segunda-feira, 30 de agosto de 2021

No sufoco das crises, o poeta e o historiador nos ajudam 'abrindo a janela para o pensamento'

Foto: Pixabay

João Vitor Santos | 30 Agosto 2021

No início da tarde do último 24 de agosto, o calor fora de época no Rio Grande do Sul levava a um céu fechado, prenúncio de muita chuva. O clima parecia combinar com a crença popular do mês de agosto, o ‘mês do desgosto’ ou do ‘cachorro louco’, ainda reforçado pela História da política de um país que teve nessa época o suicídio de um presidente e, anos mais tarde, a renúncia de outro. Mas se agosto é mesmo ‘pesadão’, ele também tem histórias que podem nos inspirar, como a própria luta pela democracia no movimento pela Legalidade. “Agosto nos fornece essas duas faces. Recordar agosto tem esses dois lados, pois nos mostra o que é inédito e nos oferece oportunidade de chamar de volta ao coração o modo como as democracias renascem”, observa a historiadora Heloisa Starling, numa longa conversa com o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, via Zoom.

Com fala muitíssimo acolhedora, estilo bem mineiro, aquela que te faz pensar em parar o tempo e sentir o cheiro e o sabor de um bom café passado enquanto se proseia, Heloisa diz que vivemos um momento único na História do Brasil. “Se pensarmos no momento da renúncia de Jânio [Quadros] e da reação, que foi a Campanha da Legalidade, veremos que há uma crise política de grandes proporções. Mas, naquele momento, mesmo pensando o governo de Jânio Quadros, que talvez fosse o governo mais próximo do de hoje, observamos que o governo de Jânio tinha um projeto de Brasil”. Ou seja, diferente de hoje, em que, além de estarmos mergulhados em crises, há um verdadeiro projeto de destruição da nação.

Heloisa é acolhedora, mas também dura, pois acredita que precisamos compreender este momento, sem atravessamentos curtos com o passado. “O passado pode nos fornecer repertório para que pensemos as perguntas que precisamos fazer hoje. Então, se voltarmos hoje ao passado, também encontraremos a Campanha da Legalidade. É um momento em que a sociedade brasileira decidiu qual era o país que ela queria”, reflete. E completa: “voltar à Campanha da Legalidade pode nos fornecer elementos para que pensemos. Já sabemos, no século XXI, como as democracias morrem, mas agora precisamos ver como recriamos a democracia. Como ela renasce? A Campanha da Legalidade tem repertório para isso”, pontua.

E a historiadora não fica só na Legalidade para pensarmos o presente, percorre as lonjuras do interior do Brasil e reflete sobre a importância da memória e da História nesse processo. Aliás, da História e da poesia, pois acredita que são elas que trocam os ares de mentes sem oxigênio e dadas a disputas individualistas e irracionais. “Então, a imprensa, a universidade, a cultura, nós temos que abrir a janela para o vento do pensamento. Temos que chamar as pessoas a pensarem. Isso é produzir informação, conhecimento, chamar à História”, reforça.

Do contrário, talvez fiquemos chafurdando nas próprias mágoas, no que ela chama de uma espécie de ficção civilizacional em que se reage aos poucos a verdadeiros avanços que temos conseguido no Brasil nos últimos 30 anos. Afinal, não é à toa que hoje se combate a cultura, se busca apagar a própria História e transformar o 7 de setembro numa data vazia. “Precisa alguém dizer, ‘olha gente, o 7 de setembro não pode ser apropriado à direita ou à esquerda’. O 7 de setembro é, inclusive, uma data que precisamos avaliar e discutir historicamente. Eles estão destruindo a independência. O 7 de setembro não! O que está em jogo é o sentido histórico da independência”, dispara.


Heloisa Maria Murgel Starling (Foto: Fernando Rabelo)

Heloisa Maria Murgel Starling é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pesquisadora, considerada autoridade nacional em estudos sobre a ditadura e as repúblicas brasileiras, foi ganhadora do 61º Prêmio Jabuti, na categoria Livro do Ano, com Brasil: uma biografia (São Paulo: Companhia das Letras, 2015). A obra é escrita em parceria com a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz. Recentemente, noutra parceria com Lilia, publicou A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2020). Também publicou Ser republicano no Brasil colônia: A história de uma tradição esquecida (São Paulo: Companhia das Letras, 2018).

Confira a entrevista.


IHU – Agosto é um mês de muita ebulição na História do Brasil, vide o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, e todo o movimento da Legalidade que veio na sequência para assegurar a posse de João Goulart. Como a senhora tem vivido este mês de agosto de 2021?

Heloisa Starling – Olha, esse de 2021 reafirma a ‘maldição do mês de agosto’ (risos). Aqui no interior de Minas se diz que ‘agosto é o mês do cachorro louco’, porque é um mês em que, antigamente, a doença da Raiva atacava os cães. Por isso acho que veio esse ditado que acabou reunido com a política.

Penso que temos algumas coisas inéditas nos dias de hoje. Estamos vivendo uma confluência de crises que não se reproduz de modo igual em nenhum momento da História. Se pensarmos no momento da renúncia de Jânio [Quadros] e da reação, que foi a Campanha da Legalidade, veremos que há uma crise política de grandes proporções. Mas, naquele momento, mesmo pensando o governo de Jânio Quadros, que talvez fosse o governo mais próximo, se olharmos, na superficialidade, o governo de hoje, observamos que o governo de Jânio tinha um projeto de Brasil.

A política externa é uma política que funciona; o Brasil refez suas relações inclusive com o que na época se chamava de terceiro mundo, refez suas relações  com os países do Bloco (na época do Bloco Socialista). Havia uma política econômica, da qual posso discordar ou concordar, de combate à inflação, pois o governo de Juscelino [Kubitschek], até mesmo pela construção de Brasília, legou uma inflação alta. Ou seja, havia um projeto de Brasil ali – concordando ou discordando dele. Hoje, não. Pela primeira vez na História, o Brasil não tem um projeto de futuro. Essa talvez seja a primeira grande novidade.


 Pela primeira vez na História, o Brasil não tem um projeto de futuro. Essa talvez seja a primeira grande novidade – Heloisa Starling


Confluência de crises e proposta de destruição

A segunda coisa inédita é uma confluência de crises. Há a crise na saúde, que é a epidemia, há uma crise econômica grave e uma completa crise política. Essa confluência de crises nunca havia ocorrido. A terceira coisa inédita é que, além do fato de não termos um projeto de futuro, temos um governo cujo propósito é destruir o que foi construído até hoje no período democrático. Se voltarmos no tempo, num discurso que [Jair] Bolsonaro fez, em março de 2019 em Washington, num jantar na embaixada, observaremos que ele disse algo mais ou menos assim: “o objetivo de nosso governo não é construir nada, é desconstruir”. E isso está sendo levado a cabo de diferentes formas.


Degradação da sociedade

Além disso, há um processo de degradação de uma fatia muito larga da sociedade brasileira. Não só no sentido de apoiar esse processo de destruição, ou desconstrução, como diria Bolsonaro, mas também no sentido de ser indiferentes às mortes que estão ocorrendo no Brasil. Pense bem, estamos chegando à marca de 600 mil mortos. Não tem similar na História e uma fatia da sociedade brasileira é absolutamente indiferente a isso. E, mais do que indiferente, lida com isso de uma forma degradante. 


É como se uma parcela da sociedade brasileira tivesse abdicado do fato de que vivemos numa comunidade e que a vida de cada brasileiro deve ter o mesmo valor. É como se fosse um aglomerado de pessoas muito egoístas, muito vorazes e muito ressentidas – Heloisa Starling

 

Experiência da Legalidade

O mês de agosto coloca em cena um conjunto de referências sobre as quais precisamos pensar e que temos de enfrentar. E aí, talvez, a situação é que estamos dentro de uma crise em que não existe referência, estamos diante de questões que são inéditas. Uma solução, vai dizer Hannah Arendt, é voltarmos ao passado não porque o passado vai se repetir. Não vai, a História é ingovernável. Mas o passado pode nos fornecer repertório para que pensemos as perguntas que precisamos fazer hoje. Então, se voltarmos hoje ao passado, também encontraremos a Campanha da Legalidade. É um momento em que a sociedade brasileira decidiu qual era o país que ela queria. E o país que ela queria estava fundado na Constituição e na Legalidade, fundado na democracia. Assim, voltar à Campanha da Legalidade pode nos fornecer elementos para que pensemos.

Já sabemos, no século XXI, como as democracias morrem, mas agora precisamos ver como recriamos a democracia. Como ela renasce? A Campanha da Legalidade tem repertório para isso. Recordarmos o que começa no Rio Grande do Sul e se espalha pelo Brasil na Campanha é muito importante, porque recordar é chamar de volta ao coração. Quem sabe esse olhar ao passado chama de volta a democracia ao coração e, a partir dele, se decide que os brasileiros merecem ter um futuro. Fico pensando muito que o mês de agosto tem esses dois lados para nós hoje.


Voltar à Campanha da Legalidade pode nos fornecer elementos para que pensemos. Já sabemos, no século XXI, como as democracias morrem, mas agora precisamos ver como recriamos a democracia. Como ela renasce? A Campanha da Legalidade tem repertório para isso – Heloisa Starling

 

IHU – Afinal, se dizemos que ‘agosto é o mês do cachorro louco’, podemos crer que setembro é o mês do florescer. Não é?

Heloisa Starling – Pois, é. Então, que venha a primavera. (risos) Agosto nos fornece essas duas faces. Recordar agosto tem esses dois lados, pois nos mostra o que é inédito e nos oferece oportunidade de chamar de volta ao coração o modo como as democracias renascem. Vamos parar, pois sabemos como elas morrem. Agora, precisamos nos preocupar em como vamos recriar isso neste país para decidirmos que brasileiros queremos ser.


IHU – Nessa experiência da Legalidade temos toda essa memória da resistência e a figura de Brizola como alguém que irrompe com a situação. No cenário do Brasil de hoje, temos algo ou alguém capaz de organizar um novo irrompimento para pensar em reconstruir a democracia?

Heloisa Starling – Talvez possamos dizer que, guardadas as devidas proporções, falta-nos Brizola. Faltam lideranças políticas que sejam capazes de puxar o freio de mão e dizer ‘vamos pensar que brasileiros nós queremos ser’, e isso tem um significado. Faltam lideranças que sejam capazes, inclusive, de tocar o coração da sociedade. Talvez seja isso que Brizola, independentemente de qualquer coisa, tenha feito naquele momento. Como depois, na época da redemocratização, Tancredo [Neves] vai fazer, Ulysses Guimarães vai fazer na Constituinte.

