sexta-feira, 8 de abril de 2016

Dos métodos às poéticas

a relação entre saberes ‘duros’ e ‘moles’

Prefiro as máquinas que servem para não
funcionar: quando cheias de areia, de formiga
e de musgo – elas podem um dia milagrar de flores
Manoel de Barros
Antonio Carlos Ribeiro*

O debate sobre o tema da relação entre a interdisciplinaridade e as epistemologias contemporâneas dava sinais de se tornar um tema estéril, pontuado de ressentimentos acadêmicos, e pior, sem possibilidades visíveis de dar um ‘up’ para gente diferente - na idade, nas áreas de saber e nos níveis diferentes de formação - de um auditório heterogêneo. 

Esse risco foi frustrado pela clareza, formação científica heterodoxa e experiência acadêmica ‘inter ‘ e ‘transdisciplinar’ da conferencista Ludmila Brandão, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), por expressar-se de forma densa e suave, poética e metódica, sem resvalar para o clássico e nem para o senso comum.



Ela começou admitindo a tensão entre os pesquisadores de humanidades e os do black side of Force (lado obscuro da Força), que incluem o conjunto de saberes das ciências exatas, biológicas e aplicadas, ao lado das pedagógicas, entre outras. Admitiu que o conflito esteja baseado nas diferenças de métodos, nas práticas tradicionalistas e nas demandas em termos do desempenho esperado dos alunos.

Observou ainda que o primeiro a buscar respostas para estes ‘senões’ da academia foi o epistemólogo francês Jean François Lyotard, discutindo as mutações nos jogos das ciências, que o levou a constatar o descrédito dos meta-relatos, cuja consequência é a legitimação pela ‘performance’, ao que parece, produtora de credibilidade para a ciência, na qual quase não se podia mais crer.

Para uma humanidade que se cansou da ‘explicação’, especialmente com a universalidade do conhecimento, que catapultou segredos, cabalas, pergaminhos e outros tabus vendidos em becos medievais sob as luzes dos grandes centros urbanos. O que provocou isso?, indaga a pesquisadora, explicando que a sociedade demanda a ‘eficiência’ para ter condições de mudar as regras enquanto a ‘bola ainda está rolando’, não porque ela produza o avanço, mas porque ela surge de outro tipo de trabalho, das respostas do contra-exemplo, da ação ininteligível. Exatamente nos espaços em que os procedimentos não se submetem às regras formais. 

Isso nos ajuda a perceber porque a eficiência é o oposto da produtividade, que repousa num sistema de perfil positivista, funcionando mais como a garantia da manutenção do que na geração de respostas satisfatórias para demandas antigas. A ordem sem superação, expressa no saber consolidado e na estrutura de poder que o sustenta, não consegue implementar o progresso que promete, como diz o lema de nossa bandeira. O progresso supõe a superação da ordem.

Essa imobilidade filosófica inicial é a mesma que molda os ‘edifícios’ dos saberes científicos – que Popper afirmou estarem construídos sobre um pântano - das construções intelectuais e das ousadias inesperadas. ‘Que ciência pode se renovar senão à custa da ruptura com seus próprios paradigmas – teóricos ou metodológicos – para avançar, ainda que de modo titubeante, ou mesmo às cegas, sobre terreno desconhecido?’, indagou a docente. Há que aprender a lidar com os ‘monstros’. E já que são inevitáveis, que sejam desejados, afirmou. Mesmo que as dificuldades sejam de grau (‘mais ou menos’ rigorosa, objetiva e eficiente), e de natureza (modos distintos de pensar, pesquisar, produzir e difundir conhecimentos).

E se as divergências se impõem, precisamos conhecê-las antes de tentar unificá-las pelo modelo positivista em que aprendemos a nos mover ad aeternum. Precisamos admitir que não há teoria que unifique sequer as humanidades, nem mesmo o sedutor uso da língua comum. E exemplificou com o texto que começou como um artigo e ao terminar já era um ensaio. Se debatemos a diferença entre ‘humanidades’ e ‘ciências duras’, a situação se agrava, já que são de naturezas distintas.

Se um parâmetro é o texto, propõe a conferencista, vejamos como pode servir a objetivos vários. O texto comunicativo-informativo é diferente do texto que é escritura como laboratório de pensamento, ou que aponte a diversos objetivos, dos quais pode ser suporte. O texto não se reduz a comunicar a pesquisa por ser ‘a pesquisa’, mas serve também como potencial que desperta. Se escreve ‘para saber e para pensar’ e não ‘pensar para saber’, seguindo um modelo, explicou a pesquisadora. Em muitas circunstâncias, só após o início do ato de escrever é que as ideias virão. É assim que a dinâmica cerebral dá encaminhamento ao texto, e ajuda a explorar a potência e as possibilidades das ideias.

Além disso, há o jogo das trocas, dos saberes limítrofes, das certezas que só se potencializam nas incertezas. Ela lembrou o químico russo naturalizado belga, Ilya Prigogine, que desconstruía as certezas destemidamente, com algo semelhante à convicção herdada da religiosidade da Igreja Ortodoxa. Essa ousadia o fez avançar pelos estudos em termodinâmica de processos irreversíveis, a partir dos quais formulou a teoria das estruturas dissipativas, que levou a Real Academia de Ciências da Suécia a contemplá-lo com o prêmio Nobel de Química (1977).

‘A virada interdisciplinar se dá quando nos damos conta que não sabemos o que o colega ao lado está pesquisando’, denunciou. Não percebemos o valor das trocas significativas, do enriquecimento mútuo, das conquistas científicas coletivas. ‘Alguns objetos só podem ser pensados em perspectiva inter ou transdisciplinar’ e isso se deve ao fato de que quase todos os objetos são híbridos de natureza. Em seguida, afirmou categoricamente – em particular a docentes e discentes dos estudos de cultura e territorialidades – que ‘estudos de cultura devem considerar o que os outros publicam’.


Destacou os debates que geraram as mudanças nas perspectivas inter e multidisciplinar, gerando a radical alteração do conceito e propondo ‘diálogos mais amplos, entre e além das disciplinas’ (2009). Isso leva pesquisadores de diversas áreas a carregarem o discurso, defenderem seu dispositivo e estarem no jogo para transformá-lo. Sem perder de vista princípios como a impossibilidade de repetição dos percursos, a não-linearidade, o significado do tempo ocioso, o papel do acaso e da intuição, e as sucessivas modificações e reconfigurações do objeto, dos objetivos e do sujeito. No caso, ele mesmo, o próprio pesquisador. Sem esquecer o empenho. Não diante do método, mas nas práticas de conhecimento, ficando atento aos processos de criação artística e às poéticas da investigação.

*Pós-doutorando em Letras na Universidade Federal do Tocantins, onde atua como professor das disciplinas Metodologia da Pesquisa em Estudos Interdisciplinares no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), Metodologia do Ensino Superior no Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal Tropical (PPGCAT) e como professor convidado no Colegiado de Geografia, no campus de Araguaína.

Nenhum comentário: