um episódio de estupro, fundamental no enredo do livro, mas que constrangeu parte dos alunos e o professor boa-praça.

Noutra “peça”, ao apresentar o livro “Pico na Veia”, de Dalton Trevisan, um aluno teria espetado uma seringa no antebraço, retirado alguns mililitros do próprio sangue e ingerido o líquido, para horror dos colegas.

Tezza, porém, afirma que não foi isso que apressou sua retirada das salas de aula. Além da dedicação integral à carreira de escritor , motivada pelo sucesso de “O Filho Eterno” (Record, 2008), a mudança da grade dos cursos para o período semestral foi o estímulo final.

“Eu teria de criar uma disciplina específica, mas já estava com planos de sair da universidade – e o meu projeto acadêmico, 20 anos depois, já estava esgotado. Foi bom enquanto durou”.

A biblioteca básica do professor Tezza
O escritor Cristóvão Tezza faz uma “lista sentimental” com onze títulos tirados de suas famosas listas de livros indicados aos alunos da UFPR entre os anos 1980 e 2000

O Estrangeiro - Albert Camus (1913-1960)
“Um clássico absoluto do século 20. O narrador, indiferente a tudo e a todos, é julgado por matar um árabe ’por causa do sol’. A mais representativa obra literária do existencialismo francês”

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley (1894 1963)
“Uma distopia que, escrita em 1932, foi uma antecipação impressionante da vida contemporânea, não por acertos tecnológicos, mas por aspectos culturais do mundo de hoje. Sempre recomendava esta leitura com duas outras: “1984”, de George Orwell, e o excepcional “Nós”, de Eugene Zamiatin, dos anos 1920, que inspirou tanto Huxley como Orwell”.

O Deserto dos Tártaros - Dino Buzzati (1906-1972)
“Nesta obra-prima, todos esperam um grande acontecimento, a invasão dos bárbaros, para a qual é preciso estar preparado. Enquanto isso, a vida se esvai”.

Reparação - Ian McEwan (1948-)
“Um livro maravilhoso sobre um tema que lembra “Lord Jim” - alguém, quando jovem, faz uma acusação falsa que destrói a vida da vítima. Mas o fantasma vai voltar. Ao mesmo tempo, é um livro tecnicamente impecável”.

Furo! - Evelyn Waugh (1903-1966)
“Um dos melhores e mais divertidos livros sobre as agruras do jornalismo. Leitura ideal para os alunos de Comunicação”.

Retrato do Artista Quando Jovem - James Joyce (1882-1941)
“Para se aventurar em James Joyce, “Um retrato do artista quando jovem” é um bom começo. E acaba de sair uma nova tradução, por Caetano Galindo - o que é uma garantia dupla de qualidade”.

Desonra - J. M. Coetzee (1940-)
“Considero Coetzee o maior romancista contemporâneo - e “Desonra” é um livro magnífico”.

Lord Jim - Joseph Conrad (1857-1924)
“Este foi o romance que, de certa forma, me ensinou o que é possível pensar, discutir e refletir através do romance. Um oficial da marinha inglesa, depois de ser expulso com desonra da instituição, terá uma nova oportunidade de se testar moralmente”.

A Chave - Junichiro Tanizaki (1886 - 1965)
“Uma obra-prima de erotismo e sutileza. Tanizaki foi uma das pontes da vastíssima tradição da narrativa japonesa com as técnicas modernas da prosa ocidental”.

O Homem Sem Qualidades - Robert Musil (1880-1942)
“Uma obra monumental que antecipa a crise cultural contemporânea, publicado em 1940, em plena guerra. Para ler devagar”.

O Senhor das Moscas - William Golding (1911-1993)
“Um dos meus romances prediletos. Depois de lê-lo, começamos a ter medo de crianças e de sua suposta bondade natural. William Golding põe à prova a tese de Rousseau - o homem é bom por natureza e a sociedade é que o corrompe -, imaginando um grupo de crianças perdidas numa ilha deserta”.

Transcrito de Gazeta do Povo - 23/07/2016

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