Ou seja, podemos pensar no campo à esquerda, no campo conservador de centro, o próprio Tancredo dizia ‘para a esquerda cês não me empurram porque não vou’. Mas ele foi capaz de chamar a sociedade. Ulysses fez isso com muita competência. Observe que o grande protagonista que tem feito isso com grande competência hoje é o Supremo [Tribunal Federal - STF]. As posturas em defesa da democracia que estão sendo assumidas a um custo altíssimo pelo Supremo são muito importantes, mas nenhuma instituição democrática sustenta a democracia sozinha. Ou a sociedade se mobiliza, se organiza para dizer que a democracia é um valor em si mesmo e não se vai abrir mão disso e, portanto, queremos botar limite no quem tem havido, ou os riscos são muito grandes.

 

Ou a sociedade se mobiliza, se organiza para dizer que a democracia é um valor em si mesmo e não se vai abrir mão disso e, portanto, queremos botar limite no quem tem havido, ou os riscos são muito grandes – Heloisa Starling


As histórias da Legalidade

Se pensarmos na Campanha da Legalidade, veremos que há coisas incríveis. Veja que contra a Legalidade estava o governo do Rio de Janeiro, em que Carlos Lacerda é o grande líder conservador, e, mais do isso, reacionário, do país. Quando Lacerda vê que a Campanha da Legalidade se alastraria pelo país como faísca no capim seco, corta as comunicações do Rio de Janeiro para que a voz da defesa da Legalidade não chegasse até a população do Rio. Aí temos três jornalistas, que eram também três escritores, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Josué Guimarães, que vão falar assim: ‘ah, é Lacerda?! Então tá’. E pegam uma caminhonete, chamam um radioamador, fazem uma ligação clandestina para poder entrar a Voz da Legalidade, botam um alto-falante e saem andando com o carro pelas ruas do Rio de Janeiro. Esse carro ia passando e irradiando a Campanha da Legalidade.

Essas ações são coisas que também precisamos pensar, porque não dependem de ninguém, foi uma iniciativa de três pessoas. Lacerda ficou louco porque tinha que sair atrás do caminhãozinho dos três jornalistas que ia para o subúrbio, para o centro do Rio e começava a juntar gente para ouvir a Voz da Legalidade.

 É uma história da qual as pessoas não se lembram, mas que é muito bonita. Veja como esses três jornalistas driblaram Carlos Lacerda, três caras driblaram o governador e irradiaram a Voz da Legalidade para mobilizar e tocar o coração das pessoas, chamar essas pessoas a defender a liberdade. Isso tudo está lá em agosto e é preciso lembrar essas histórias, porque quando a gente as conhece, talvez ajude a ver os limites de hoje e como vamos enfrentar esses limites.


IHU – Por isso também podemos compreender por que vivemos um momento de apagamento da memória e de algumas dessas histórias?

Heloisa Starling – É por isso que o historiador é tão perigoso. Não vamos contar isso para ninguém (risos), mas o historiador é muito perigoso porque ele é capaz de te contar que isto é possível porque um dia foi possível. Por isso, também, que se tenta apagar a memória. De novo, Hannah Arendt vai dizer, acho que lá no finalzinho do livro Da Revolução [publicado no Brasil com o título] Sobre a revolução (São Paulo: Companhia das Letras, 2011)], que, se tudo der errado e as formas totalitárias se implantarem, nós ainda temos duas esperanças: uma é o historiador, ela diz, pois ele vai justamente dizer que é possível porque um dia foi possível. Mas isso a gente não conta para ninguém também (risos).

Então, é possível lutar pela liberdade porque nós tivemos a Campanha da Legalidade. É possível enfrentar o pensamento reacionário porque esses três jornalistas enfrentaram e puseram a Voz da Legalidade para funcionar no Rio.

E a outra esperança que nós temos é o poeta, porque o jornalista diz o que foi e o poeta aciona nossa imaginação. O poeta diz ‘é possível e vou acionar sua imaginação para que você pense como isso será possível’. Assim, o poeta nos leva a pensar os futuros possíveis e o historiador nos leva ao chão concreto de que isso já aconteceu e, portanto, nós podemos fazer. É por isso que o historiador é perigosíssimo e é por isso que nesse processo de desconstrução que está aí há ataque à memória, à História. Tem-se que destruir a História e apagá-la. E isso está sendo feito de diferentes maneiras.


Se colocamos à frente de uma instituição um personagem que não tem nada a ver com ela, ela se paralisa. Não precisa de muita estratégia, basta paralisar a instituição, fazer ela se voltar contra seu princípio, cortar a verba – Heloisa Starling


IHU – Gostaria que detalhasse mais em que consiste essa desconstrução e, afinal, voltando ao discurso do presidente, o que quer desconstruir?

Heloisa Starling – Do que consigo ver, é a desconstrução de tudo aquilo que se garantiu, ao longo de 30 anos, a experiência mais democrática da História do Brasil. É uma desconstrução que visa, de um lado, atacar os andaimes e fundações da democracia nas suas instituições. E por isso se age de forma a indicar, nas agências do Estado ou nas instituições, figuras que estão compromissadas com esse processo. E nem precisa de muita coisa, pois se colocamos à frente de uma instituição um personagem que não tem nada a ver com ela, ela se paralisa. Não precisa de muita estratégia, basta paralisar a instituição, fazer ela se voltar contra seu princípio, cortar a verba. Pensemos a questão da cultura hoje no Brasil. Para ver como se asfixia, pense as universidades, o MEC [Ministério da Educação e Cultura] e o que está acontecendo por lá.

Para essa destruição, também se opera numa outra linha que tem a ver com a maneira como se degrada a ideia da comunidade política. Esse incentivo, esse discurso, essa linguagem voltada para que as pessoas ajam dessa forma voraz, destampando esse fundo recessivo da sociedade brasileira, tudo isso destrói a ideia de que temos um destino comum e, portanto, se destrói o espaço de compartilhamento da sociedade e aí é cada um por si, eu e minha carteira. Esse é um processo menos visível, talvez, mas muito forte.

E também se degrada a nossa condição de construção política do espaço democrático, inclusive, através da linguagem. Observe aquela reunião que aconteceu em 22 de abril, no Palácio [do Planalto], entre os ministros e o presidente.

Demos muita atenção, e deveríamos ter dado mesmo, ao que estava sendo dito naquela reunião. Mas uma coisa com que devemos nos preocupar é a forma como estava sendo dita, porque aquele tipo de linguagem, aquela concordância capenga, aqueles palavrões, aquela vulgarização revelam que algo está sendo degradado ali, na maneira como digo e me comporto. E ali é o coração da República, então o que está sendo degradado é o coração da República – evidentemente, além da República, o letramento.

Pensar na linguagem que está sendo utilizada é importante porque ela degrada as nossas representações, inclusive, simbólicas e imaginárias daquele lugar. Tem uma tradutora francesa, Bérengère Viennot, que me chamou a atenção para isso quando ela traduziu o discurso do [Donald] Trump. Ela surtou e falou ‘gente, não é possível isso que estou tendo que traduzir’, e escreveu um livro chamado A Linguagem de Trump [Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2021]. Foi aí que me dei conta e vi que ela tem razão, que usar a linguagem de uma determinada maneira mostra o processo de degradação do que está acontecendo, como isso que vimos nessa reunião. Tão importante quanto o que estava sendo dito era a forma como estava sendo dito. Essa forma tem a ver com a linguagem e com a desqualificação do adversário. É como se pensasse, ‘eu não sou seu adversário, sou seu inimigo e vou desqualificar você’.

Tem um professor interessante em Goiás, Rodrigo Cássio Oliveira [doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás], que está fazendo um trabalho sobre a estética, e ele olha como o tipo de estética que este governo utiliza tem a ver com esse processo de destruição, porque é uma estética que destrói as nossas representações daquele lugar.

É um conjunto, é uma política ampla, não é possível ver essa política de um só lado. E isso é novo, não se tem isso na História do Brasil. Como disse, mesmo que em Jânio houvesse aqueles seus apelos populistas de colocar talco no paletó para fingir que era caspa, de comer um sanduíche no meio do comício para dizer que é um homem comum, não há nenhuma degradação através da linguagem ou das formas de comportamento. E, muito menos, de um projeto de país. Por isso parece tão atraente, à primeira vista, pensarmos na relação do Jânio com o Bolsonaro. Mas essa relação não há, porque tem uma diferença substantiva aí. Estamos diante de algo que é realmente novo e é importante enfrentarmos isso e pedir aos historiadores que nos ajudem.


Mesmo que em Jânio houvesse aqueles seus apelos populistas de colocar talco no paletó para fingir que era caspa, de comer um sanduíche no meio do comício para dizer que é um homem comum, não há nenhuma degradação através da linguagem ou das formas de comportamento – Heloisa Starling


IHU – Apesar de todas essas questões, temos de reconhecer que Jair Bolsonaro, enquanto ícone dessas perspectivas, foi eleito. Como podemos compreender a adesão de parte da população a essas lógicas?

Heloisa Starling – Eu havia lido O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco [o livro está disponível em PDF neste link], várias vezes e nunca tinha prestado atenção numa coisa que ele fala e que agora me chamou a atenção. Veja como parece premonitório. Ele está escrevendo no século XIX e faz uma análise em que diz que o Estado brasileiro tem como principal estrutura, onde ele se funda, a escravidão. E isso produz um tipo de sociedade, diz Nabuco, que é uma sociedade violenta, hierárquica, racista e muito conservadora, porque precisa conservar essa estrutura.

Aí ele questiona o que fizemos diante disso, pois construímos uma espécie de epiderme civilizatória onde recobrimos essa estrutura e essa sociedade, uma epiderme com os valores da democracia, da liberdade. Mas é só uma epiderme e na hora que ela se rompe emerge a face dessa sociedade que está ali dentro. E ele ainda fala que essa é nossa ficção engenhosa de nação. Nós construímos essa epiderme e construímos a nação em torno dela. Mas a epiderme é algo muito fino e, quando ela se rompe, vem esse fundo recessivo de que falava, emerge essa sociedade que não queremos ver.

Então, acho premonitório e acho que ele acertou no diagnóstico. Nós perdemos essa oportunidade a partir da Constituição e da redemocratização de 1988 de enraizar a cultura democrática no Brasil, enfrentando nossa epiderme civilizatória. Apostamos muito fortemente nas instituições democráticas e na prática democrática, em eleição, voto etc., e deixamos de lado a cultura democrática. A democracia tem de ser um modo de vida de uma sociedade. Isso é a forma de nós acabarmos com essa epiderme civilizatória, precisamos desmontar nossa ficção de nação. Para isso, precisamos enraizar na sociedade a cultura democrática. Esse foi o erro que a face democrática da sociedade cometeu.

Esquecemos o que [Alexis de] Tocqueville fala em Democracia da América [São Paulo: Vide Editorial, 2019]: a democracia tem que ser uma forma de sociedade. Se não for uma forma de sociedade, fica na epiderme civilizatória.


 Nós perdemos essa oportunidade a partir da Constituição e da redemocratização de 1988 de enraizar a cultura democrática no Brasil, enfrentando nossa epiderme civilizatória – Heloisa Starling


Muito além da conjuntura

Então, quando isso emerge nós entendemos, afinal essas pessoas estavam aí. Quando se corta a epiderme, emerge esse fundo recessivo da sociedade, que já estava aí e não caiu do céu. É aí que olhamos para trás e nos perguntamos: cadê a cultura democrática da sociedade brasileira? Como vamos enfrentar esse problema agora? Como é que nós vamos desmontar nossa ficção engenhosa de nação para, de fato, pensar em uma nação democrática? Eu tenho pensado assim, pois é muito fácil dizer “isso foi conjuntural”. Tudo bem que há uma conjuntura que facilitou as coisas, mas é mais profundo que uma conjuntura, pois de alguma maneira está enraizado.


Nós temos uma história esquecida da República, pois aquela que se forma a partir de 1889 é uma república vazia de republicanismo – Heloisa Starling


 IHU – Até que ponto a sociedade brasileira se conhece e conhece sua própria história?

Heloisa Starling – Nós temos uma história esquecida da República, pois aquela que se forma a partir de 1889 é uma república vazia de republicanismo. A tradição republicana entre nós se forma no final do século XVIII, nas três grandes conjurações – Mineira, Baiana e do Rio de Janeiro –, de modo que a República está no projeto mineiro. A conjuração do Rio de Janeiro, pouco estudada, é sensacional (mas a gente não vai contar para os cariocas porque eles são meio convencidos [risos]), porque é a primeira vez que se vai discutir no Brasil a ideia de que a República tem que ser democrática.

A ideia de democracia tal como a conhecemos hoje, com a igualdade em que todos são iguais e, portanto, todos têm direito ao poder, é uma ideia que entra no Brasil a partir do Rio de Janeiro. Aí vem os baianos com aqueles panfletos que eles escrevem e os pregam com cera de abelha na porta da casa dos outros.  Os baianos vão e dizem: “a democracia tem que ser inclusiva. Dela têm que fazer parte os homens pobres e os homens de ‘cor’’’, embora eles ainda estejam pensando nos libertos.

Imagino que se a conjuração da Bahia – e aí eu estou imaginando, supondo – avançasse um pouco mais, ela teria que, necessariamente, lidar com o pensamento abolicionista. Essa tradição dá um salto em 1817 e instaura a república no Recife, no dia 3 de março, e no dia 13 de maio do mesmo ano instaura a república no Ceará, a república do Crato. A república do Recife abre um ciclo revolucionário, que o Evaldo Cabral vai dizer que é a nossa outra independência, que vai pelo menos até a Confederação do Equador.

Há, então, um projeto de independência que vai ter de lidar com a ideia de República, de federalismo e vai ter que se confrontar com a ideia abolicionista,  porque em Pernambuco o conceito de cidadania vai aparecer muito forte e a sociedade se defronta com a escravidão. Quando chega 1923, há uma revolta em Pernambuco – pouco estudada, a Pedrosada –, liderada por Pedroso, um negro, que é nosso primeiro levante inspirado na Revolução do Haiti.

O que a Revolução do Haiti nos diz é que a República tem que dar conta da escravidão. Então, se pensarmos nas grandes revoluções na tradição republicana, a Revolução   Americana diz que a República não precisa de colônia, as Revoluções Francesa e Inglesa, que não precisam de monarquia absoluta, e a Revolução do Haiti tem que entrar nessa leva porque é a primeira vez que a República Moderna tem que se defrontar com a escravidão se ela quer estender a sua cidadania.


“Meu Deus, isso vai dar no Haiti”

A garotada em Olinda, Pernambuco, começou a cantar uma música inspirada, elogiando os líderes da Revolução do Haiti – olha que legal. O cônsul francês chegou a colocar a mão na cabeça — a correspondência dele é sensacional — e falou: “meu Deus, isso vai dar no Haiti”. Então, talvez, a gente possa pensar que a partir daí a República tem que se defrontar com o pensamento abolicionista. Os republicanos exaltados que vão aos jornais no primeiro reinado terão que enfrentar e debater essa questão. Frei Caneca, Ezequiel Corrêa dos Santos vão debater, e Nova Luz Brasileira [principal jornal representante do Liberalismo Exaltado no Rio de Janeiro, em fins do Primeiro Reinado e início da Regência] vai debater o assunto.

 Portanto, há um pensamento republicano que se defronta com o abolicionismo. O que não se tem, no momento de instalação da República, é o giro que esvaziou essa tradição, ela ficou no passado, é a nossa tradição esquecida da República. Mas é uma tradição que conta essa história e nós precisamos recuperá-la.

Eu acredito que na minha pesquisa tem uma falha que é pensar como isso se deu no Sul do país, que pensamento republicano se formou na época dos combates da  Cisplatina, da Independência. Isso eu preciso estudar, pois não consegui ver isso muito bem — não é pretensão minha —, consigo ver isso no Norte, no que hoje chamamos de Nordeste, no Sudeste, mas ainda não olhei para o Sul, mas eu preciso. Tem um “trem” acontecendo na Cisplatina, tem República ali, mas não é o republicanismo que depois veremos no final do século XIX. Eu penso que isso acontece antes da Revolução Farroupilha, esse “trem” tem que estar na Cisplatina.


 IHU — Aqui no Rio Grande do Sul, quando falamos em ideal republicano, sempre se evoca a Revolução Farroupilha e não se olha a Cisplatina.

Heloisa Starling — Isso tem que estar ali na Cisplatina, caso contrário, não haveria a guerra como ela aconteceu; precisamos entender, pois ali tem uma história que o passado quer nos contar.

Quando eu estava fazendo, com a Lilia [Schwarcz], A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil [Companhia das Letras: 2020], nós nos demos conta de que o principal foco da epidemia espanhola em Santa Catarina aconteceu exatamente na região do Contestado. A guerra do Contestado tinha acabado cerca de seis meses antes da eclosão espanhola; tem uma história ali. Agora, não tem um bendito jornal digital, não tem nenhum TCC de universidade escrito sobre isso — que é fundamental —, e eu não achei nem tese e nem dissertação.

Então, tem que esperar esse vírus dar um refresco [a pandemia de Covi-19] para investigar por que o principal foco da espanhola é exatamente na região que aconteceu o Contestado. Tem horas que as nossas perguntas do presente reorientam o nosso olhar para o passado e descobrimos que o passado tem coisas a nos dizer que ainda não conhecemos — isso é muito legal, vale a pena ser historiador [risos]. É a hora que o passado te telefona e diz “tem uma história ali, presta atenção” [mais risos].

O Evaldo Cabral fala uma coisa muito interessante: “Oh Heloísa, o documento te conta a história, mas você tem que perguntar” [risos].


O partido nazista criou seções em 82 países e o Brasil foi o país com a seção com o maior número de filiados – Heloisa Starling 


IHU — A que a senhora atribui ao fato de o Brasil ter se tornado a maior filial do partido nazista fora da Alemanha e quais os fatos que contribuíram para isso naquele período?

Heloisa Starling — Isso tem a ver com a nossa conversa no seguinte sentido: se pensarmos essa história de nazismo, é sempre uma história distante do imaginário brasileiro, isto é, é algo que aconteceu na Europa, nós participamos da Segunda Guerra Mundial e fomos contra; nós conhecemos mais a questão do integralismo.

Nesse sentido, a partir da pergunta que eu fiz para o passado, comecei a perceber uma série de evocações feitas atualmente, inclusive pelo governo [federal]  — pensemos o caso do secretário da Cultura [Roberto Alvim], que foi o caso mais emblemático. Não são evocações neonazistas, mas ao nazismo. Eu comecei a me perguntar a troco de que isso está sendo feito, sobre as evocações imaginárias, se pensarmos numa ideia de uma utopia regressiva, que é a utopia reacionária, isto é, como se criam algumas referências para destampar esse fundo recessivo da sociedade.

Eu fiquei pensando, nazismo...! Então, fui perguntar aos documentos e me dei conta disto: temos uma conjuntura mundial em que há uma crise democrática muito forte, é um momento em que há ascensão das formas totalitárias históricas — o nazismo e o stalinismo —, tais como as conhecemos. Passei a me dar conta desse fato a partir de uma tese feita por uma historiadora muito boa chamada Ana Maria Dietrich, cujo tema era o nazismo no Brasil.

Quando comecei a ler a tese fiquei espantadíssima, porque mostra que o partido nazista criou seções em 82 países e o Brasil foi o país com a seção com o maior número de filiados. Podemos pensar que foi no Rio Grande do Sul — onde tem a maior parte da imigração alemã —, mas não, isso aconteceu em 18 estados brasileiros. Onde ele foi mais forte no Nordeste? Pernambuco e Bahia. Onde ele tinha o maior número de filiados? São Paulo. Na verdade, o partido nazista se ramificou e entrou país afora — seções em 18 estados é muito.


Integralismo

O partido nazista exigia que seus filiados comprovassem o sangue “puro”, ariano. Então, a solução para muitas pessoas que queriam participar foi entrar para o integralismo. Isso significa que esse imaginário foi expandido. Eu vi uma foto – não é no Sul, mas não recordo exatamente a cidade – em que temos as portas de entrada do partido nazista e do partido integralista lado a lado, ou seja, são vizinhos.


Claro que o Brasil não foi um país nazista, mas existe um imaginário reacionário, uma raiz de origem nazista. O que faz muito sentido hoje – Heloisa Starling


“Nazificações” à brasileira

A expansão do nazismo, para além do partido, deu-se com a criação de outras associações, como “Amigos da Alemanha”, “Juventude hitlerista”, que permitiram no Brasil a militância para além do partido, em torno dele. Também saíram jornais, comemorava-se o aniversário de Hitler e criaram-se escolas. Assim, percebe-se que tem um imaginário aí que é destampado na hora em que é evocado — eu não sabia disso. Essa questão é muito forte para pensarmos como tiramos a tampa desse fundo recessivo. Qual é a profundidade desse imaginário? Claro que o Brasil não foi um país nazista, mas existe um imaginário reacionário, uma raiz de origem nazista. O que faz muito sentido hoje, estamos falando de uma linguagem ideológica, um espaço onde as condições sociais são reconhecidas.

Mas, também são nazificadas formas de comportamento hoje, como o anti-gay e o anti-nordestino. Isso mobiliza um caldo que não é conservador, mas reacionário. É uma história que precisa ser contada e que mostra essa utopia regressiva tendo uma raiz tão forte.

Outra dimensão que precisamos estudar é como isso se deu com relação às Forças Armadas. Qual a presença do integralismo e das simpatias pela Alemanha hitlerista dentro das Forças Armadas? Porque, durante a guerra, enquanto o Brasil foi neutro, ele fez acordos com a Alemanha Nazista, inclusive de compra de equipamento militar e de convênio policial — Filinto Müller faz um convênio institucional com a Gestapo [Geheime Staatspolizei - Polícia Secreta do Estado Nazista] para práticas policiais; eu não gosto nem de pensar. Tem uma história que precisamos entender e saber como ela funcionou nessa chave.


 IHU — Quais os resquícios dessa relação com o nazismo que podemos identificar mais fortemente no Brasil atual?

Heloisa Starling — Eu tenho que estudar mais e ainda estou estudando. Mas tem uma série de ingredientes. Um deles é reconstruir a dimensão de um passado mítico glorioso. É um lugar seguro para um homem médio se situar. Em uma conjuntura muito volátil, como a que estamos vivendo, uma temporalidade diferente, um grau de ressentimento alto, porque a crise produziu mudanças muito radicais de hierarquias e de posições sociais, há o fortalecimento nesses setores da  sociedade de uma visão de mundo de como as coisas eram tranquilas antes. E, com isso, é criada essa propensão: uma masculinidade forte no lugar da igualdade de gênero; uma segurança na sua posição e no seu papel social; um Estado que é forte e que garante a ordem da sociedade e impede a violência — eu sair na rua e ser assaltada.

 Nós estamos lidando com o “coração das trevas”, como diria Conrad. Podemos pensar em outros aspectos também: defesa da família patriarcal; anticomunismo delirante; um fanatismo que tem um traço religioso.

 Além disso, podemos pensar como se “nazificam” novos grupos sociais. Era o que eu estava tentando imaginar. Como isso pode ser nazificado? Com uma política racista, com uma política anti-gay, com uma coisa forte como é o anti-nordestino — a maneira degradada como esse imaginário se refere à população do Nordeste. E, a própria questão da mulher, isto é, de novo se garante essa masculinidade forte, há uma insistência muito grande nessa masculinidade forte que tem uma raiz imaginária grande no nazismo.

Eu acredito que funciona nesses dois gêneros, nessas duas situações: de um lado se produz esse passado mítico que funciona como um lugar seguro; e produz uma ferramenta que permite nazificar grupos sociais jovens, que vão então assumir, sem muita preocupação de esconder, essa reação reacionária.

Estamos lidando com um discurso ideológico, está se formando o imaginário. E, na hora que se forma esse imaginário, se há uma raiz histórica ali, ela é destampada. Não é a única raiz dessa utopia regressiva, mas é uma raiz importante porque fornece ferramentas para que eu possa me imaginar em uma certa situação.


Talvez um dos erros que tenhamos cometido ao longo da história foi disfarçar o reacionário no conservador. O conservador é democrático, trata-se de duas coisas diferentes – Heloisa Starling


IHU – Olhando para o atual cenário, como se caracterizam os “reacionários” do Brasil hoje?

Heloisa Starling – Em primeiro lugar é preciso dizer que esse sujeito não é o conservador, o conservador é outra coisa. Talvez um dos erros que tenhamos cometido ao longo da história foi disfarçar o reacionário no conservador. O conservador é democrático, trata-se de duas coisas diferentes. A tradição conservadora vai tentar conservar, o reacionário quer “voltar”, ele produz uma reação àquilo que significam as transformações e as mudanças na sociedade no sentido das suas transformações radicais que produzem, por exemplo, maior igualdade, maior liberdade de pensamento, a quebra dos papéis sociais. Reage-se contra isso e a reação costuma ser tão forte quanto uma revolução, mas ela não é uma revolução, é uma reação muito forte, muito violenta e muito intensa. O que estamos assistindo é a essa ração que aparece em três campos de forma muito clara:

1) A contrariedade em relação ao significativo avanço em seu projeto de inclusão e cidadania. Ou seja, sobre a questão de como vamos incluir na cidadania o maior número de pessoas e garantir a elas direitos para que possam ser iguais na sua diferença. Essa reação aparece de maneira forte diante do catálogo de direitos, que não existe somente para garantir os direitos das minorias, senão para garantir que as minorias não sejam atacadas em seus direitos. É esse papo de que vale a maioria e que vamos seguir a maioria, em que se retira o direito de as pessoas diferentes se manifestarem em suas diferenças; de novo Tocqueville vai dizer que é uma forma de despotismo, uma tirania e chama-se a tirania da maioria. Esse é um dos lugares em que a reação tem sido muito violenta. O catálogo de direitos é a medida da democracia e da liberdade, então não é à toa que esse é um dos focos em que vai acontecer a reação a esse pensamento.

2) O outro lugar está ligado à quebra em certos setores da sociedade que se ressentiram muito fortemente do processo da igualdade que alterou o equilíbrio social. É, por exemplo, o sujeito da classe média, aquele que começou a cruzar no aeroporto com pessoas das camadas populares e passou a achar que aeroporto era rodoviária. Essa manifestação é à flor da pele, mas isso aparece de diferentes formas e de maneiras muito mais profundas, há um afeto perverso que está alimentando isso que é o ressentimento. O ressentimento coloca o reacionário no lugar da vítima. Um bom exemplo aparece na universidade. Eu já vi mães de classe média dizerem assim “ah, o meu filho não entrou na UFMG por causa das cotas”. Ora, nunca ocorreu a ela se perguntar se o filho dela não entrou na UFMG porque não estudou o suficiente?


Eu já vi mães de classe média dizerem assim “ah, o meu filho não entrou na UFMG por causa das cotas”. Ora, nunca ocorreu a ela se perguntar se o filho dela não entrou na UFMG porque não estudou o suficiente? – Heloisa Starling


A culpa é sempre do outro e “eu” sou sempre vítima da ação do outro, então posso reagir. Não há como se discutir com a vítima, então quanto mais esses setores se colocam na posição de vítima e quanto mais eles projetam para o outro a culpa de suas frustrações, eles produzem uma justificativa – “o meu filho é uma maravilha” –, quando na verdade a razão é que ele não estudou o suficiente. Eu mesmo tenho um sobrinho que não estudou o tanto que devia, eu quase matei ele [risos], mas as cotas não têm nada a ver com isso. Eu já ouvi muito esse tipo de comentário e se trata de uma estratégia de sempre colocar o outro como o meu inimigo. Na hora em que afirmo que a culpa é do outro, ele se torna um inimigo, pois está “tomando” o meu lugar.

3) O terceiro ponto é o do anticomunismo. O comunismo virou uma espécie de palavra-valise no Brasil, onde dentro cabe qualquer coisa, qualquer inimigo, pois qualquer coisa ou pessoa que eu quero transformar em inimigo eu coloco dentro desta palavra. Trata-se da construção de um inimigo imaginário – e é completamente imaginário – porque não existe comunismo no Brasil, eu lamento informar [risos]. Lá em 1935, quando tem a insurreição de 35, tudo bem, lá tinha o Partido Comunista. Mas hoje?!

Então, passa a ser um conceito a partir do qual se cria um adversário, pois é necessário um adversário. Reparem que esta reação está sempre em movimento, ela não pode parar, pois se parar ela fica desarmada, de modo que é preciso manter a reação em constante movimento. Esse é outro ingrediente forte da experiência totalitária.


Eles estão destruindo a independência. O 7 de setembro não! O que está em jogo é o sentido histórico da independência – Heloisa Starling


IHU – É por isso que neste governo há a produção de crises o tempo inteiro?

Heloisa Starling – Exatamente. Talvez haja um erro interpretativo de ver esses movimentos apenas como modos de “alimentar” as bases. Não é só isso, esse movimento é necessário porque o processo de destruição depende dele. Quanto mais intenso ele for, maior é a ferida na nossa epiderme civilizatória. Basta ver o país inteiro discutindo o que pode ser um 7 de setembro. Precisa alguém dizer, “olha gente, o 7 de setembro não pode ser apropriado à direita ou à esquerda”. É, inclusive, uma data que precisamos avaliar e discutir historicamente. Ponto.

Nós estamos destruindo a história. Vamos destruir o 7 de setembro – o projeto vitorioso de construção do Estado e o projeto alternativo, pois havia dois projetos de independência. O que ganhou, que era conservador, monarquista e que manteve a escravidão; e o projeto alternativo, que era a República, constitucional e federalista, o projeto libertário. Ao invés de estarmos discutindo isso, estamos vendo o simbolismo desta data ser apropriado. Esse é o processo de destruição da história. Eles estão destruindo a independência. O 7 de setembro não! O que está em jogo é o sentido histórico da independência.


IHU – Como dialogar com essa sociedade reacionária e calcada na própria vitimização, insistindo que vivemos numa crise e que a História pode nos trazer luzes sobre o presente, como a experiência da Legalidade?

Heloisa Starling – Nós temos que fazer isso de diferentes maneiras. A imprensa tem que fazer isso, as universidades têm que fazer isso. Hannah Arendt também dizia – aliás, isso vai estar também em Sócrates – que o pensamento é como o vento, ele tira tudo do lugar, quebra com as certezas. Toda vez que a gente pensa, paramos e giramos o argumento. Assim, quebra com nossas certezas, com nossos preconceitos. Veja, basta parar e pensar: por que mesmo que um negro tem de ser menos que um branco? Se fizer isso, pronto, acabou, vai pensar e não vai ter como aceitar isso.

Bem, e se o pensamento é como o vento e tira as coisas de lugar, quando faz isso ativa a imaginação. É a capacidade de enxergar aquilo que está muito perto da gente e que não conseguimos ver porque está perto demais, e aquilo que está longe e que trazemos também para perto. Vocês têm um compositor aí no Sul que leu Hannah Arendt – ou Arendt ouviu a música dele, mas acho provável que ele tenha lido Hannah Arendt [risos] –, que é o Lupicínio Rodrigues. Ele fala assim: ‘o pensamento parece uma coisa à toa, mas como a gente voa quando começa a pensar’.

Olha só! Lupicínio Rodrigues está dizendo algo aí... Mas é muito lindo isso que ele fala, porque é realmente esse raciocínio. Por isso digo que ou ele pegou da Hannah Arendt ou ela pegou dele, ou, ainda, ele leu Sócrates [risos].


É preciso abrir a janela

Então, a imprensa, a universidade, a cultura, nós temos que abrir a janela para o vento do pensamento. Temos que chamar as pessoas a pensarem. Isso é produzir informação, conhecimento, chamar à História. 

Agora, essa é uma instância. A outra é: a sociedade brasileira precisa ser capaz de dizer, como no caso da Legalidade, qual é o brasileiro que queremos ser. O que nós temos que fazer o tempo todo com muita insistência é abrir a janela para o pensamento entrar. Hannah Arendt fala mais uma coisa ótima e acho que o Lupicínio Rodrigues sacou: na hora que você pensa, você age.

São duas coisas combinadas: abrir a janela para o pensamento entrar e chamar as pessoas a pensar, o que significa a importância da liberdade e da democracia. Quem não se mobiliza em defesa da liberdade, não se mobiliza para nada mais. Nós precisamos juntar as pessoas, reunir as pessoas, assim como aconteceu aí no Sul. Se aconteceu aí com cem mil pessoas na praça, pode acontecer em qualquer lugar.


Quem não se mobiliza em defesa da liberdade, não se mobiliza para nada mais – Heloisa Starling.


O arcebispo e o revolucionário

Eu preciso ir a Porto Alegre, nesta praça [atualmente chamada de Praça da Matriz, mas que tem como nome oficial Praça Marechal Deodoro], porque quero ver essa região que reuniu tanta gente. Tem a Catedral [ao lado do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho], e o Brizola colocou metralhadoras antiaéreas, tudo isso com o arcebispo mais conservador, Dom Vicente Scherer, que saiu da Catedral para desacatar Brizola. Tudo porque Brizola havia mandado colocar uns  ninhos de metralhadora em cima da catedral.

Quando o arcebispo entra no Palácio e conversa com as pessoas e elas dizem que as ordens de Brasília são de que a praça seja bombardeada, ele fica apavorado, mas diz para a esposa do governador: “olha, nós somos adversários políticos, eu tenho horror a ele, mas se vier a notícia de que nós seremos bombardeados eu vou sentar na porta do Palácio”. E no dia seguinte ele declara apoio à Constituição.

Esse é um exemplo forte, ainda mais com cem mil pessoas à frente da praça, com o [vento] minuano soprando ferozmente, o que não é fácil, e o povo na rua defendendo a democracia. Nós precisamos fazer isso. É preciso abrir a janela, pensar e agir. A sociedade tem que mostrar qual o brasileiro que ela quer, da importância de defender a liberdade, da importância de defender a democracia, porque as instituições sozinhas não vão dar conta não.



sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Lula vai às lágrimas ao reencontrar Hilton Acioli, compositor potiguar da música “Lula-lá”

 Amazon News 27/08/2021

Ex-presidente petista chora ao falar sobre a importância da música “Lula-lá”, ao lado do compositor da música, o potiguar Hilton Acioli



O ex-presidente Lula (PT) foi às lágrimas, na noite desta terça-feira (24/08), em Natal (RN), ao reencontrar o compositor potiguar Hilton Acioli, autor do famoso jingle “Lula lá” que marcou a campanha do ex-presidente na eleição de 1989. O encontro aconteceu no auditório do hotel Holiday Inn, em Lagoa Nova, Zona Sul de Natal, durante evento que reuniu representantes de movimentos culturais e sociais, além de representantes da equipe do filme Sideral, curta-metragem potiguar que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Acompanhado de aliados, como a governadora Fátima Bezerra e a presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), a deputada federal Gleisi Hoffmann, Lula chegou ao local por volta das 18h para cumprir sua agenda com o maior número de presentes nesta passagem por Natal. Segundo a equipe organizadora do evento, cerca de 300 pessoas foram credenciadas para participar do encontro intitulado “Lula no RN”.

O último a usar a voz, após o seu anúncio ao som de “Lula-lá”, composta pelo músico Hilton Acioli, que estava no local, acabou levando o ex-presidente às lágrimas ainda nos primeiros segundos do discurso.

“Eu queria dizer para vocês que velho também tem emoção. Se vocês começam a brincar e mexer com minhas emoções, é possível que vocês não tenham candidato”. Queria cumprimentar todos os companheiros. Eu, sinceramente, não esperava a surpresa de ter aqui Hilton Acioli. Não sei se vocês sabem, essa música…”, disse o petista, já com a voz embargada, antes de começar a chorar.

Na sequência, o petista tentou segurar a emoção, mas claramente de voz embargada, tendo o músico ao seu lado, continuou.  “Eu disputei eleição em 94, 98, 2002, 2006, já ganhei eleição. Mas eu não acredito que nunca mais alguém consiga fazer uma música que fale o sentimento e a linguagem do povo naquele momento. Era a primeira eleição para presidente neste país e essa música permitiu, não foi o candidato, essa música (Lula-lá) permitiu que a gente fizesse a campanha mais emocionante da história deste país. Porque essa música mexia com o coração e mexia com a mente do povo brasileiro. Já faz quase 35 anos e eu continuo me emocionando com ela da mesma forma que eu me emocionava em 1989, querido. Então eu quero que você saiba que você fez uma música para mim inesquecível. Eu já fui candidato muitas vezes. Mas toda vez que eu ouvia essa música, ela sempre era melhor do que a música que estava tocando daquela campanha. Então Hilton, de coração, muito obrigado e o povo brasileiro vai te pagar um dia, com o reconhecimento do compositor que você é”, declarou o petista.

Nossa resposta ao Talibã

Slavoj Žižek - 27 Agosto 2021

Tendemos a ignorar um componente essencial da crise afegã: o 'martírio' como causa de vida. Em Foucault e Lukács, chaves para entender a fé como engajamento coletivo – que, sob repressão do capital, retorna com o fundamentalismo.

O Talibã está facilmente tomando conta do Afeganistão. Cidades estão caindo como dominós, mesmo as forças do governo estando não só muito mais bem equipadas e treinadas como em maior número (300 mil contra 80 mil combatentes talibãs). Quando o Talibã se aproxima, as forças do governo simplesmente derretem: se rendem ou fogem, sem apresentar qualquer disposição para lutar. Por quê?


A mídia nos bombardeia com algumas explicações. Uma delas é diretamente racista: as pessoas simplesmente não seriam maduras o suficiente para a democracia, teriam um desejo pelo fundamentalismo religioso. Trata-se de uma afirmação completamente ridícula, desnecessário dizer. Meio século atrás, o Afeganistão era um país (moderadamente) esclarecido com um Partido Comunista muito forte, que inclusive esteve no poder por alguns anos. O país só tornou-se religiosamente fundamentalista mais tarde, como reação à ocupação soviética que tentou evitar o colapso do poder comunista.

Outra explicação dada é a do terror: o Talibã executa implacavelmente aqueles que se opõem à sua política. Há também a que recorre à fé: o Talibã simplesmente acredita que em seu ato realiza a tarefa delegada a eles por Deus, de modo que sua vitória final está garantida e eles podem se dar ao luxo de não pecar por impaciência – podem esperar, afinal, o tempo está de seu lado. Uma explicação mais complexa e realista que tem aparecido é de que a situação no Afeganistão é demasiadamente caótica, trata-se de um país tão assolado por guerra e corrupção que, mesmo que o regime do Talibã traga opressão e a lei da xaria, ele ao menos garantirá a segurança e a ordem.

Mas todas essas explicações parecem se esquivar de um fato básico, traumático para a visão liberal ocidental. Refiro-me ao desprezo do Talibã pela sobrevivência, à prontidão de seus combatentes em assumir o destino do “martírio”, de morrer não apenas em uma batalha, mas inclusive em atos suicidas. A explicação de que os talibãs, como fundamentalistas que são, “realmente acreditam” que entrarão para o paraíso se morrerem como mártires é insuficiente. Ela deixa de captar a diferença chave entre a crença no sentido de insight intelectual (“Eu sei que irei para o céu, é um fato”) e a crença como uma posição subjetiva engajada.

Em outras palavras, é incapaz de levar em conta o poder material de uma ideologia – neste caso, o poder da fé – que não se baseia apenas na força de nossa convicção, mas em como estamos diretamente comprometidos existencialmente com nossa crença. Não somos sujeitos escolhendo esta ou aquela crença, nós somos a nossa crença no sentido em que essa crença impregna nossa vida. Foi esse aspecto que deixou Michel Foucault tão fascinado pela revolução Khomeini em 1978, a ponto de dedicar duas viagens ao Irã.

O que o intrigou ali não foi apenas a postura de aceitar o destino do martírio, nem a indiferença em relação à perda da própria vida. Ele estava “engajado em uma versão muito específica da ‘história da verdade’, que enfatizava uma forma partidária e agônica do dizer a verdade e a transformação por meio da luta e da provação, em oposição às formas pacificadoras, neutralizantes e normalizadoras do poder ocidental moderno. Crucial para compreender este ponto é a concepção de verdade em operação no discurso histórico-político, uma concepção de verdade como parcial, como reservada para os partisans” (GAMEZ, 2018, p.96).

Ou, nas palavras do próprio Foucault, “se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do filósofo. É verdade que esse discurso sobre a guerra geral, esse discurso que tenta decifrar a guerra sob a paz, esse discurso bem que tenta expressar, tal como ele é, o conjunto da batalha e restituir o percurso global da guerra. Mas nem por isso ele é um discurso da totalidade ou da neutralidade; é sempre um discurso de perspectiva. Ele só visa a totalidade entrevendo-a, atravessando-a, traspassando-a de seu ponto de vista próprio. Isto quer dizer que a verdade é uma verdade que só pode se manifestar a partir de sua posição de combate, a partir da vitória buscada, de certo modo no limite da própria sobrevivência do sujeito que está falando.” (FOUCAULT, 2005, p.61)

Pode tal discurso engajado ser descartado como sinal de uma sociedade “primitiva” pré-moderna que ainda não ingressou no individualismo moderno? E é certo descartar seu atual renascimento hoje como um sinal de regressão fascista? Para qualquer pessoa minimamente familiarizada com o marxismo ocidental, a resposta é clara: György Lukács demonstrou como o marxismo é “universalmente verdadeiro” não apesar de sua parcialidade, mas por conta dela, por ser acessível apenas a partir de uma posição subjetiva particular. Podemos concordar ou discordar com essa visão, mas o fato é que o que Foucault buscava no longínquo Irã – a forma agônica (“de guerra”) de dizer a verdade – já estava fortemente presente na visão marxista de que estar enredado na luta de classes não é um obstáculo para o conhecimento “objetivo” da história, mas sua condição.

A noção positivista usual de conhecimento como uma abordagem “objetiva” (não parcial) da realidade que não é distorcida por um engajamento subjetivo particular – aquilo que Foucault caracterizou como “as formas pacificadoras, neutralizantes e normalizadoras do poder ocidental moderno” – é ideologia no seu estado mais puro: a ideologia do “fim da ideologia”. Por um lado, temos o conhecimento-especialista não ideológico “objetivo”, por outro, temos indivíduos dispersos, cada um dos quais está focado em seu “cuidado de si” idiossincrático (termo que Foucault usou quando abandonou sua experiência iraniana), pequenas coisas que dão prazer à sua vida. Desse ponto de vista do compromisso universal, o individualismo liberal, especialmente quando inclui risco de vida, é visto como profundamente suspeito e “irracional”.

Aqui chegamos a um paradoxo interessante: embora haja dúvidas de que o marxismo tradicional possa fornecer uma explicação convincente para o sucesso do Talibã, ele forneceu um exemplo europeu perfeito do que Foucault estava procurando no Irã (e do que nos intriga agora no Afeganistão), um exemplo que não envolveu qualquer fundamentalismo religioso, mas apenas um compromisso coletivo por uma vida melhor. Após o triunfo do capitalismo global, esse espírito de engajamento coletivo foi reprimido, e agora essa postura reprimida parece retornar sob a forma de fundamentalismo religioso.

É possível imaginarmos um retorno do reprimido em sua forma adequada de engajamento emancipatório coletivo? Não só é possível, como ele já está batendo à nossa porta – e com força. Mencionemos apenas a catástrofe do aquecimento global – ela exige uma ação coletiva em grande escala que demandará suas próprias formas de martírio, o sacrifício de muitos prazeres aos quais nos acostumamos. Se realmente quisermos mudar todo o nosso modo de vida, o “cuidado de si” individualista que gira em torno do uso dos nossos prazeres terá que ser superado. Por outro lado, a tecnocracia da ciência especializada por si só não resolverá o impasse – terá de ser uma ciência enraizada no mais profundo engajamento coletivo. Essa deve ser nossa resposta ao Talibã.

Referências:

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 61.

GAMEZ, Patrick. The place of the Iranian Revolution in the history of truth: Foucault on neoliberalism, spirituality and enlightenment. Philosophy and Social Criticism, v. 45, n.1, p. 96-124, set. 2018.

O comentário é de Slavoj Žižek, filósofo, psicanalista e professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor, entre outros, de O sujeito incômodo (2016), O absoluto frágil (2015) e Alguém disse totalitarismo? (2013). O artigo é publicado por blog da Boitempo, 16-08-2021. A tradução é de Artur Renzo.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/612214-nossa-resposta-ao-taliba-artigo-de-slavoj-zizek?fbclid=IwAR07rYZ9Je_h8D0J3RMQfaslyF6asOFG_j0QU5_NN1DDsdR3e-9QbcvydNY

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

'Doutor Gama': filme brasileiro é selecionado para o maior festival de cinema negro do mundo

 Nara Lacerda                                                                                                                                                                                 Brasil de Fato - São Paulo (SP) - 26 de Agosto de 2021

                                   USP homenageia Luiz Gama 167 anos após impedi-lo de frequentar aulas de direito                                       Longa de Jeferson De estará na edição comemorativa do American Black Film Festival, marcada para o mês de novembro

Personagem histórico: A atuação de Luiz Gama como advogado libertou centenas de pessoas escravizadas

O longa metragem brasileiro Doutor Gama foi selecionado para participar do American Black Film Festival (ABFF), maior evento de cinema negro do mundo. O filme nacional está entre as 10 obras escolhidas para integrar a edição que marca o aniversário de 25 anos do festival.

Dirigido pelo cineasta Jeferson De, Doutor Gama conta a trajetória de um dos personagens mais impressionantes da história brasileira. O abolicionista Luiz Gama nasceu livre na Bahia, foi vendido pelo próprio pai para pagar uma dívida de jogo, aprendeu a ler e a escrever já adulto e, como advogado, libertou mais de 500 pessoas escravizadas.

Nos cinemas e disponível na plataforma de streaming Globo Play desde o início do mês, o filme vem alcançando reações positivas de crítica e público. A participação no ABFF é mais um ponto de consagração, que abre caminhos para possibilidades como o Oscar e o Bafta.


::No Dia do Cinema Brasileiro, a comemoração dá lugar à resistência::

Em entrevista para o Brasil de Fato, Jeferson falou sobre a seleção em primeira mão (ouça a conversa na íntegra no tocador de áudio abaixo do título desta matéria). Emocionado, ele celebrou: "Recebi a notícia ontem. Ainda estou com os olhos brilhando". Para o cineasta, a seleção indica interesse em uma história que precisa ser contada.

"É algo muito grandioso, porque a comunidade negra americana está pressionando o Oscar há muito tempo. Chegar lá com um filme brasileiro e preto neste momento é muito importante". O diretor completa "Eles estão de olho na gente. Eles querem saber - quem é esse tal de maior abolicionista brasileiro, que a gente nunca ouviu falar?"
 

::Vida de filme, mas vida real::

Luiz Gama é dono de uma história surpreendente, que deixa no chinelo a trajetória de qualquer super herói ficcional. Ele era filho de Luísa Mahin, mulher africana, livre e que participou ativamente de levantes negros e negras na Bahia.

"Em 1837, depois da revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar." afirma o próprio Gama em carta ao jornalista e amigo Lucio de Mendonça, datada de 1880.

Aos dez anos de idade, Luiz Gama foi vendido pelo próprio pai, levado de barco ao Rio de Janeiro e comprado por um contrabandista. Com um grupo de mais de 100 pessoas escravizadas, atravessou a muralha natural da Serra do Mar, de Santos a São Paulo, a pé.


::A história por trás de Luiz Gama, lutador contra o Brasil escravocrata::

Foi na capital paulista que ele cresceu, servo na casa de uma família branca. Aprendeu a ler e a escrever já adulto, frequentou aulas de direito como ouvinte na Universidade de São Paulo (USP), conseguiu licença para atuar, mesmo não matriculado oficialmente e, dali, partiu para os tribunais.

"É uma criança, que nasceu livre. Ele foi vendido pelo próprio pai, comercializado como coisa, produto, objeto", conta Jeferson De. O diretor, no entanto, afirma que a vida de Luiz Gama não cabe no conceito de herói. 

"Eu tinha a impressão de que eu estava fazendo um filme sobre um super herói e toda hora eu tinha que me corrigir. Eu falava - não é um super herói, esse é o Luiz Gama e essa é a luta de Luiz Gama, que provavelmente foi a luta de muitas pessoas", conta Jeferson.

::Como combater um mundo estreito e repleto de violência::

O cineasta quer muito mais que o registro dessa jornada em filme. Para Jeferson, Luiz Gama precisa ser reconhecido e chegar a todos, às "quebradas" inclusive. "É a nossa história, é como resgatar a história de um parente, de um avô. Para mim tem esse lugar, eu, como homem preto, fazendo um filme sobre um ancestral".

Das palavras de Jeferson vem a certeza de que, no Brasil de hoje, conhecer, celebrar e destacar a figura de Luiz Gama são atos de absoluta relevância. "Ele tem uma importância para nós negros, mas ele tem uma importância para esse Brasil que a gente se quer, república, um Brasil livre, com a participação de todos."

Edição: Vivian Virissimo

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2021/08/20/doutor-gama-filme-brasileiro-e-selecionado-para-o-maior-festival-de-cinema-negro-do-mundo
fbclid=IwAR0yBwqvrYyohzCuqeTOCHARAXoiSjiCP7RsMHu5kT_MyB8syOoAtL86z1I

Direito à Educação: A farsa do ensino médio self-service

Débora Goulart e Fernando Cássio

25.08.2021

 Os estudantes não demorarão a perceber que a verdadeira liberdade de escolha continuará sendo privilégio dos que, na vida, sempre puderam frequentar restaurantes à la carte.


Projeto de vida, emprego dos sonhos, arquiteturas curriculares flexíveis, inovação, empreendedorismo, tecnologias digitais e um extenso menu de percursos de aprofundamento – a escola adaptada às necessidades de seus estudantes e conectada ao mundo contemporâneo. É com essa linguagem a um só tempo vazia e sedutora, herdeira das novíssimas tradições do life coaching e das empresas de facilitação, que os papagaios da reforma do ensino médio tentam desviar a atenção dos estudantes daquilo que o Novo Ensino Médio realmente opera e produz: uma ruptura com a universalidade da escola pública no Brasil e com a busca por uma melhoria efetiva dessa escola.

“Novo Ensino Médio” (NEM) é o nome-fantasia da reforma educacional deflagrada em 2016 pela Medida Provisória n. 746. Naquele ano, mais de mil escolas e universidades foram ocupadas no país por estudantes que contestavam o autoritarismo da reforma – o que, no entanto, não desanimou seus elaboradores e promotores. Meses depois, a indigesta MP foi convertida na Lei n. 13.415/2017, a base daquilo que, hoje, o Ministério da Educação propagandeia como imitação clichê de trailer cinematográfico e que as redes estaduais de ensino empurram a adolescentes de 15 anos com pesquisas de opinião fajutas e mensagens de incentivo ao exercício da “liberdade de escolha” e do “protagonismo juvenil”.

Entre 2019 e 2020, bem longe de escolas e estudantes e sob a coordenação do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) – devidamente patrocinado por fundações e institutos financiados por bilionários – a Frente de Currículo e Novo Ensino Médio construiu junto com as secretarias de educação dos estados o que seria, na visão do grupo, a “arquitetura” curricular de todas as escolas de ensino médio do país nos anos vindouros.[1]

Em junho do ano passado, São Paulo foi o primeiro estado do país a aprovar, por meio de seu Conselho Estadual de Educação, o novo currículo para o ensino médio. Embora, oficialmente, esse seja o marco inicial da implantação dos itinerários formativos que consolidarão o NEM na sua inteireza, a implantação da reforma na rede paulista já vinha sendo levada a cabo de maneira fracionada desde 2019; em fragmentos que – agora juntados – dão a impressão de que tudo está ocorrendo de supetão.

Um desses fragmentos, o Programa Inova Educação, é subproduto de uma parceria estabelecida em 2018 entre a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) e o Instituto Ayrton Senna para adequar o currículo paulista à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Desde 2019, o Inova já compromete 450 horas-aula da grade fixa do ensino médio paulista em disciplinas denominadas “Projeto de Vida” e “Tecnologia”, além de matérias optativas (como “empreendedorismo”, “administração do tempo” etc.). Numa das apresentações do “Movimento Inova” (05 dez. 2019), Haroldo Rocha, então secretário executivo da Seduc-SP, manifestou empolgação ao anunciar que a pasta vinha conversando com uma startup que era “uma espécie de LinkedIn para estudantes”, onde os jovens poderiam gerenciar seus projetos de vida. Escandalizados com o baixo nível das propostas pedagógicas oficiais, muitos profissionais da educação na rede estadual trabalharam para dar um rumo diferente às disciplinas “Inova”, impedindo que seus estudantes fossem obrigados a engolir cinco aulas semanais de autoajuda empresarial durante todo o ensino médio (mais de 14% da carga horária total do NEM).

Outro dos braços constituintes do NEM paulista é o programa Novotec, implantado há dois anos para escoar a demanda por educação profissional na rede estadual sem que o governo tivesse que efetivamente investir na ampliação da oferta de educação técnica e profissional. A solução do Novotec é simplificar: oferecer nas escolas regulares cursos técnicos com carga horária reduzida e que não exijam infraestrutura de laboratórios, parque de equipamentos etc. A gritante diferença no gasto por aluno é o que distingue a “formação profissional” à la Novotec daquela regularmente ofertada nas escolas técnicas (ETECs) do Centro Paula Souza ou nos Institutos Federais. A primeira – mais barata, de qualidade inferior e que não habilita os egressos com um diploma de ensino técnico – é dispensada aos estudantes mais pobres da rede estadual.

As lutas docentes e discentes que teriam o potencial de frear a autoritária Seduc-SP concorrem, no presente momento, com a luta pela vida em famílias destroçadas pela pandemia. Enquanto as comunidades escolares seguem tentando se organizar, o governo paulista junta as peças e avança na implantação do NEM: currículo escolar simplificado, Novotec, Inova Educação e ampliação do Programa Ensino Integral (este, como sempre, para poucos). A baixa adesão ao ensino remoto por parte dos estudantes inviabilizou um debate qualificado na rede de ensino sobre as mudanças radicais trazidas pelo NEM. Mas isso não vexa os administradores da educação paulista. Pelo contrário, o aligeiramento da reforma é de grande ajuda para o governo Doria.

Em primeiro lugar, a reforma funciona como elemento diversionista, permitindo à Seduc-SP saturar o debate público com pautas diferentes daquela que o governo quer evitar: as responsabilidades estatais pela tragédia educacional vivida na maior rede pública do país – estudantes e professores sem internet, escolas sem infraestrutura, baixa execução orçamentária durante a pandemia, manipulação de dados públicos para enganar a população quanto à segurança sanitária nas escolas etc.

Contorcionista, o governo paulista inverte o argumento e diz que a aceleração da reforma é uma boa maneira de combater a evasão escolar durante a pandemia. Dessa forma, Doria e seus correligionários esquivam-se responder por aquilo que lhes cabe na produção desta mesma evasão escolar no último ano e meio ao mesmo tempo em que implantam uma reforma educacional impopular sem serem importunados pelo burburinho de estudantes questionadores.

Dribladas as resistências, o governo paulista convidou os primeiranistas da rede estadual ao exercício da liberdade e da busca pelos sonhos em um questionário online, no qual as preferências de itinerários formativos deveriam ser indicadas por ordem de prioridade a partir de um cardápio com 11 opções. No formulário, os estudantes tinham acesso a uma “breve descrição” de cada itinerário e a uma sucinta “ementa geral”.

Apresentados aos estudantes como percursos de “aprofundamento” da formação geral fundamentada na BNCC, dez dos novos itinerários eram vinculados às chamadas “áreas do conhecimento” – Matemática e suas Tecnologias; Linguagens e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; além de combinações entre elas denominadas itinerários de “aprofundamento integrado”. O décimo-primeiro itinerário – técnico e profissional – é desdobrado em dois percursos: Novotec Integrado (com 21 cursos técnicos de 900 horas) e Novotec Expresso (com cursos profissionalizantes de curta duração). O NEM é vendido aos estudantes como um ensino médio self-service onde, à primeira vista, cada um pode escolher aquilo que mais lhe apetece.

Um ensino simples, fácil e rápido, com matemática, português e rudimentos de inglês como pratos principais e aulas de resiliência e autocontrole de sobremesa. Afinal, o trabalhador do futuro deve aprender a sorrir perante a humilhação e a manter-se permanentemente fora de sua “zona de conforto”, tolerando estoicamente um permanente desconforto. Como acompanhamentos, os jovens comensais do Novo Ensino Médio são convidados a encarar o sarapatel dos itinerários de aprofundamento ou o vistoso bufê do Novotec, com pequenos canapés que não matam a fome, mas são vendidos pelos chefs do governo paulista como o mais opulento dos banquetes.


Gourmetização curricular

Os itinerários de aprofundamento do NEM paulista ostentam nomes como “#SeLigaNaMídia” e “Superar desafios é de humanas”. Em particular, a escolha por este mexidão de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas implica em substituir discussões sobre a formação social brasileira – em que temas como raça e racismo são tratados – por unidades curriculares genéricas como “Muros e pontes: sociedade, tecnologia e informação”.

No recém-inaugurado site do Novo Ensino Médio SP, as ementas gerais dos itinerários ganharam maior detalhamento. Os documentos foram ampliados para explicar, afinal, o que será servido no ensino médio paulista para além do arroz-com-feijão da BNCC. Um exemplo interessante vem do itinerário que integra as áreas de Linguagens e Matemática (e suas respectivas Tecnologias), intitulado “Start! Hora do desafio!”. Os objetivos da Unidade Curricular 6 para o 3º ano do ensino médio são:

EUREKA! RUMO A NOVOS DESAFIOS! Nesta unidade, você vai revisitar o seu Projeto de Vida e identificar os desafios nos campos da vida pessoal e de atuação na vida pública, desenvolvendo sua autonomia e seu protagonismo. Para tanto, você terá oportunidades de elaborar e compartilhar estratégias para participação em processos seletivos, experimentar práticas bilíngues, criar perfis pessoais e profissionais utilizando mídias digitais e interagir no núcleo de estudos de resolução de problemas em matemática. Estas aprendizagens vão colaborar para suas escolhas futuras, tendo em vista a continuidade de seus estudos ou ingresso no mundo do trabalho.

A unidade é trabalhada em três componentes distintos: um sobre leitura e variação linguística, com ênfase em mídias digitais; outro sobre resolução de problemas de matemática, bem tradicional; e um terceiro, “Proficiência e desafios na vida pessoal e pública”, que trata de tudo um pouco – curadoria de informação, planejamento de estratégias para resolver problemas na “vida pessoal e pública”, exames vestibulares e “posicionamento responsável em relação a temas, visões de mundo e ideologias veiculados por textos e atos de linguagem”. Aprenderão os estudantes que essa ode à proficiência como Projeto de Vida, veiculada no texto curricular oficial, é um dos principais alicerces da mentalidade neoliberal? Oxalá as habilidades de leitura preconizadas pelas ementas ajudassem os estudantes a decodificar esse tipo de discurso.


Os redatores das ementas se esforçaram ao máximo para dar ares de sofisticação a s ituações  escolares triviais   (mas   nem   por   isso   desimportantes).  A  ordinária  escrita  de  textos,  por  exemplo,  virou “planejamento, produção e edição de textos orais, escritos e multissemióticos”. A “pesquisa” escolar no Google e similares,  velha  conhecida  de  alunos  e  professores,  também  sofreu  rebranding:  agora  é “curadoria de informação”.  Além  de  cortar,  triturar  e  reduzir  a  formação  escolar  em  fogo  alto,  o governo paulista gourmetizou a gororoba.

A gourmetização do currículo paulista, no entanto, é operação bem mais profunda do que uma mera alteração na ordem ou nos nomes das coisas. Trata-se de remover do documento curricular, tanto quanto possível, os marcos referenciais aos conhecimentos específicos disciplinares (ditos tradicionais) que são a base da formação dos professores. Assim, como não haverá mais aulas de redação no NEM paulista – renomeadas como “laboratórios de produção jornalística” – elas poderão ser igualmente ministradas, a depender do percurso, por professores de português, inglês, artes e sociologia.

É curioso perceber que os três componentes da unidade curricular “Eureka!” são totalmente independentes um do outro, e facilmente poderiam ser tratados em aulas regulares de matemática, português e orientação de estudos (ou Projeto de Vida, como queiram). Mas para que facilitar, se se pode dificultar? É que um dos grandes objetivos ocultos da reforma – criticado pelo campo educacional em peso desde antes de 2016 – é induzir a desprofissionalização dos professores do ensino médio. O NEM permite aos governos “resolverem” o problema histórico da falta de professores licenciados na área em que lecionam – Física, Química, Sociologia e Filosofia são exemplos clássicos – por meio da supressão da demanda. Em São Paulo, a solução encontrada foi gourmetizar o currículo a ponto de torná-lo irreconhecível aos professores.

Em todos os itinerários propostos pela Seduc-SP, fundamentos científicos disciplinares construídos ao longo de décadas e uma vasta produção do conhecimento nas áreas do ensino e da didática das ciências humanas e naturais foram descartados e substituídos por uma miscelânea de modismos educacionais calcados em resolução de problemas, trabalho em equipe, elaboração/realização de produtos e habilidades socioemocionais – sempre na dimensão mais utilitária possível.

No Novo Ensino Médio, “Ciências Humanas e Sociais” só se forem “Aplicadas”. “Ciências da Natureza”, “Linguagens” e “Matemática” só em intersecção com “suas Tecnologias”. Se o Mercado aponta que designers de jogos ou operadores de planilhas eletrônicas estão em falta, o ensino médio público suprirá essa demanda por mão-de-obra. Já se esses trabalhadores terão o repertório necessário para compreender a lógica das planilhas ou para criar o conteúdo artístico dos jogos e aplicativos, este problema não mais competirá à escola pública. Dirão os mais cínicos que foram os próprios estudantes, no pleno exercício do seu protagonismo, que escolheram trocar a sua formação escolar geral por cursinhos profissionalizantes precários.


Uma nova educação política

Na prática, como vimos, o maravilhoso exercício da liberdade na rede estadual paulista se resumiu ao preenchimento, pelos estudantes, de um singelo questionário de “manifestação de interesse”. Centenas de milhares de adolescentes de 15 anos escolheram seus percursos escolares no cardápio da Seduc-SP sem terem acesso a informações minimamente qualificadas. Muitos foram orientados à distância por seus professores, igualmente excluídos do debate e que ainda não sabem se terão aulas para ministrar no ano que vem. A Seduc-SP chegou a organizar algumas lives sobre a implantação do NEM, mas manteve as caixas de comentários desativadas, impedindo que gestores escolares e professores tirassem dúvidas ou registrassem suas observações.

Foi só depois do encerramento da consulta na qual, segundo o governo, 89% dos estudantes do ensino médio paulista definiram seus itinerários em uma lista de prioridades, que a Seduc-SP lançou – enfim – o site oficial do NEM com a matriz curricular dos itinerários formativos e as ementas detalhadas. Apesar disso, o governo de São Paulo ainda não publicizou a matriz da formação geral básica de 1.800 horas, de modo que até o momento não se sabe se aquilo que está ausente dos percursos de aprofundamento fará parte da formação comum.

História do Brasil, por exemplo, é um dos assuntos que simplesmente não aparecem nas 217 páginas do ementário dos percursos de aprofundamento. Considerando todo o conjunto dos itinerários do NEM paulista, incluindo todos os percursos ligados à área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, um único componente do percurso integrado “Cultura em movimento: diferentes formas de narrar a experiência humana” (Linguagens + Ciências Humanas) traz aquilo que mais se aproxima de um ensino de história do Brasil. Trata-se do componente “Ressignificando a formação do povo brasileiro”, que pode ser igualmente ministrado por professores de Sociologia, Filosofia ou História:

Patrimônio; / identidades e territorialidades na constituição da memória; /                                        povos tradicionais; cultura material e imaterial; / formação da sociedade brasileira e seus legados socioculturais; /                                                                                                                                condições socioespaciais e o lugar dos saberes tradicionais na construção da memória.

Termos como “racismo”, “ditadura”, “autoritarismo” – assim como “machismo”, “homofobia”, “transfobia”, “sexualidade” e muitos outros – simplesmente não aparecem em nenhuma das ementas. Já o termo “raça”, aparece uma única vez no contexto do componente “O corpo e o padrão social”, do itinerário “Cultura em movimento”

Exclusões e inclusões em grupos sociais por meio de marcadores da diferença: estabelecidos e outsiders; subsociedades; pessoas com deficiências; raça e etnia; masculinidades e feminilidades.

Além desta única referência indireta a debates de gênero no ensino médio, o termo “gênero” aparece relacionado ao componente “Mudanças sociais, demografia e trabalho” (do percurso integrado “#quem_divide_multiplica”), que faz referência a relações de gênero e étnico-raciais no mundo do trabalho. Também é aqui que aparece uma das duas únicas referências a “escravidão” em todos os percursos – e sempre no contexto de discussões sobre trabalho.

O tema do trabalho escravo contemporâneo também aparece no componente “Inovação e o mundo do trabalho”, que integra um percurso de aprofundamento alternativo para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: “Liderança e Cidadania”.

Este novo itinerário não constava do formulário distribuído aos alunos entre junho e julho, tendo sido lançado juntamente com as ementas detalhadas no site do NEM paulista. Os proponentes contemporizam o lançamento tardio, e justificam que caso a equipe escolar tenha interesse de desenvolver a segunda opção (…), deve haver um diálogo prévio com os estudantes que cursarão este Itinerário. A proposta do Novo Ensino Médio permite que as unidades escolares, diretorias de ensino e outras organizações da sociedade civil construam propostas de itinerários formativos.

A organização da sociedade civil que construiu o referido itinerário é o Instituto Politize!,   organização especializada em programas escolares de educação política. Segundo a ementa, o estudante que cursar o percurso “Liderança e Cidadania” 

terá a oportunidade de ampliar e potencializar ações políticas, direcionadas para iniciativas para atuar na esfera pública, privada e não governamentais, tais como: Movimentos sociais, entidades beneficentes, Organizações Não Governamentais (ONGs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), além de outras formas de associações civis de impacto social.

O Politize! tem como missão “formar uma geração de cidadãos conscientes e comprometidos com a democracia (…) levando educação política para milhões de pessoas” – e veicula conteúdos relacionados a desigualdades sociais, participação política, direitos humanos, polarização política e defesa da democracia. Embora a organização afirme o “respeito pela pluralidade de ideias, crenças e posições”, sua linha pedagógico-editorial é claramente a dos think tanks liberais.

A despeito da forma e do conteúdo do itinerário “Liderança e Cidadania” – pessimamente redigido e um tanto fora da realidade do ensino médio – é reconfortante saber que o governo de São Paulo apoia a existência de programas de educação política na rede estadual, e que as escolas e outras organizações que também investem em programas de educação política – os movimentos sociais, por exemplo – poderão desenhar percursos de aprofundamento para serem implementados no Novo Ensino Médio. Seria uma inflexão política do governo paulista em relação a 2019, quando João Doria mandou recolher apostilas de 300 mil estudantes do ensino fundamental para interditar debates sobre gênero e gravidez na adolescência? Provavelmente não.

Ao mesmo tempo em que as discussões sobre raça e gênero estão circunscritas a apenas três componentes curriculares (dois sobre trabalho e um sobre corpo), as expressões “ONGs” e “OSCIPs” aparecem, respectivamente, cinco e seis vezes ao longo do ementário (em diferentes percursos formativos). E mais: “Empreendedorismo” (e suas variações[2]), 32 ocorrências; “Projeto de Vida”, 30 ocorrências; mercado, 12 ocorrências; “consumo” (e suas variações), 45 ocorrências; “curadoria”, 21 ocorrências; marketing ou publicidade (e suas variações), 35 ocorrências. A expressão “desigualdade social” (e também “igualdade de gênero”) aparece na esteira das citações aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, aos quais o currículo gourmet está supostamente vinculado. Já a expressão “classe social”, não aparece nenhuma vez.


Formação profissional rebaixada

Para os apóstolos do Novo Ensino Médio, é a escola ultrapassada, rígida e desinteressante a grande responsável pelas elevadas taxas de evasão e pela existência de uma massa de jovens recém-saídos do ensino médio que não trabalham e nem estão matriculados em instituições de ensino superior – a geração nem-nem. A reforma do ensino médio, portanto, é moralmente justificada como a tábua de salvação para uma geração de jovens que, sem grandes perspectivas na vida, precisa de uma escola mais simples e atraente, voltada para a vida prática e para o aumento da produtividade no trabalho. É claro que quem formula essas justificativas pertence a uma outra geração nem-nem: aquela que nunca estudou ou trabalhou em escolas públicas e cujos filhos adolescentes passam longe dessas mesmas escolas.

A cornucópia dos itinerários formativos ditos “acadêmicos” (os percursos de aprofundamento) é voltada à parcela menor dos estudantes das redes públicas que eventualmente ingressarão em instituições de ensino superior. Isso, é claro, a depender daquilo que cada um venha a perder quando optar por determinado percurso. Espera-se que a maioria – aqueles já considerados pelo governo estadual como não tendo condições de cursar uma universidade – opte pelos percursos profissionalizantes rebaixados do Novotec.

Embora a propaganda oficial tente associar o Novotec a instituições de referência como as ETECs do Centro Paula Souza, insistindo na ideia de uma formação profissional em sintonia com as demandas do mundo do trabalho, o governo paulista evita tocar no assunto mais delicado: o vertiginoso aumento da demanda por vagas do Novotec, projetado para os próximos dois anos, implica que os profissionais do Centro Paula Souza não darão conta de assumir os cursos nas escolas. Em 2020, o Novotec Integrado ofereceu cinco mil vagas; e o Novotec Expresso, 22,6 mil vagas. Já para 2023, ano em que se encerrará o primeiro ciclo de matrículas no NEM, estão previstas 83,4 mil vagas para o Novotec Integrado e mais 100 mil vagas para o Novotec Expresso. Sem fazer investimentos robustos na ampliação da rede própria e do corpo docente, tamanha expansão de vagas só poderá ser realizada pela via da privatização da oferta educacional direta.

Com efeito, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) do estado de São Paulo já havia lançado, em 2020, edital de licitação para a contratação de “empresas e/ou instituições qualificadas para ofertar, ministrar e coordenar cursos de qualificação profissional e certificar estudantes no estado de São Paulo”. A contratação das 7.025 vagas de cursos de 150 horas foi dividida em cinco lotes, compreendendo cursos como “Técnicas de Atendimento”, “Ajudante de Logística” e “Criação de Sites e Plataformas Digitais”. As instituições contratadas foram: Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Associação Sequencial de Ensino e ESSA Educação Profissional S.A., que puderam visitar as escolas estaduais para averiguar as condições de infraestrutura para o cumprimento do contrato.


Ensino médio

Relação de cursos do Novotec Expresso licitados à iniciativa privada pela SDE em 2020.


O edital definia que os cursos deveriam se ministrados por docentes maiores de 18 anos, com ensino médio completo e com experiência profissional comprovada na área do curso. Já vigora na educação paulista, dessa forma, a contratação de professores por “notório saber” anunciada na Lei n. 13.415/201, e amplamente repudiada por entidades do campo educacional como mecanismo indutor da desprofissionalização docente. O também edital estabeleceu que as instituições contratadas podem receber “apenas” 90% do valor total por turma para os casos em que a evasão de alunos durante o curso seja superior a 33%. Diante dessas condições, e a depender dos custos operacionais dessas escolas, a manutenção de taxas de evasão elevadas pode ser financeiramente vantajosa para as empresas contratadas.

Já para os estudantes, a escolha pelos percursos formativos do Novotec Expresso será bem menos vantajosa, porquanto no Novo Ensino Médio esses cursos de curta duração deixam de ser atividades de contraturno e passam oficialmente a substituir a formação escolar regular. Por sua vez, a formação “pré-técnica” do Novotec Integrado, que também substituirá a formação regular, exigirá dos estudantes que quiserem um diploma do ensino técnico passar (pelo menos) mais um ano complementando a formação numa escola técnica.

Considerando que as ETECs paulistas e o Instituto Federal possuem processos seletivos próprios – isto é, não há vagas para todos –, como o governo paulista pretende lidar com a expectativa por uma formação técnica em sentido estrito que a propaganda governamental alimenta nos estudantes? Poderão os jovens egressos do Novotec Integrado acessar as ETECs sem passar pelos vestibulinhos para conseguir o tão sonhado diploma? Haverá salas e laboratórios suficientes nessas escolas?

Isso não parece preocupar os arautos do NEM. Em evento do Movimento Inova, Anna Penido (Instituto Inspirare) afirmou que hoje a formação para o trabalho “demanda mais competências humanas do que simplesmente a operação de apertar botão, apertar parafuso. Então, a gente precisa formar profissionais, não necessariamente um técnico em alguma coisa específica” (05 dez. 2019). Outro entusiasta da desespecialização profissional é Haroldo Rocha, que explicou à audiência do mesmo evento que “durante a vida, que é cada vez mais longa, é possível ter duas, três, quatro profissões diferentes, e a gente tem que se preparar para isso”.

Penido e Rocha resumem bem a concepção de educação profissional do Novotec, que coincide com a concepção mais geral de desprofissionalização docente da reforma do ensino médio. Em vez de ministrarem um ou dois programas num mesmo ano letivo, o NEM paulista obrigará os professores a trabalharem quatro, cinco ou mais programas simultâneos no currículo gourmetizado da Seduc-SP. O salário, as condições de trabalho e a estrutura da carreira permanecerão os mesmos, mas os “desafios” serão sempre maiores. Dá-lhe resiliência para tanto desafio.

A oferta de todos os percursos (aprofundamento ou Novotec) será, como esperado, limitada pela realidade das escolas – infraestrutura, perfil do corpo docente e o número de optantes por itinerário. As direções escolares receberam da Seduc-SP, em formato de planilha, uma “calculadora de itinerários” para simular os impactos da reforma na atribuição de aulas aos professores, auxiliando a tomada da decisão sobre os percursos que serão realmente oferecidos – e que deverá, ainda, ser homologada pelas Diretorias de Ensino a partir de critérios (como de hábito) pouco transparentes. A liberdade de sonhar será especialmente limitada nos 325 municípios paulistas que possuem uma única escola pública de ensino médio.[3]

Quando voltarem plenamente às escolas, os estudantes do ensino médio em São Paulo terão muitas surpresas. Não apenas os seus colegas lhes parecerão estranhos, devido às rápidas transformações dos corpos adolescentes; a sua formação escolar terá sido retalhada pelo governo estadual sem que tenham tido a chance de tomar conhecimento do processo. Os estudantes não demorarão a perceber que a festejada escola self-service, com seu amplo cardápio de possibilidades, não passa de propaganda enganosa, e que a verdadeira liberdade de escolha continuará sendo privilégio dos que, na vida, sempre puderam frequentar restaurantes à la carte.

'Débora Cristina Goulart' é doutora em Ciências Sociais e professora da Unifesp do departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Integra o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e participa da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).

'Fernando Cássio' é doutor em Ciências e professor da UFABC, onde integra o grupo de pesquisa “Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola” (DiEPEE). Integra o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e participa da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).

[1] São parceiros da Frente: Instituto Unibanco, Itaú BBA, Instituto Oi Futuro, Instituto Natura, Movimento pela Base, Instituto Sonho Grande, Fundação Telefonica e Instituto Reúna. Ver: www.consed.org.br/consed/gt-ensino-medio/sobre-a-frente-de-curriculo. Acesso em: 01 ago. 2021.

Fonte: https://diplomatique.org.br/a-farsa-do-ensino-medio-self-service/?fbclid=IwAR0VBNQCc_s1 Emg5y_H0sMl1Fzt7Vi1XWzNuFENv7Bm5MaHk2FyhEjI7MqY