Débora Goulart e Fernando Cássio
25.08.2021
Os estudantes não demorarão a perceber que a verdadeira liberdade de escolha continuará sendo privilégio dos que, na vida, sempre puderam frequentar restaurantes à la carte.
Projeto de vida, emprego dos sonhos, arquiteturas curriculares flexíveis, inovação, empreendedorismo, tecnologias digitais e um extenso menu de percursos de aprofundamento – a escola adaptada às necessidades de seus estudantes e conectada ao mundo contemporâneo. É com essa linguagem a um só tempo vazia e sedutora, herdeira das novíssimas tradições do life coaching e das empresas de facilitação, que os papagaios da reforma do ensino médio tentam desviar a atenção dos estudantes daquilo que o Novo Ensino Médio realmente opera e produz: uma ruptura com a universalidade da escola pública no Brasil e com a busca por uma melhoria efetiva dessa escola.
“Novo Ensino Médio” (NEM) é o nome-fantasia da reforma educacional deflagrada em 2016 pela Medida Provisória n. 746. Naquele ano, mais de mil escolas e universidades foram ocupadas no país por estudantes que contestavam o autoritarismo da reforma – o que, no entanto, não desanimou seus elaboradores e promotores. Meses depois, a indigesta MP foi convertida na Lei n. 13.415/2017, a base daquilo que, hoje, o Ministério da Educação propagandeia como imitação clichê de trailer cinematográfico e que as redes estaduais de ensino empurram a adolescentes de 15 anos com pesquisas de opinião fajutas e mensagens de incentivo ao exercício da “liberdade de escolha” e do “protagonismo juvenil”.
Entre 2019 e 2020, bem longe de escolas e estudantes e sob a coordenação do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) – devidamente patrocinado por fundações e institutos financiados por bilionários – a Frente de Currículo e Novo Ensino Médio construiu junto com as secretarias de educação dos estados o que seria, na visão do grupo, a “arquitetura” curricular de todas as escolas de ensino médio do país nos anos vindouros.[1]
Em junho do ano passado, São Paulo foi o primeiro estado do país a aprovar, por meio de seu Conselho Estadual de Educação, o novo currículo para o ensino médio. Embora, oficialmente, esse seja o marco inicial da implantação dos itinerários formativos que consolidarão o NEM na sua inteireza, a implantação da reforma na rede paulista já vinha sendo levada a cabo de maneira fracionada desde 2019; em fragmentos que – agora juntados – dão a impressão de que tudo está ocorrendo de supetão.
Um desses fragmentos, o Programa Inova Educação, é subproduto de uma parceria estabelecida em 2018 entre a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) e o Instituto Ayrton Senna para adequar o currículo paulista à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Desde 2019, o Inova já compromete 450 horas-aula da grade fixa do ensino médio paulista em disciplinas denominadas “Projeto de Vida” e “Tecnologia”, além de matérias optativas (como “empreendedorismo”, “administração do tempo” etc.). Numa das apresentações do “Movimento Inova” (05 dez. 2019), Haroldo Rocha, então secretário executivo da Seduc-SP, manifestou empolgação ao anunciar que a pasta vinha conversando com uma startup que era “uma espécie de LinkedIn para estudantes”, onde os jovens poderiam gerenciar seus projetos de vida. Escandalizados com o baixo nível das propostas pedagógicas oficiais, muitos profissionais da educação na rede estadual trabalharam para dar um rumo diferente às disciplinas “Inova”, impedindo que seus estudantes fossem obrigados a engolir cinco aulas semanais de autoajuda empresarial durante todo o ensino médio (mais de 14% da carga horária total do NEM).
Outro dos braços constituintes do NEM paulista é o programa Novotec, implantado há dois anos para escoar a demanda por educação profissional na rede estadual sem que o governo tivesse que efetivamente investir na ampliação da oferta de educação técnica e profissional. A solução do Novotec é simplificar: oferecer nas escolas regulares cursos técnicos com carga horária reduzida e que não exijam infraestrutura de laboratórios, parque de equipamentos etc. A gritante diferença no gasto por aluno é o que distingue a “formação profissional” à la Novotec daquela regularmente ofertada nas escolas técnicas (ETECs) do Centro Paula Souza ou nos Institutos Federais. A primeira – mais barata, de qualidade inferior e que não habilita os egressos com um diploma de ensino técnico – é dispensada aos estudantes mais pobres da rede estadual.
As lutas docentes e discentes que teriam o potencial de frear a autoritária Seduc-SP concorrem, no presente momento, com a luta pela vida em famílias destroçadas pela pandemia. Enquanto as comunidades escolares seguem tentando se organizar, o governo paulista junta as peças e avança na implantação do NEM: currículo escolar simplificado, Novotec, Inova Educação e ampliação do Programa Ensino Integral (este, como sempre, para poucos). A baixa adesão ao ensino remoto por parte dos estudantes inviabilizou um debate qualificado na rede de ensino sobre as mudanças radicais trazidas pelo NEM. Mas isso não vexa os administradores da educação paulista. Pelo contrário, o aligeiramento da reforma é de grande ajuda para o governo Doria.
Em primeiro lugar, a reforma funciona como elemento diversionista, permitindo à Seduc-SP saturar o debate público com pautas diferentes daquela que o governo quer evitar: as responsabilidades estatais pela tragédia educacional vivida na maior rede pública do país – estudantes e professores sem internet, escolas sem infraestrutura, baixa execução orçamentária durante a pandemia, manipulação de dados públicos para enganar a população quanto à segurança sanitária nas escolas etc.
Contorcionista, o governo paulista inverte o argumento e diz que a aceleração da reforma é uma boa maneira de combater a evasão escolar durante a pandemia. Dessa forma, Doria e seus correligionários esquivam-se responder por aquilo que lhes cabe na produção desta mesma evasão escolar no último ano e meio ao mesmo tempo em que implantam uma reforma educacional impopular sem serem importunados pelo burburinho de estudantes questionadores.
Dribladas as resistências, o governo paulista convidou os primeiranistas da rede estadual ao exercício da liberdade e da busca pelos sonhos em um questionário online, no qual as preferências de itinerários formativos deveriam ser indicadas por ordem de prioridade a partir de um cardápio com 11 opções. No formulário, os estudantes tinham acesso a uma “breve descrição” de cada itinerário e a uma sucinta “ementa geral”.
Apresentados aos estudantes como percursos de “aprofundamento” da formação geral fundamentada na BNCC, dez dos novos itinerários eram vinculados às chamadas “áreas do conhecimento” – Matemática e suas Tecnologias; Linguagens e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; além de combinações entre elas denominadas itinerários de “aprofundamento integrado”. O décimo-primeiro itinerário – técnico e profissional – é desdobrado em dois percursos: Novotec Integrado (com 21 cursos técnicos de 900 horas) e Novotec Expresso (com cursos profissionalizantes de curta duração). O NEM é vendido aos estudantes como um ensino médio self-service onde, à primeira vista, cada um pode escolher aquilo que mais lhe apetece.
Um ensino simples, fácil e rápido, com matemática, português e rudimentos de inglês como pratos principais e aulas de resiliência e autocontrole de sobremesa. Afinal, o trabalhador do futuro deve aprender a sorrir perante a humilhação e a manter-se permanentemente fora de sua “zona de conforto”, tolerando estoicamente um permanente desconforto. Como acompanhamentos, os jovens comensais do Novo Ensino Médio são convidados a encarar o sarapatel dos itinerários de aprofundamento ou o vistoso bufê do Novotec, com pequenos canapés que não matam a fome, mas são vendidos pelos chefs do governo paulista como o mais opulento dos banquetes.
Gourmetização curricular
Os itinerários de aprofundamento do NEM paulista ostentam nomes como “#SeLigaNaMídia” e “Superar desafios é de humanas”. Em particular, a escolha por este mexidão de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas implica em substituir discussões sobre a formação social brasileira – em que temas como raça e racismo são tratados – por unidades curriculares genéricas como “Muros e pontes: sociedade, tecnologia e informação”.
No recém-inaugurado site do Novo Ensino Médio SP, as ementas gerais dos itinerários ganharam maior detalhamento. Os documentos foram ampliados para explicar, afinal, o que será servido no ensino médio paulista para além do arroz-com-feijão da BNCC. Um exemplo interessante vem do itinerário que integra as áreas de Linguagens e Matemática (e suas respectivas Tecnologias), intitulado “Start! Hora do desafio!”. Os objetivos da Unidade Curricular 6 para o 3º ano do ensino médio são:
EUREKA! RUMO A NOVOS DESAFIOS! Nesta unidade, você vai revisitar o seu Projeto de Vida e identificar os desafios nos campos da vida pessoal e de atuação na vida pública, desenvolvendo sua autonomia e seu protagonismo. Para tanto, você terá oportunidades de elaborar e compartilhar estratégias para participação em processos seletivos, experimentar práticas bilíngues, criar perfis pessoais e profissionais utilizando mídias digitais e interagir no núcleo de estudos de resolução de problemas em matemática. Estas aprendizagens vão colaborar para suas escolhas futuras, tendo em vista a continuidade de seus estudos ou ingresso no mundo do trabalho.
A unidade é trabalhada em três componentes distintos: um sobre leitura e variação linguística, com ênfase em mídias digitais; outro sobre resolução de problemas de matemática, bem tradicional; e um terceiro, “Proficiência e desafios na vida pessoal e pública”, que trata de tudo um pouco – curadoria de informação, planejamento de estratégias para resolver problemas na “vida pessoal e pública”, exames vestibulares e “posicionamento responsável em relação a temas, visões de mundo e ideologias veiculados por textos e atos de linguagem”. Aprenderão os estudantes que essa ode à proficiência como Projeto de Vida, veiculada no texto curricular oficial, é um dos principais alicerces da mentalidade neoliberal? Oxalá as habilidades de leitura preconizadas pelas ementas ajudassem os estudantes a decodificar esse tipo de discurso.
A gourmetização do currículo paulista, no entanto, é operação bem mais profunda do que uma mera alteração na ordem ou nos nomes das coisas. Trata-se de remover do documento curricular, tanto quanto possível, os marcos referenciais aos conhecimentos específicos disciplinares (ditos tradicionais) que são a base da formação dos professores. Assim, como não haverá mais aulas de redação no NEM paulista – renomeadas como “laboratórios de produção jornalística” – elas poderão ser igualmente ministradas, a depender do percurso, por professores de português, inglês, artes e sociologia.
É curioso perceber que os três componentes da unidade curricular “Eureka!” são totalmente independentes um do outro, e facilmente poderiam ser tratados em aulas regulares de matemática, português e orientação de estudos (ou Projeto de Vida, como queiram). Mas para que facilitar, se se pode dificultar? É que um dos grandes objetivos ocultos da reforma – criticado pelo campo educacional em peso desde antes de 2016 – é induzir a desprofissionalização dos professores do ensino médio. O NEM permite aos governos “resolverem” o problema histórico da falta de professores licenciados na área em que lecionam – Física, Química, Sociologia e Filosofia são exemplos clássicos – por meio da supressão da demanda. Em São Paulo, a solução encontrada foi gourmetizar o currículo a ponto de torná-lo irreconhecível aos professores.
Em todos os itinerários propostos pela Seduc-SP, fundamentos científicos disciplinares construídos ao longo de décadas e uma vasta produção do conhecimento nas áreas do ensino e da didática das ciências humanas e naturais foram descartados e substituídos por uma miscelânea de modismos educacionais calcados em resolução de problemas, trabalho em equipe, elaboração/realização de produtos e habilidades socioemocionais – sempre na dimensão mais utilitária possível.
No Novo Ensino Médio, “Ciências Humanas e Sociais” só se forem “Aplicadas”. “Ciências da Natureza”, “Linguagens” e “Matemática” só em intersecção com “suas Tecnologias”. Se o Mercado aponta que designers de jogos ou operadores de planilhas eletrônicas estão em falta, o ensino médio público suprirá essa demanda por mão-de-obra. Já se esses trabalhadores terão o repertório necessário para compreender a lógica das planilhas ou para criar o conteúdo artístico dos jogos e aplicativos, este problema não mais competirá à escola pública. Dirão os mais cínicos que foram os próprios estudantes, no pleno exercício do seu protagonismo, que escolheram trocar a sua formação escolar geral por cursinhos profissionalizantes precários.
Uma nova educação política
Na prática, como vimos, o maravilhoso exercício da liberdade na rede estadual paulista se resumiu ao preenchimento, pelos estudantes, de um singelo questionário de “manifestação de interesse”. Centenas de milhares de adolescentes de 15 anos escolheram seus percursos escolares no cardápio da Seduc-SP sem terem acesso a informações minimamente qualificadas. Muitos foram orientados à distância por seus professores, igualmente excluídos do debate e que ainda não sabem se terão aulas para ministrar no ano que vem. A Seduc-SP chegou a organizar algumas lives sobre a implantação do NEM, mas manteve as caixas de comentários desativadas, impedindo que gestores escolares e professores tirassem dúvidas ou registrassem suas observações.
Foi só depois do encerramento da consulta na qual, segundo o governo, 89% dos estudantes do ensino médio paulista definiram seus itinerários em uma lista de prioridades, que a Seduc-SP lançou – enfim – o site oficial do NEM com a matriz curricular dos itinerários formativos e as ementas detalhadas. Apesar disso, o governo de São Paulo ainda não publicizou a matriz da formação geral básica de 1.800 horas, de modo que até o momento não se sabe se aquilo que está ausente dos percursos de aprofundamento fará parte da formação comum.
História do Brasil, por exemplo, é um dos assuntos que simplesmente não aparecem nas 217 páginas do ementário dos percursos de aprofundamento. Considerando todo o conjunto dos itinerários do NEM paulista, incluindo todos os percursos ligados à área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, um único componente do percurso integrado “Cultura em movimento: diferentes formas de narrar a experiência humana” (Linguagens + Ciências Humanas) traz aquilo que mais se aproxima de um ensino de história do Brasil. Trata-se do componente “Ressignificando a formação do povo brasileiro”, que pode ser igualmente ministrado por professores de Sociologia, Filosofia ou História:
Patrimônio; / identidades e territorialidades na constituição da memória; / povos tradicionais; cultura material e imaterial; / formação da sociedade brasileira e seus legados socioculturais; / condições socioespaciais e o lugar dos saberes tradicionais na construção da memória.
Termos como “racismo”, “ditadura”, “autoritarismo” – assim como “machismo”, “homofobia”, “transfobia”, “sexualidade” e muitos outros – simplesmente não aparecem em nenhuma das ementas. Já o termo “raça”, aparece uma única vez no contexto do componente “O corpo e o padrão social”, do itinerário “Cultura em movimento”
Exclusões e inclusões em grupos sociais por meio de marcadores da diferença: estabelecidos e outsiders; subsociedades; pessoas com deficiências; raça e etnia; masculinidades e feminilidades.
Além desta única referência indireta a debates de gênero no ensino médio, o termo “gênero” aparece relacionado ao componente “Mudanças sociais, demografia e trabalho” (do percurso integrado “#quem_divide_multiplica”), que faz referência a relações de gênero e étnico-raciais no mundo do trabalho. Também é aqui que aparece uma das duas únicas referências a “escravidão” em todos os percursos – e sempre no contexto de discussões sobre trabalho.
O tema do trabalho escravo contemporâneo também aparece no componente “Inovação e o mundo do trabalho”, que integra um percurso de aprofundamento alternativo para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: “Liderança e Cidadania”.
Este novo itinerário não constava do formulário distribuído aos alunos entre junho e julho, tendo sido lançado juntamente com as ementas detalhadas no site do NEM paulista. Os proponentes contemporizam o lançamento tardio, e justificam que caso a equipe escolar tenha interesse de desenvolver a segunda opção (…), deve haver um diálogo prévio com os estudantes que cursarão este Itinerário. A proposta do Novo Ensino Médio permite que as unidades escolares, diretorias de ensino e outras organizações da sociedade civil construam propostas de itinerários formativos.
A organização da sociedade civil que construiu o referido itinerário é o Instituto Politize!, organização especializada em programas escolares de educação política. Segundo a ementa, o estudante que cursar o percurso “Liderança e Cidadania”
terá a oportunidade de ampliar e potencializar ações políticas, direcionadas para iniciativas para atuar na esfera pública, privada e não governamentais, tais como: Movimentos sociais, entidades beneficentes, Organizações Não Governamentais (ONGs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), além de outras formas de associações civis de impacto social.
O Politize! tem como missão “formar uma geração de cidadãos conscientes e comprometidos com a democracia (…) levando educação política para milhões de pessoas” – e veicula conteúdos relacionados a desigualdades sociais, participação política, direitos humanos, polarização política e defesa da democracia. Embora a organização afirme o “respeito pela pluralidade de ideias, crenças e posições”, sua linha pedagógico-editorial é claramente a dos think tanks liberais.
A despeito da forma e do conteúdo do itinerário “Liderança e Cidadania” – pessimamente redigido e um tanto fora da realidade do ensino médio – é reconfortante saber que o governo de São Paulo apoia a existência de programas de educação política na rede estadual, e que as escolas e outras organizações que também investem em programas de educação política – os movimentos sociais, por exemplo – poderão desenhar percursos de aprofundamento para serem implementados no Novo Ensino Médio. Seria uma inflexão política do governo paulista em relação a 2019, quando João Doria mandou recolher apostilas de 300 mil estudantes do ensino fundamental para interditar debates sobre gênero e gravidez na adolescência? Provavelmente não.
Ao mesmo tempo em que as discussões sobre raça e gênero estão circunscritas a apenas três componentes curriculares (dois sobre trabalho e um sobre corpo), as expressões “ONGs” e “OSCIPs” aparecem, respectivamente, cinco e seis vezes ao longo do ementário (em diferentes percursos formativos). E mais: “Empreendedorismo” (e suas variações[2]), 32 ocorrências; “Projeto de Vida”, 30 ocorrências; mercado, 12 ocorrências; “consumo” (e suas variações), 45 ocorrências; “curadoria”, 21 ocorrências; marketing ou publicidade (e suas variações), 35 ocorrências. A expressão “desigualdade social” (e também “igualdade de gênero”) aparece na esteira das citações aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, aos quais o currículo gourmet está supostamente vinculado. Já a expressão “classe social”, não aparece nenhuma vez.
Formação profissional rebaixada
Para os apóstolos do Novo Ensino Médio, é a escola ultrapassada, rígida e desinteressante a grande responsável pelas elevadas taxas de evasão e pela existência de uma massa de jovens recém-saídos do ensino médio que não trabalham e nem estão matriculados em instituições de ensino superior – a geração nem-nem. A reforma do ensino médio, portanto, é moralmente justificada como a tábua de salvação para uma geração de jovens que, sem grandes perspectivas na vida, precisa de uma escola mais simples e atraente, voltada para a vida prática e para o aumento da produtividade no trabalho. É claro que quem formula essas justificativas pertence a uma outra geração nem-nem: aquela que nunca estudou ou trabalhou em escolas públicas e cujos filhos adolescentes passam longe dessas mesmas escolas.
A cornucópia dos itinerários formativos ditos “acadêmicos” (os percursos de aprofundamento) é voltada à parcela menor dos estudantes das redes públicas que eventualmente ingressarão em instituições de ensino superior. Isso, é claro, a depender daquilo que cada um venha a perder quando optar por determinado percurso. Espera-se que a maioria – aqueles já considerados pelo governo estadual como não tendo condições de cursar uma universidade – opte pelos percursos profissionalizantes rebaixados do Novotec.
Embora a propaganda oficial tente associar o Novotec a instituições de referência como as ETECs do Centro Paula Souza, insistindo na ideia de uma formação profissional em sintonia com as demandas do mundo do trabalho, o governo paulista evita tocar no assunto mais delicado: o vertiginoso aumento da demanda por vagas do Novotec, projetado para os próximos dois anos, implica que os profissionais do Centro Paula Souza não darão conta de assumir os cursos nas escolas. Em 2020, o Novotec Integrado ofereceu cinco mil vagas; e o Novotec Expresso, 22,6 mil vagas. Já para 2023, ano em que se encerrará o primeiro ciclo de matrículas no NEM, estão previstas 83,4 mil vagas para o Novotec Integrado e mais 100 mil vagas para o Novotec Expresso. Sem fazer investimentos robustos na ampliação da rede própria e do corpo docente, tamanha expansão de vagas só poderá ser realizada pela via da privatização da oferta educacional direta.
Com efeito, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) do estado de São Paulo já havia lançado, em 2020, edital de licitação para a contratação de “empresas e/ou instituições qualificadas para ofertar, ministrar e coordenar cursos de qualificação profissional e certificar estudantes no estado de São Paulo”. A contratação das 7.025 vagas de cursos de 150 horas foi dividida em cinco lotes, compreendendo cursos como “Técnicas de Atendimento”, “Ajudante de Logística” e “Criação de Sites e Plataformas Digitais”. As instituições contratadas foram: Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Associação Sequencial de Ensino e ESSA Educação Profissional S.A., que puderam visitar as escolas estaduais para averiguar as condições de infraestrutura para o cumprimento do contrato.
Ensino médio
Relação de cursos do Novotec Expresso licitados à iniciativa privada pela SDE em 2020.
O edital definia que os cursos deveriam se ministrados por docentes maiores de 18 anos, com ensino médio completo e com experiência profissional comprovada na área do curso. Já vigora na educação paulista, dessa forma, a contratação de professores por “notório saber” anunciada na Lei n. 13.415/201, e amplamente repudiada por entidades do campo educacional como mecanismo indutor da desprofissionalização docente. O também edital estabeleceu que as instituições contratadas podem receber “apenas” 90% do valor total por turma para os casos em que a evasão de alunos durante o curso seja superior a 33%. Diante dessas condições, e a depender dos custos operacionais dessas escolas, a manutenção de taxas de evasão elevadas pode ser financeiramente vantajosa para as empresas contratadas.
Já para os estudantes, a escolha pelos percursos formativos do Novotec Expresso será bem menos vantajosa, porquanto no Novo Ensino Médio esses cursos de curta duração deixam de ser atividades de contraturno e passam oficialmente a substituir a formação escolar regular. Por sua vez, a formação “pré-técnica” do Novotec Integrado, que também substituirá a formação regular, exigirá dos estudantes que quiserem um diploma do ensino técnico passar (pelo menos) mais um ano complementando a formação numa escola técnica.
Considerando que as ETECs paulistas e o Instituto Federal possuem processos seletivos próprios – isto é, não há vagas para todos –, como o governo paulista pretende lidar com a expectativa por uma formação técnica em sentido estrito que a propaganda governamental alimenta nos estudantes? Poderão os jovens egressos do Novotec Integrado acessar as ETECs sem passar pelos vestibulinhos para conseguir o tão sonhado diploma? Haverá salas e laboratórios suficientes nessas escolas?
Isso não parece preocupar os arautos do NEM. Em evento do Movimento Inova, Anna Penido (Instituto Inspirare) afirmou que hoje a formação para o trabalho “demanda mais competências humanas do que simplesmente a operação de apertar botão, apertar parafuso. Então, a gente precisa formar profissionais, não necessariamente um técnico em alguma coisa específica” (05 dez. 2019). Outro entusiasta da desespecialização profissional é Haroldo Rocha, que explicou à audiência do mesmo evento que “durante a vida, que é cada vez mais longa, é possível ter duas, três, quatro profissões diferentes, e a gente tem que se preparar para isso”.
Penido e Rocha resumem bem a concepção de educação profissional do Novotec, que coincide com a concepção mais geral de desprofissionalização docente da reforma do ensino médio. Em vez de ministrarem um ou dois programas num mesmo ano letivo, o NEM paulista obrigará os professores a trabalharem quatro, cinco ou mais programas simultâneos no currículo gourmetizado da Seduc-SP. O salário, as condições de trabalho e a estrutura da carreira permanecerão os mesmos, mas os “desafios” serão sempre maiores. Dá-lhe resiliência para tanto desafio.
A oferta de todos os percursos (aprofundamento ou Novotec) será, como esperado, limitada pela realidade das escolas – infraestrutura, perfil do corpo docente e o número de optantes por itinerário. As direções escolares receberam da Seduc-SP, em formato de planilha, uma “calculadora de itinerários” para simular os impactos da reforma na atribuição de aulas aos professores, auxiliando a tomada da decisão sobre os percursos que serão realmente oferecidos – e que deverá, ainda, ser homologada pelas Diretorias de Ensino a partir de critérios (como de hábito) pouco transparentes. A liberdade de sonhar será especialmente limitada nos 325 municípios paulistas que possuem uma única escola pública de ensino médio.[3]
Quando voltarem plenamente às escolas, os estudantes do ensino médio em São Paulo terão muitas surpresas. Não apenas os seus colegas lhes parecerão estranhos, devido às rápidas transformações dos corpos adolescentes; a sua formação escolar terá sido retalhada pelo governo estadual sem que tenham tido a chance de tomar conhecimento do processo. Os estudantes não demorarão a perceber que a festejada escola self-service, com seu amplo cardápio de possibilidades, não passa de propaganda enganosa, e que a verdadeira liberdade de escolha continuará sendo privilégio dos que, na vida, sempre puderam frequentar restaurantes à la carte.
'Débora Cristina Goulart' é doutora em Ciências Sociais e professora da Unifesp do departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Integra o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e participa da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).
'Fernando Cássio' é doutor em Ciências e professor da UFABC, onde integra o grupo de pesquisa “Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola” (DiEPEE). Integra o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e participa da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).
[1] São parceiros da Frente: Instituto Unibanco, Itaú BBA, Instituto Oi Futuro, Instituto Natura, Movimento pela Base, Instituto Sonho Grande, Fundação Telefonica e Instituto Reúna. Ver: www.consed.org.br/consed/gt-ensino-medio/sobre-a-frente-de-curriculo. Acesso em: 01 ago. 2021.
Fonte: https://diplomatique.org.br/a-farsa-do-ensino-medio-self-service/?fbclid=IwAR0VBNQCc_s1 Emg5y_H0sMl1Fzt7Vi1XWzNuFENv7Bm5MaHk2FyhEjI7MqY
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