terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Press Release - Ano 4 - nº 065 – 21 de fevereiro de 2017

Editorial
   Leitura Política: a retomada do ritmo é necessária http://bit.ly/2lsKRHI

Leitura Política
   Classe média foi enganada pela mídia que fez o 'trabalho sujo' do golpe http://bit.ly/2kJbBql

Entrevista
   Edgar Morin: é preciso educar os educadores http://bit.ly/2m5wvjF

Ensaios
   A elite brasileira suicida-se http://bit.ly/2m9OuT2

Política
   A era do humanismo está terminando http://bit.ly/2kJ0LAK

Debates
   O ministro que se confundiu a si mesmo com um prémio http://bit.ly/2lJsuBa

   A palavra não é amor, é dengo http://bit.ly/2mjoNif

Notícias
   Maioria dos países descumpriu meta de reduzir analfabetismo, diz UNESCO http://bit.ly/2lJw8Lc

   Project Gutenberg disponibiliza mais de 53 mil livros gratuitos http://bit.ly/2mjdjuX

   Crime e Castigo é título mais lido em prisões de segurança máxima http://bit.ly/2m5wRqA

   Turma da Mônica homenageia uma das mais influentes escritoras negras do Brasil
   http://bit.ly/2lstrv3

   Bibliotecas usam tablets para aproximar crianças pequenas da leitura http://bit.ly/2lslN3D

Imagem
   Grafiteiro recupera pintura lavando a tinta e é preso em SP http://bit.ly/2kWQbRL


Antonio Carlos Ribeiro
Universidade Federal do Tocantins/PPGL
Editor

Se desejar ler os demais Press Release, clique no blog Leituras http://bit.ly/1E35ugR

Editorial - Leitura Política: a retomada do ritmo é necessária

A agudização das crises resultantes do golpe determina atitudes de mudança e enfrentamento, já que não se pode contar com a mídia e com os impostores que querem permanecer no poder, mesmo empurrando 3 milhões de brasileiros para a miséria até o fim deste ano.

Esse número do Leituras ajuda a entender como a classe média foi usada pela mídia para fazer o trabalho sujo - ainda que contra si - fato que tem sido visto como suicídio desse grupo, denunciam Ruben Naveira e o sociólogo Jessé de Souza.

Edgar Morin nos ensina que é preciso educar os professores. E o historiador e pensador pós-colonial Achille Mbembe afirma que a era do humanismo está terminando. E as culturas de origem africana redefinem as relações afetivas, dizendo se tratar de 'dengo' e não de 'amor', palavra imposta pelo mundo ocidental.

E, por último, as notícias sobre o que acontece  nas bibliotecas, nas salas de aula e nos avanços no campo da leitura.

Boa leitura!

Maioria dos países descumpriu meta de reduzir analfabetismo, diz UNESCO

Ana Carolina Moreno

De 139 países participantes de um levantamento de dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), só 39 (ou 28% do total) comprovaram ter cumprido a meta 4 do programa Educação para Todos, que previa a redução de 50% nos índices de analfabetismo até 2015. O Brasil está no grupo de 100 países que descumpriram a meta.

Na terceira edição do Relatório Global sobre Aprendizagem de Adultos e Educação (Grale III, na sigla em inglês), divulgada nesta quarta-feira (15), a Unesco afirmou que, segundo as informações enviadas pelos países, o mundo tinha, em 2015, 758 milhões de adultos sem capacidade de ler e escrever uma simples frase.

Desses, 115 milhões são jovens, ou seja, tinham entre 15 e 24 anos de idade. Isso quer dizer que cerca de 85% dos analfabetos no mundo pertencem a gerações distantes de idades consideradas propícias para a vida escolar e, portanto, que oferecem mais obstáculos para a aprendizagem.

Educação pela Leitura

O documento se baseia em pesquisas de monitoramento respondidas por 139 estados-membros da Unesco, "com a finalidade de elaborar um retrato diferenciado da situação global da aprendizagem e da educação de adultos (AEA)". Segundo o relatório, foram avaliados os progressos dos países que assinaram, em 2009, o Marco de Ação de Belém, que inclui propostas de políticas em três áreas: saúde e bem-estar; emprego e mercado de trabalho; e vida social, cívica e comunitária.

Apesar do fracasso no cumprimento da meta, 85% dos países que participaram do levantamento dizem que " a alfabetização e as habilidades básicas eram uma prioridade principal de seus programas de aprendizagem e educação de adultos", e 46% deles disseram que "o investimento inadequado ou mal direcionado é um fator importante que impede a aprendizagem e a educação de adultos de causarem impacto maior na saúde e no bem-estar".


Mulheres sofrem mais

A falta de educação de qualidade para jovens e adultos afeta mais as mulheres do que os homens. Segundo o relatório da Unesco, "a maioria (63%) dos adultos com baixas habilidades de alfabetização é formada por mulheres". Além disso, os dados mostram que a taxa de meninas fora da escola é mais alta que a de meninos: uma em cada dez meninas (9,7%) não está na educação formal nos 139 países participantes da pesquisa, enquanto a taxa de meninos fora da escola é de 8,3%.
O órgão afirma que "a educação é essencial para a dignidade e os direitos humanos, e é uma força para o empoderamento" e que "a educação de mulheres também tem grandes impactos nas famílias e na educação das crianças, influenciando o desenvolvimento econômico, a saúde e o engajamento cívico de toda a sociedade".

15% dos analfabetos de 139 países são jovens


Educação para Todos

Desde 2000, a Unesco monitorou os dados enviados pelos seus 195 países-membros relacionados à educação para acompanhar a evolução das políticas rumo ao cumprimento de seis metas:
Expandir a educação e os cuidados na primeira infância, especialmente para as crianças mais vulneráveis.

Garantir que em 2015 todas as crianças, especialmente meninas, crianças em situações difíceis e crianças pertencentes a minorias étnicas, tenham acesso a uma educação primária de boa qualidade, gratuita e obrigatória, além da possibilidade de completá-la.

Assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam satisfeitas mediante o acesso eqüitativo à aprendizagem apropriada e a programas de capacitação para a vida.

Atingir, em 2015, 50% de melhoria nos níveis de alfabetização de adultos, especialmente para as mulheres, e igualdade de acesso à educação fundamental e permanente para todos os adultos.

Eliminar, até 2005, as disparidades existentes entre os gêneros na educação primária e secundária e, até 2015, atingir a igualdade de gêneros na educação, concentrando esforços para garantir que as meninas tenham pleno acesso, em igualdade de condições, à educação fundamental de boa qualidade e que consigam completá-la.

Melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar a excelência de todos, de modo que resultados de aprendizagem reconhecidos e mensuráveis sejam alcançados por todos, especialmente em alfabetização, cálculo e habilidades essenciais para a vida.


Em abril de 2015, o órgão da ONU anunciou que Cuba foi o único país latino-americano a cumprir todas as seis metas.

O Brasil, por sua vez, só cumpriu duas das seis metas: a segunda, sobre educação primária, e a quinta, sobre a igualdade de gênero. Porém, o governo federal contestou as informações da Unesco e afirmou que também cumpriu a primeira meta, que fala sobre os cuidados com a educação na primeira infância.

Fonte: G1 - 16.02.2017

Project Gutenberg disponibiliza mais de 53 mil livros gratuitos

Lucas Brandão

Há mais de quatro décadas que o Project Gutenberg vem funcionando no meio digital. Esta iniciativa voluntária do americano Michael S. Hart visava a criação e distribuição de ebooks (Michael S. Hart é apontado como o criador dos livros digitais). Dispondo de um acervo com mais de cinquenta e três mil itens, a maior parte das obras existentes são de domínio público e vão ao encontro dos objetivos de promover, para qualquer público, a diversidade literária e científica existente.


A designação do projeto remete para a figura de Johannes Gutenberg, criador da prensa amovível e, desta forma, promotor de um novo método de difusão de conhecimento e de cultura por todo o mundo. Obras como a Bíblia foram assim propagadas pelo mundo, o que permitiu consciencializar e instruir bastantes países e dar o mote para a idealização e formalização do Iluminismo. A prensa criada por este alemão tornou-se fulcral na edificação de um mundo com muito maior acesso à informação e ao conhecimento, estes outrora limitados às classes assalariadas e para os eclesiásticos.

Os ficheiros estão disponibilizados em diversos formatos, incluindo em texto livre, HTML, PDF e até em EPUB. Com a maior parte dos ebooks a estar redigida em língua inglesa, há, apesar disso, também uma grande quantidade redigidos em língua portuguesa. Diversos autores, tais como Fernando Pessoa, Eça de Queirós ou Cesário Verde, figuram no top-100 de transferências em português a partir deste repositório cultural. Para a consolidação da extensa biblioteca digital, existem projetos afiliados de cariz regional e/ou nacional que disponibilizam alguns dos trabalhos do seu espectro geográfico; para a retificação de eventuais erros das obras digitalizadas, existe uma ligação com uma comunidade denominada Distributed Proofreaders.

O Project Gutenberg é de acesso livre e público e encontra-se também posicionado nas redes sociais. Para a sustentação do projeto, existe a possibilidade de se efetuar doações monetárias, isto para além das relações existentes com diferentes instituições que credibilizam toda esta iniciativa, que leva já quase meio século de existência.

Transcrito de Comunicade de Cultura e Arte - 21.01.2017

Crime e Castigo é título mais lido em prisões de segurança máxima

A memória de um crime e as possibilidades de redenção costuram a trama de “Crime e Castigo”. O clássico da literatura mundial, escrito pelo russo Fiódor Dostoiévski em 1866, é o título de mais lido por presos das penitenciárias de segurança máxima do Brasil. O ranking do Ministério da Justiça tem base no projeto Remição pela Leitura, que concede redução de quatro dias de pena a cada livro lido e resenhado.


Cada detento pode ler (e escrever sobre) até 12 livros ao ano, o que representa 48 dias a menos na sentença. Segundo dados do ministério, divulgados colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S. Paulo, desde 2010, 6.004 resenhas foram escritas nas penitenciárias de Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Norte e Rondônia.

A lista mais procurados nas bibliotecas, na categoria filosofia, é vice-liderada por “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, vencedor do Nobel de Literatura em 1998. Na obra, o escritor português traça “imagem aterradora e comovente de tempos sombrios”. Terceira colocada entre as obras filosóficas é “Através do Espelho”, de Jostein Gaarder. Do mesmo autor de “O mundo de Sofia”, o livro conta a história de “Cecília Skotbu, uma menina que vive intensamente, mesmo com o diagnóstico de câncer”.

“A Menina Que Roubava Livros” também integra a lista de preferidas. A obra de Markus Zusak apresenta a menina Liesel Meminger, em plena Segunda Guerra. Ladra de livros, ela encanta a Morte, que “rastreia as pegadas dela de 1939 a 1943”.

Transcrito de Notícias ao Minuto - 15/02/2017

Turma da Mônica homenageia uma das mais influentes escritoras negras do Brasil

Uma postagem feita nesta segunda-feira na página da Turma da Mônica no Facebook movimentou as redes em torno de uma figura ainda pouco lembrada na história nacional. Os personagens de Mauricio de Sousa homenagearam Carolina de Jesus (1914-1977), uma das primeiras e mais relevantes escritoras negras do Brasil.


Moradora da favela do Canindé, em São Paulo, Carolina trabalhava como catadora e registrava o cotidiano de sua comunidade em cadernos encontrados no lixo. No final da década de 1950, foram descobertos mais de 20 diários da escritora, que mais tarde deram origem ao livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. A publicação foi recusada por diferentes editoras na época, e acabou sendo impressa apenas em 1960.

A iniciativa faz parte do projeto Donas da Rua, lançado pela Turma da Mônica ainda no ano passado em parceria com a ONU Mulheres. A ideia é reforçar a autoestima de meninas de todo o Brasil e a defesa de seus direitos. A iniciativa já destacou outras brasileiras importantes, como a professora Dorina Nowill (1919-2010), pedagoga cega e uma das maiores ativistas pela inclusão de pessoas com deficiência visual no Brasil.

“Conhecer e honrar as guerreiras do passado é uma das formas de cultivar um futuro mais justo para as meninas. E nesse quesito, não temos nem o que dizer sobre Carolina de Jesus. Dona da Rua nata!”, destaca a publicação que já foi compartilhada quase 5 mil vezes, e movimentou as redes sociais no começo da semana.

Para acompanhar as homenagens do projeto, basta seguir a hashtag #DonasdaRua ou acessar o site da Turma.

Transcrito de Zero Hora - 14.02.2017

Bibliotecas usam tablets para aproximar crianças pequenas da leitura

Adriano Vizoni

As bibliotecas São Paulo e Villa-Lobos, no parque homônimo, incluíram no começo deste mês o uso de tablets em atividades de iniciação à leitura, para crianças de seis meses a quatro anos.


Os aparelhos se juntam aos livros de papel, bonecos e outros itens usados nas sessões, gratuitas, chamadas de Lê no Ninho.

Nelas, os educadores apresentam as histórias de livros com apoio de fantoches, de canções e da interação com tablets, que podem ser usados para emitir sons de animais, por exemplo, ou apresentar a história em versão e-book.

“A criança vai interagir com a tela, mas junto com seu cuidador. Não convém largar um instrumento desse com uma criança pequena”, afirma Pierre Ruprecht, diretor da SP Leituras, entidade que administra as duas bibliotecas.

A presença de um familiar é importante para criar um momento acolhedor. “A formação de leitores se dá na pré-infância, por meio do envolvimento afetivo positivo durante a contação de histórias”, diz Ruprecht.

Fonte: Folha de S.Paulo - 19.02.2017

Classe média foi enganada pela mídia que fez o 'trabalho sujo' do golpe

19.01.2017

Jornal GGN - O sociólogo e pesquisador Jessé Souza rebateu em sua página no Facebook um artigo publicado por Celso Rocha de Barros na Folha de S. Paulo nesta semana, questionando a teoria de que a classe média, na verdade, usou a Lava Jato de pretexto para apoiar o golpe quando, na verdade, o motivo velado que a levou às ruas das principais capitais do País foi o ódio contra classes mais desfavorecidas, alimentado paulatina e discretamente pela grande mídia.

Para Jessé, a classe média não percebeu "a distorção sistemática da realidade" praticada pelos veículos da grande mídia que ajudaram a articular o golpe do impeachment para defender interesses das camadas mais ricas da sociedade. 

Jessé atacou, ainda, o fato de Celso ter deixado o fator mídia de lado ao sustentar que a classe média não é manipulável nem agiu de maneira inconsciente ao protestar contra o fim da corrupção do PT.


"O silêncio de Celso é sintomático e expressa a mentira e a fraude mais importante para que o golpe tenha acontecido e esteja hoje realizando a maior regressão histórica em todas as dimensões da vida que este pais jamais viu: a negação do papel da mídia como partido político das elites internas e externas que se uniram para rapina da riqueza de todos em favor de meia dúzia."

"O papel manipulador da mídia depende precisamente de que ela não seja percebida como um 'ator social com interesses próprios'. Quando ele se pergunta, candidamente, talvez motivado por uma dúvida autêntica, por que o ressentimento da fração, mais conservadora da classe média contra a pequena ascensão social dos mais pobres não teria se mostrado antes, a ausência de qualquer referência ao papel da mídia é o dado principal e sem dúvida mais curioso", diz Jessé.

"A classe média foi feita de tola e trocou a sacralização de seu ódio covarde e canalha contra os mais frágeis que ela explora por uma exploração agora sem precedentes de toda a população inclusive dela própria classe média. Agora ela vai ter que pagar caro pela universidade, pelo plano de saúde e agora também pela própria aposentadoria privada", disparou.

O GGN reproduz abaixo:

Jessé Souza

Meu colega Luis Felipe Miguel iniciou um debate interessante sobre a coluna de 16/01/17 de Celso Rocha de Barros no jornal “Folha de São Paulo”. Celso critica na sua coluna o que ele chama de explicação dominante da esquerda para o golpe de 2016. Essa explicação se basearia em três teses, sendo que duas dessas três teses ele retira de meu livro “ A Radiografia do golpe” de agosto de 2016. São elas a denúncia do golpe como fruto da articulação entre elite do dinheiro, mídia e Judiciário; e a tese do ressentimento da classe média contra as políticas de ajuda aos mais pobres que teria permitido usá-la, contra seus melhores interesses, como massa de manobra nas ruas e como “base popular” do golpe. Na sua coluna, o autor escolhe criticar apenas a tese do ressentimento. Celso não nega que o ressentimento social exista, mas ele acha que essa tese precisaria de “evidências empíricas” para ser efetivamente válida.

Celso parece esquecer que as pessoas na vida real têm pouco apreço pela verdade e muito apreço para a legitimação da vida que levam qualquer que seja ela. Celso parece esquecer, também, que o mundo social e subjetivo não são transparentes para as pessoas e que seria tão ridículo perguntar a um coxinha da paulista se ele está ali porque as distâncias com os miseráveis foram um pouco diminuídas, sendo o combate a corrupção mero pretexto, quanto perguntar ao homofóbico se ele percebe que sua violência aos homossexuais só pode ser explicada pela necessidade psíquica de silenciar seu próprio homossexualismo. A “verificação de uma tese de comportamento social” se dá sempre pela análise do comportamento objetivo e não pela legitimação consciente. Senão vejamos. Por que foram um milhão de pessoas – 80% da classe média – à avenida Paulista contra a corrupção supostamente só do PT e literalmente ninguém saiu ás ruas quando os principais políticos do PSDB foram todos eles, sem exceção, envolvidos em delações de desvios milionários? Por que os dois pesos e as duas medidas?

Mas o mais interessante ainda está por vir. Celso se pergunta a certa altura: e se o ressentimento tiver existido, por que ele não levou a classe média descontente às ruas no momento do auge da mobilidade social das camadas populares? A análise de Celso é toda construída sob o pressuposto não apenas de que as pessoas agem com total consciência de seus motivos reais, como também, de que suas ações e opiniões não são mediadas por ninguém. Sua pergunta parece revelar uma dúvida autêntica: ora, se a classe média se ressentiu, por que não teria mostrado, então, este ressentimento antes? Bingo! O coxinha leitor de Celso de Barros deve ter se sentido aliviado e pensado:

“Esses esquerdopatas e suas invencionices chavistas e bolivarianas, ressentido é ele que perdeu a mamata do petrolão”.

O grande e ensurdecedor silêncio na análise de Celso é a percepção da mídia como mediador neutro e imparcial. Existiria, assim, um tipo muito especial de empresa no capitalismo: aquela que não joga tudo que tem para maximizar seus lucros, mas sim para esclarecer de modo anódino, correto e sóbrio seu consumidor telespectador/leitor.

Celso fala do ressentimento e de sua transformação em ação coletiva como se este se desse espontaneamente, por um acordo secreto entre as pessoas que foram à avenida Paulista protestar. Tudo se dá como se num belo dia, todos os coxinhas resolvessem ligar um para o outro e combinar um passeio de protesto na avenida Paulista. Eles não foram motivados nem manipulados por ninguém. Perceba leitor, que Celso é sociólogo e doutor, formado em uma das melhores universidades inglesas. Se especialistas cometem essa ingenuidade, o que dizer dos leigos? Os leitores dos jornais e das televisões podem ser ótimos médicos, enfermeiros, advogados ou mecânicos, mas eles não compreendem a complexidade da realidade social assim como não percebem – do mesmo modo que o Doutor em Sociologia Celso Barros – as formas de violência simbólica e de distorção sistemática da realidade às quais estão expostos.

O silêncio de Celso é sintomático e expressa a mentira e a fraude mais importante para que o golpe tenha acontecido e esteja hoje realizando a maior regressão histórica em todas as dimensões da vida que este pais jamais viu: a negação do papel da mídia como partido político das elites internas e externas que se uniram para rapina da riqueza de todos em favor de meia dúzia. O papel manipulador da mídia depende precisamente de que ela não seja percebida como um “ator social com interesses próprios”. Quando ele se pergunta, candidamente, talvez motivado por uma dúvida autêntica, por que o ressentimento da fração, mais conservadora da classe média contra a pequena ascensão social dos mais pobres não teria se mostrado antes, a ausência de qualquer referência ao papel da mídia é o dado principal e sem dúvida mais curioso.

Ora, foi a mídia que dignificou e sacralizou o incômodo mesquinho e venal da fração conservadora da classe média primeiro com a necessidade de partilhar espaços sociais antes restritos a ela, como aeroportos e “shopping centers” e, depois, o “medo irracional” da competição por seus salários e prestígio social com a política de cotas sociais e bolsas nas universidades. O que aconteceu foi uma “sacralização moral” do ódio de classe – contra uma classe de “escravos modernos” desprezada, abandonada e percebida como mão de obra farta e barata para seu uso e abuso – que foi transformado em “indignação moral” contra a corrupção.

Antes da criminosa manipulação midiática - que hoje atolou o pais em ódio e obscurantismo – esse ódio de classe não era de expressão “legítima”. Em uma sociedade ainda que superficialmente cristã como a nossa, quem odeia os mais frágeis e os mais fracos é um simples canalha. Foi o trabalho da mídia que transformou o canalha em “herói nacional”, ao conferir o pretexto, o discurso e o herói de carne e osso (o juiz Sérgio Moro) da grande farsa que possibilitou transmutar o ódio ao PT e a sua obra de combate à pobreza em cruzada moral contra a corrupção.

E não é necessária nenhuma “survey” para comprovar isso caro colega Celso de Barros. Basta usar a velha e boa capacidade humana de reflexão autônoma e confrontar a reação da mídia e de seu público cativo contra o PT com a reação de ambos às inúmeras delações envolvendo todos os principais políticos do PSDB. Cadê os panelaços, onde estão os milhões de tolos que saíram a rua pelos mesmos motivos contra Lula e o PT? Afinal, se era para combater a corrupção, por que parou? Parou por que? E onde estão os editoriais inflamados e cheios de indignação que enchiam os jornais e as televisões do pais. A classe média foi feita de tola e trocou a sacralização de seu ódio covarde e canalha contra os mais frágeis que ela explora por uma exploração agora sem precedentes de toda a população inclusive dela própria classe média. Agora ela vai ter que pagar caro pela universidade, pelo plano de saúde e agora também pela própria aposentadoria privada. E outras contas pesadas virão. Além disso, é ela que vai andar com medo nas ruas e que vai empobrecer de modo crescente. Essa é a conta da dignificação e sacralização do ódio que a mídia lhe proporcionou.

Mas vamos insistir e usar aquele órgão que a mídia quer tornar obsoleto no Brasil: nosso cérebro e sua capacidade de reflexão. Será que os dois pesos e as duas medidas são por que o PSDB é o partido da rentismo e do capital financeiro e a imprensa é a defensora bem paga de ambos? É por isso que o país empobreceu e milhões perderam empregos e as causas são sempre postas na herança maldita? Quanto tempo irá decorrer até que a classe média compreenda que o trabalho que o PT fez foi superficial e apenas garantiu um grau de civilidade mínimo ao país? E que as calamidades que estão vindo e ainda virão como insegurança pública crônica, massacres e epidemias vão cair como as pragas do Egito sobre a própria classe média?

O silêncio sobre o papel da imprensa é o fundamento da continuidade da nova ordem. Uma imprensa que deu os motivos – todos falsos como vemos hoje – construiu a narrativa, criminalizou a política, justificou o ódio e até transformou sua marionete jurídica em herói nacional. Não existiriam Bolsonaros como ameaças reais sem esse trabalho prévio da imprensa. No entanto, como mostra meu colega Celso de Barros tão bem, ela fez toda o trabalho sujo e ninguém ainda a responsabiliza por isso. Até quando?

Transcrito de http://jornalggn.com.br/noticia/classe-media-foi-enganada-pela-midia-que-fez-o-trabalho-sujo-do-golpe-diz-jesse-souza

Edgar Morin: é preciso educar os educadores

Andrea Rangel

Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica nas relações internacionais.

Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 95 anos, defende que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin propõe um dos conceitos que o tornaram um dos maiores intelectuais do nosso tempo: o da complexidade.

Em entrevista, o pensador critica o modelo ocidental de ensino que, segundo ele, separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. Para Morin, as disciplinas fechadas ensinam o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas impedem a compreensão dos problemas do mundo e de si mesmo. Confira abaixo:


Fronteiras: Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?

Edgar Morin: A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal" de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor.

Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.

É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.

Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?

O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo.

O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.

Fronteiras 10 anos: Edgar Morin

O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?

Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.

Morin a complexidade do eu (https://www.youtube.com/watch?v=ExOqRgBKDKA)

Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana.

O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis.

A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.

O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?

As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa.

Morin: os limites do conhecimento na globalização (https://www.youtube.com/watch?v=_FmdI-UFW1U)

O meu livro O homem e a morte é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.


Morin: 'É preciso ensinar a compreensão humana'

Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?
Edgar Morin: É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional.

O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.

Veja mais Edgar Morin: "É preciso ensinar a compreensão humana"

A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?

Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento.

Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.

Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?

O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão.

Morin: Lições sobre a existência (https://www.youtube.com/watch?v=-7pZsHbuswY)

Assista a todos os vídeos com Edgar Morin no Fronteiras.com

Em vídeo extraído da conferência de Morin ao Fronteiras do Pensamento, o pensador reflete sobre as duas lições que considera mais importantes para reformar a vida: aprender a ser mais autônomo e, ao mesmo tempo, a conviver em comunidade; e aprender a lidar com as obrigações das quais não gostamos e, simultaneamente, a desenvolver nosso lado lúdico e poético.

Transcrito de http://www.fronteiras.com/entrevistas/entrevista-edgar-morin-e-preciso-educar-os-educadores

Grafiteiro recupera pintura lavando a tinta e é preso em SP

27.01.2017

Exame.com

Mauro Neri foi detido depois de apagar a tinta passada pela Prefeitura em um grafite que ele mesmo havia feito. E o prefeito João Dória Jr, de São Paulo, que mandou pintar as obras de cinza, está solto.

Grafite: acusado de crime ambiental, ele assinou um termo circunstanciado e deve
ser liberado em breve (Mauro Neri/Divulgação)

São Paulo – O grafiteiro Mauro Neri foi detido por policiais militares na tarde desta sexta-feira, 27, depois de apagar a tinta passada pela Prefeitura em um grafite que ele mesmo havia feito, com aval da gestão anterior, em uma pilastra no Complexo Viário João Jorge Saad (Cebolinha), na zona sul de São Paulo. Acusado de crime ambiental, ele assinou um termo circunstanciado e deve ser liberado em breve.

“Eu estava removendo o cinza e escrevendo novas frases em um lugar onde eu já tinha autorização”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo por telefone. Ele era acompanhado por um grupo de cinegrafistas espanhóis que fariam um documentário sobre street art e o acompanharam ao longo da semana.

Ao ser abordado, Neri disse que foi questionado pelos policiais se ele era um pichador que eles procuravam. “Estavam procurando e queriam saber se eu era essa pessoa”.

O grafite apagado era parte do projeto Cartografitti, da Secretaria Municipal de Cultura, contemplado pelo edital Arte na Cidade. Neri coordenou o projeto.

Segundo o texto de apresentação no site da pasta, a proposta “faz um recorte no mapa da cidade de São Paulo por meio de uma série de intervenções em 21 locais estratégicos que contou com a participação de diversos artistas da cena street art local”.

Transcrito de http://exame.abril.com.br/brasil/grafiteiro-de-sp-que-recuperou-pintura-lavando-a-tinta-e-preso/

A elite brasileira suicida-se

Ruben Bauer Naveira

Nós vamos, um dia, amadurecer como povo e realizar
nossa potencialidade. E vamos então varrer a canalha
Darcy Ribeiro

Essa frase curta, “a elite brasileira suicida-se”, contém dois erros.

Primeiro: jamais houve elite neste país. O que temos aqui não passa de uma classe dominante que, por preguiça intelectual, volta e meia é chamada de elite – conceito que, em qualquer país, diz respeito a um extrato social que avoca para si a responsabilidade de traçar o destino da sua nação e fazê-lo cumprir. Nunca houve nada assim no Brasil, lugar em que os horizontes da classe dominante não passam da acumulação predatória e do consumo ostentatório.

Segundo: no curto prazo, a classe dominante não corre risco de morte. Não há então nenhum suicídio iminente. Será, porém, no médio-longo prazo, que a classe dominante brasileira acabará por perceber, da pior maneira possível, que terá sido a sua própria natureza que lhe terá conduzido a seu fim.

Como a 'elite' se vê e como não vê os brasileiros, como seus grandes artistas

Darcy Ribeiro sonhou com um povo que, por tomada de consciência, completava o seu processo de formação. O que ele não podia imaginar era que tal salto seria induzido de forma tão paradoxal, pela inconsequência da própria classe dominante. Mesmo que ainda demore muitos anos, o ponto-de-não-retorno foi ultrapassado, é então questão de tempo.

Antes de mais nada, nenhum país vive sem instituições, e as nossas se inviabilizam a olhos vistos. Instituições que, historicamente, foram construídas segundo os interesses da classe dominante: Charles Darwin, em sua estada no Brasil em 1832, registrou, repugnado, que “não importa a monta das acusações que possam pesar contra um homem de posses, é certo que em pouco tempo ele estará livre”.


Para que servem as instituições?

Ao menos a título formal, instituições existem para servir à sociedade e para edificar o futuro da nação. Como foi dito, no Brasil isso jamais aconteceu (como poderia, se não temos elite?) mas, pelo menos, ainda se guardavam as aparências. Agora, esfrega-se na cara da sociedade que as instituições existem tão somente para servir a si próprias.

Nossas instituições funcionam normalmente. Elas cumprem seus ritos e protocolos, executam seus orçamentos, nelas se tomam decisões e se definem políticas públicas. Mas, perante a sociedade, instituições vivem de veracidade ou, ao menos, de verossimilhança. Instituições até podem servir a si próprias enquanto fingem que servem ao bem comum, mas não podem simplesmente se cansar de fingir e estampar perante a sociedade uma realidade que ela preferiria não conhecer. Desencanto é sem volta.

As instituições brasileiras têm funcionalidade, o que elas não têm é sentido.

Para que se cumpra a antevisão de Darcy, o mais difícil já aconteceu. Graças à insegurança, cegueira, afobamento, inconsequência e ganância sem freios da classe dominante (mais uma vez passando recibo de não ser merecedora de ser vista como elite), o conjunto da sociedade vai se dando conta que essas instituições são imprestáveis, e terão que ser transmutadas.

Falta ainda algo já não tão difícil, na medida em que depende de nós: a unificação da sociedade em torno de um projeto para essa transmutação.

Ora, o atributo número um para tal projeto será sua qualidade de, justamente, unificar a sociedade. Terá que ser este o ponto de partida para a concepção do projeto.

O propósito deste artigo é apresentar três propostas concretas nesse sentido, respectivamente formuladas em torno dos conceitos de Constituinte dos Cidadãos, de Grupos de Diálogo e de Democracia Direta, as quais serão descritas ao final do texto.


A paixão não-correspondida da classe média pela classe dominante

Previsivelmente, a classe dominante lança mão do expediente clássico de dividir para governar. Por via da manipulação, ela atiçou preconceitos latentes da dita classe média, com duplo propósito: jogá-la contra as classes desfavorecidas e contra quem governasse em favor destas; e alinhá-la aos seus interesses, ainda que contrários aos dela própria.

(Nota: este processo se encontra descrito em profundidade no recente livro de Jessé de Souza, A Radiografia do Golpe: Entenda como e porque você foi enganado. Para uma introdução ao argumento de Jessé, ver https://www.facebook.com/souza.jesse225/posts/10203070013027649).

Muito simplificadamente, a classe média, desde sempre inconformada com os privilégios dos “de cima” (em especial o privilégio de fazer leis para serem cumpridas por todos, menos eles próprios), privilégios que ela condena da boca para fora mas que intimamente inveja e anseia para si, ficou ainda mais desconfortável a partir do momento em que os “de baixo” passaram também a contar com acesso, por mínimo que fosse, à Terra Prometida (leia-se, aos recursos do Estado). “Todo mundo mama, menos eu!”, foi como ela sentiu.

A classe média é hoje, possivelmente, a mais numerosa no país:
- a classe E são os miseráveis;
- a classe D são os pobres;
- a classe C é a classe média baixa;
- a classe B é a classe “média-média”;
- a classe A é a classe média alta.
Nenhuma dessas é classe dominante.

A classe A não são os ricos. O IBGE denomina “família de classe A” àquela cuja renda familiar seja acima de vinte salários mínimos, quase dezenove mil reais. Consideremos arbitrariamente o dobro disso: uns quarenta mil reais. Por acaso uma família com renda mensal de 40 mil reais possui helicóptero (não precisa ser jatinho)? Possui lancha esportiva (não precisa ser iate) com, claro, atracadouro próprio? Possui carro esportivo importado (um só, não precisa ser uma coleção)? Possui propriedades no exterior? Possui conta bancária no exterior com saldo equivalente a mais de um milhão de reais?

A classificação do IBGE busca, propositadamente, ocultar os ricos, diluindo-os na classe média alta.
Os ricos formam aquela que poderia ser chamada a classe AA. Arbitrariamente, estipulemos que a classe AA seja aquela cuja renda familiar esteja acima de cem mil reais. Isso são menos que 0,1% – zero vírgula um por cento – da população. E esses menos de 0,1% possuem praticamente metade de toda a riqueza nacional: eis a classe dominante.

Já a classe média, composta pelo conjunto das classes A, B e C, é numericamente tão expressiva quanto as classes desfavorecidas (as classes D e E).

De forma direta: sem a classe média, será impensável qualquer projeto para que a sociedade avoque para si as instituições e sua reconcepção.

Ocorre que a classe média não se vê como classe dominada. Primeiro, porque ela almeja ascender à classe dominante (como se o poder no Brasil não fosse regido pela lei maior da concentração), e ademais porque ela sempre se prestou a instrumento da classe dominante para a dominação mais ostensiva das classes desfavorecidas. Ela, dominadora dos que lhe estão abaixo, pode não se ver como dominada pelos que lhe estão acima, mas é. Guardadas as devidas proporções, a mesma desconsideração pelas pessoas – a mesma ausência de cidadania – está tanto na opressão exercida contra os “de baixo” pela instituição Polícia Militar nas periferias e favelas quanto naquela exercida contra a classe média por instituições como DETRAN, Receita, INSS, na fiscalização aos pequenos comerciantes etc.

Isso pode até não ser percebido assim. Porém, tudo o que agora se encontra em curso será um trauma e tanto para a classe média:
- a estagnação econômica do país derrubará os níveis de consumo das famílias, prejudicando sobremaneira os micro e pequenos empreendedores;
- o congelamento dos gastos públicos (PEC 55/241) terá impacto não somente sobre a saúde e educação públicas (de que a classe média tenta prescindir), mas degradará também a qualidade dos serviços públicos em áreas que lhe são caras, como mobilidade urbana e segurança;
- a reforma previdenciária desqualificará os melhores empregos (que são os da classe média), pela postergação da aposentadoria;
- a reforma trabalhista (com o virtual fim da CLT) será catastrófica para as classes desfavorecidas. Isso virá reduzir custos para os micro e pequenos empreendedores, contudo reduzirá também o poder geral de compra da população – afora que causará um crescimento da criminalidade;
- a entrega do pré-sal aos estrangeiros prejudicará o desenvolvimento do país, comprometendo a qualidade de vida das próximas gerações.
Já a classe dominante só terá a ganhar com tudo isso:
- o domínio cada vez mais direto sobre as instituições lhe permite fazer valer ao máximo os seus interesses;
- ela vive do rentismo (coisas como emprego, salário ou aposentadoria não lhe dizem respeito), de futuro glorioso agora que o gasto público foi resguardado para o pagamento dos juros da dívida pública;
- será a grande beneficiária da redução geral dos custos do trabalho (mesmo que certos segmentos industriais ainda dependam do mercado consumidor interno);
- seus laços com o Brasil limitam-se à extração de riqueza, a qual ela desfruta no exterior; ela pode assim se manter alheia à degradação das condições de vida no país.

Em adição a tudo isso, virá uma reforma tributária ainda obscura, mas de que não cabe duvidar que aliviará a carga tributária da classe dominante e pesará a mão sobre todas as demais.


A janela de oportunidade do choque de realidade

Encontra-se assim em curso um processo que empurra a classe média para um choque de realidade, um abalo na sua visão de mundo histórica, pela qual a riqueza é o prêmio dos mais fortes, um lugar ao sol que se conquista na marra, na base do cada um por si (“farinha pouca, meu pirão primeiro”, que no Brasil pode ser lido como “Estado pouco, meu privilégio primeiro”). Visão de mundo que toma por fato natural da vida a dominação dos de baixo pelos de cima, bem como a decorrência disso, a desigualdade.

Aos dominados cabe resignar-se a essa sua condição natural. O pior dos crimes que um dominado pode cometer é afrontar seus dominadores: um escravo que enfrentasse o feitor ou capataz era torturado com os mais atrozes suplícios, e sublevações como as da Cabanagem e de Canudos foram “pacificadas” por genocídio. Hoje, das violências que os dominados cometam entre si a sociedade se exime com menosprezo, mas, para a menor violência cometida por um dos “de baixo” contra um dos “de cima”, cadeia não basta: a sociedade considera natural, e até bom, que a cadeia violente, desumanize e brutalize o infeliz mais e mais a cada dia, afinal bandido bom é bandido morto (o que, obviamente, não se aplica quando acontece de o criminoso ser um dos “de cima”).

Em uma palavra: medo.

Desde 1500, somos uma sociedade em que cada um que se vire para conquistar, e defender, aquilo que for capaz de juntar. Isso não nos constitui como sociedade, no sentido pleno desse termo. Isso instila um sentimento permanente de medo de perder aquilo que se conseguiu juntar. Daí o ódio atávico à esquerda – inclusive por parte dos ex-pobres recém-ascendidos. Não importa que governos da esquerda tenham promovido a prosperidade e que o governo que derrubou a esquerda traga a ruína, atenuar a desigualdade seria desmanchar a ordem natural das coisas, inocular caos no mundo. A classe média tende a ver o miserável que recebe Bolsa-família e o pobre que tem acesso a Prouni, Pronatec, Minha Casa Minha Vida como gente que vai querer sempre mais (afinal, não somos todos assim?) e, como nunca houve riqueza bastante para todos (afinal, não foi sempre assim?), ela correria o risco de acabar ficando sem a dela.

Foi para afastar esse “perigo” que a classe média ocupou as ruas vestida de amarelo (não por acaso, a cor que na bandeira simboliza riqueza) e bateu suas panelas na varanda, sem se aperceber que era usada pela classe dominante para, no momento seguinte, ser traída e descartada. Essa, a paga pela sua adesão: foi por ter na classe dominante o seu ideal de vida (“a burguesia quer ficar rica”, cantava o poeta Cazuza) que a classe média sempre tomou ameaças existenciais à classe dominante como ameaças a si própria.

Oxalá esses brasileiros enxerguem que não têm a menor chance de faturar o bônus de “chegar lá” passando a fazer parte do menos de 0,1%, afinal, é matematicamente insano que 50% ou mais da população desejem isso. Ficam sem o bônus, mas com o ônus de conviver numa sociedade envenenada, vida afora, em nome dessa sua fantasia. Muito mais gratificante será vivermos todos numa sociedade saudável, alicerçada em instituições verdadeiramente cidadãs (a começar por uma educação e uma justiça que mereçam esses nomes).

O Brasil há de acordar dessa bad trip que já se arrasta por mais de quinhentos anos. Para que possa finalmente sair dela, o que se abre a partir de agora é uma janela de oportunidade inédita na História: esse brutal choque de realidade.

Ter as suas crenças confrontadas pela realidade dos fatos é um processo penoso e doloroso para quem quer que seja. Quanto mais penoso e doloroso venha a ser sentido, mais a ele se reage pela reafirmação da crença disfuncional e pela negação da realidade dos fatos.

A classe média tenderá assim a uma maior segmentação, aqueles mais reflexivos poderão dar conta de reciclar essa mentalidade histórica enquanto que aqueles mais irreflexivos se agarrarão mais e mais às suas “verdades” de sempre (em especial a de que nada deve mudar), facilitando assim sua manipulação pela classe dominante.

Sem o apoio da classe média, a classe dominante será como que uma cabeça sem corpo. Seus braços, suas pernas, são os segmentos da classe média que se dispõem a servi-la. Sem estes, a classe dominante não passa de um gigante de pés de barro.

Por isso se pode dizer que a “elite” (aspas) brasileira comete suicídio: não bastasse estampar a iniquidade dessas instituições que ela, historicamente, impôs ao país, a classe dominante, ao predar a classe média, bota a perder os alicerces que (também historicamente) lhe dão sustentação.


Caminha o Brasil para uma ditadura fascista?

De uma democracia precária, mas minimamente funcional, o Brasil passou a uma democracia de fachada, uma farsa que só perdurará enquanto se mostrar minimamente útil à classe dominante – que aliás jamais teve qualquer vocação democrática; na célebre frase de Sérgio Buarque de Holanda, “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”. Uma pseudodemocracia em estado de “guerra institucional”, com cada instituição agindo como se fosse a única, se permitindo ir contra as demais em prol da sua agenda individual em lugar de compor com elas um todo funcional, aporta mais custos que benefícios, pelo que não terá vida longa.

Em futuro próximo é assim provável uma ditadura como um regime abertamente fascista, e não necessariamente pela via de algum golpe militar à la 1964, posto terem os aparatos policial e judicial se acumpliciado numa simbiose essencialmente antidemocrática: as PMs estaduais há muito desempenham o papel repressor que no passado coube às forças armadas.

Entretanto, uma ditadura fascista tampouco teria vida longa, pois ela dependeria do grau de adesão que conseguisse angariar na classe média, o que não teria sustentação no tempo. Paradoxalmente, a opressão de uma ditadura acabaria por ser mais percebida pela classe média do que pelas classes desfavorecidas, que há muito já padecem, cotidianamente, da repressão pelo Estado.
A ditadura fascista, caso de fato advenha, será uma fase a mais a ser superada. A chave para que ela dure menos (ou nem chegue a ocorrer) reside na construção de uma alternativa para a classe média: um projeto para que o conjunto da sociedade assuma a tarefa de transmutação das instituições.


Forma, em vez de conteúdo

Foi dito que o atributo primordial de tal projeto é ser unificador da sociedade. Ocorre que nenhum conteúdo político pode ser unificador. Qualquer unificação somente poderá se dar na forma política.
Forma, em vez de conteúdo. Água e azeite, conteúdos diferentes, não se misturam. Isso não impede que, numa receita culinária (forma), participem ingredientes como a água e o azeite (conteúdos), reunidos no propósito mais abrangente da preparação de uma comida.

Ademais, os valores da classe média brasileira estão em geral longe de ser valores de esquerda. Com o que sonha um típico brasileiro da classe C? Com um emprego assalariado digno, respaldado por um sindicato forte (visão da esquerda)? Ou com um mínimo negócio próprio, ainda que na economia informal, que no futuro possa ser passado a um filho (visão pequeno-burguesa)? Por que deveria uma visão ser mais legítima que a outra?

Imperioso e urgente é conceber uma forma de participação política capaz de acolher distintos (e mesmo antagônicos) conteúdos políticos, em prol de um propósito maior que seja unificador de tais conteúdos: levar a sociedade a assumir nossas instituições, para transmutá-las em instituições verdadeiramente cidadãs.

A travessia se fará, de um modo ou de outro. É o destino, como anteviu Darcy. Quanto mais unificada esteja a sociedade menor o custo, em sangue e em dor.

O termo “coxinha” (que neste texto estará sempre grafado entre aspas) tem origem num apelido da periferia paulistana aos soldados da polícia militar (em geral oriundos dessa mesma periferia), para ironizar o fato de que, não obstante todo o poder e opressão que são capazes de exercer, recebem baixos salários, não passando assim de iguais na servidão e na exploração pela classe dominante – pelo que não contam com alternativa melhor do que alimentar-se de frituras de balcão de botequim.

Assim, “coxinha” é aquele que se deixa usar, em nome de interesses no fundo contrários aos seus próprios. Trata-se obviamente de um termo pejorativo, que subentende uma superioridade moral por parte daquele que o usa. Já dizia Carl Gustav Jung que não se pode ajudar ninguém a mudar fazendo-o sentir-se mal. Os “coxinhas” precisam ser resgatados da órbita dos fascistas (que parecem muitos apenas porque fazem muito barulho), não deixados no mesmo saco que estes.

Ficarão de fora a priori da forma política unificadora a ser instaurada apenas aqueles conteúdos políticos que sejam exclusivistas a ponto de negar o direito à existência dos que deles divirjam: ao recusar qualquer projeto da natureza unificadora, eles próprios se autoexcluirão. Trata-se, claro, do fascismo, algo que no fundo não passa de sociopatia, como bem o descreveu Norberto Bobbio: “o fascista fala o tempo todo em corrupção. Ele acusa, insulta e agride, como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política. No poder, essa direita não hesita em torturar, estuprar e roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos. Mais do que a corrupção, o fascista pratica a maldade”.


Uma nova utopia para o Brasil (três guias para sairmos do caos)

Milton Santos dizia que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando conseguem identificar apenas o que os separa e não o que os une”. Há que encorajar os brasileiros, historicamente separados, à identificação daquilo que os una.

Três formas políticas de unificação, para um projeto de refazimento das instituições pela sociedade, encontram-se propostas no livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (que pode ser livremente baixado no site www.brasilutopia.com.br):
– Uma Constituinte dos Cidadãos (não dos políticos!), inspirada na constituinte havida na Islândia em 2010-11, para o dia em que sejam retomadas as jornadas de junho de 2013, de modo a que seja a bandeira em comum que nos faltou naquela ocasião;
– Os assim chamados Grupos de Diálogo: uma metodologia a ser praticada localmente por todo o país, para, em um esforço de investigação e elucidação das raízes (que são de fundo cultural) dos conflitos sociais, encarar de frente a miséria da mentalidade brasileira; e
– A implantação da Democracia Direta como um espaço aberto a todos que queiram praticá-la, por meio de um partido político “cavalo de Tróia” que venha a romper com o monopólio do sistema político-partidário.

Muita energia vem sendo dispersada na busca de alguma solução mais imediata, como eleições diretas. Ora, de que servirão eleições diretas, se a classe dominante fará moldar a legislação eleitoral de modo a que vença o seu candidato (sem contar artimanhas como parlamentarismo)? Mesmo em um cenário otimista, em que venha a ganhar algum candidato pró-restauração da democracia, como conseguiria ele ou ela governar, se o chamado presidencialismo de coalização foi liquidado, e se instituições como o judiciário, o ministério público e a polícia estão fora de qualquer controle exterior a elas próprias, e obcecadas em impor ao país as suas agendas?

Não é mais factível uma saída institucional, posto que as instituições já se encontram pervertidas a um ponto irrecuperável. Já passa da hora de substituir essa visão de curto prazo, das soluções superficiais, por uma visão de processo histórico a médio-longo prazo.

A um povo desprovido de elite resta somente o caminho de fazer-se elite de si próprio – como nos indicou Darcy Ribeiro.

Transcrito de http://jornalggn.com.br/noticia/a-elite-brasileira-suicida-se-por-ruben-bauer-naveira#.WJuhHEE4eDA.
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O ministro que se confundiu a si mesmo com um prémio

20.02.2017

Alexandra Lucas Coelho*

Com o golpe, o ministro sumirá da história e a obra do premiado fica,
enquanto houver alguma forma de livro no planeta

1. A cerimónia de entrega do Prémio Camões, o maior da língua portuguesa, sexta-feira passada, em São Paulo, foi um retrato do que está em curso no Brasil, mas não só. Revelou a que ponto um ministro não distingue Estado e governo, confundindo-se a si mesmo com um prémio. E como querer separar cultura e política leva a uma política sem cultura.

2. O premiado desta edição era o brasileiro Raduan Nassar. A decisão, unânime, foi tomada em Maio de 2016 por um júri composto por críticos e escritores de vários países de língua portuguesa. O anúncio coincidiu com o início do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Mas não era esse governo, ou um seu sucessor, que atribuía o prémio a Raduan Nassar, e sim um júri independente. Aos governos de Portugal e Brasil que na altura da entrega estivessem em funções competiria cumprir, em nome dos Estados, o compromisso que existe desde que o prémio foi instituído, assegurando o montante em dinheiro. Os premiados do Camões não são escolhas de nenhum governo. Qualquer confusão em relação a isto será um insulto à ideia do prémio, aos júris que já o atribuíram, a cada nome que o recebe, e a quem acredita na sua independência.

Caldo entornado na cerimónia de entrega do Prémio Camões em São Paulo

3. A obra de Raduan Nassar é daquelas que muda a língua e os leitores, e mantém-se tão breve quanto única. Foi publicada sobretudo nos anos 1960 e 1970, depois o autor largou a literatura, tornou-se fazendeiro, desapareceu do espaço público. Durante décadas esse silêncio tornou-se lendário. Mas em 2016, no início do impeachment, Raduan mandou a lenda às urtigas por achar que o impeachment era um golpe. Falou, foi a Brasília ter com Dilma, protestou na imprensa. Fez isso num Brasil dividido ao extremo, o que lhe valeu ser insultado aos 80 anos pelos que acima de tudo odiavam Lula, Dilma e o PT. Não se tratava apenas de discordar de Raduan, mas de o diminuir como anacrónico. Ele, que ao fim de décadas voltara para fazer o mais difícil, aparecer. E como teria sido tentador continuar fora da mortal turba humana. Mas Raduan deixou o olimpo para os livros e arregaçou as mangas.

4. O governo que ocupou o poder pós-impeachment já vai na sua segunda tentativa de ministro da Cultura. Seja por isso, seja porque Michel Temer & Cia receavam o que Raduan pudesse dizer, a entrega do Prémio Camões só aconteceu agora. Dado que Raduan quebrara várias vezes o silêncio em 2016 era de prever que aproveitasse para um discurso político. E foi o que aconteceu. Um breve discurso contundente em relação ao actual governo brasileiro, e ao sistema que o favorece. Depois de um par de frases para o outro lado do Atlântico (“Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido”), Raduan estabeleceu o contraponto com o Brasil de 2017: “Vivemos tempos sombrios, muito sombrios”. Deu exemplos de invasões em sedes do PT e em escolas de vários estados; de prisões de membros dos movimentos sociais, de “violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua”, da responsabilidade governamental nas “tragédias nos presídios de Manaus e Roraima”, de um “governo repressor”: “contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva”. Um “governo atrelado, por sinal, ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza”, “amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal”. Um Supremo coerente “com seu passado à época do regime militar”, que “propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff.” Aqui Raduan concluiu: “Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado. O golpe estava consumado. Não há como ficar calado.”

5. A plateia, em pé, aplaudiu. Os três anfitriões da cerimónia permaneceram quietos: embaixador de Portugal, Jorge Cabral, directora da Biblioteca Nacional, Helena Severo, e ministro brasileiro da Cultura, Roberto Freire, que então se levantou para ir ao púlpito. Com Raduan já sentado, Freire decidiu responder-lhe de improviso, numa longa intervenção gesticulante, que foi subindo de tom. “Lamentavelmente, o Brasil de hoje assiste perplexo a algumas pessoas da nossa geração, que têm o privilégio de dar exemplos e que viveram um efetivo golpe nos anos 60 do século passado, e que dão o inverso”, disse. “Que os jovens façam isso já seria preocupante, mas não causaria esta perplexidade”. Quando falou no “momento democrático que o Brasil vive” ouviram-se as primeiras gargalhadas e vaias da plateia. A partir daí foi uma escalada, com o ministro a levantar a voz para se impôr ao bruá, martelando palavras. Este prémio, afirmou, “é dado pelo governo democrático brasileiro e não foi rejeitado”. Adiante insistiu: “É um adversário recebendo um prémio de um governo que ele considera ilegítimo, mas não é ilegítimo para o prémio que ele recebeu.” Ou: “Quem dá prémios a adversário político não é a ditadura.” Ou: “É fácil fazer protesto em momentos de governo democrático como o actual.” Ignorou quando alguém da plateia o alertou para o óbvio: “Hoje é dia do Raduan!” Quando alguém pediu “Respeito a Raduan!”, devolveu: “Ele desrespeitou todos nós!” Respondeu sarcasticamente a autores na plateia. A dada altura, o professor da USP Augusto Massi disse: “Acho que você não está à altura do evento.” Massi disse à “Folha de S. Paulo” que Freire lhe chamou idiota depois, na saída. À “Folha, Freire disse que fizera aquele discurso dada a “deselegância” de Raduan: “Se ele viesse dizer que não aceitava o prémio, a crítica que ele fez até podia ser justa.” Mais tarde declarou: “Quem assinou, convidou e pagou o prémio foi este governo.” E ainda: “Tinha tantos que não foram ali para aplaudir um escritor, foram para [me] agredir, acho que até fui brando.”

6. Ou seja, para o ministro a) este prémio é dado por este governo b) quem critica este governo dá mau exemplo c) jovens críticos já é mau mas velhos ainda é pior d) se Raduan queria criticar não aceitava o prémio e) quem vaiara o ministro tinha vindo não por Raduan mas para o agredir a ele, ministro. E com tudo isto o ministro suplantou as críticas de Raduan na repercussão mediática. Em suma, não é de espantar que o megalómano ministro venha a dizer: o prémio, fui eu.

7. Claro que o ministro sumirá da história e a obra do premiado fica, enquanto houver alguma forma de livro no planeta. Para os livros de Raduan Nassar é indiferente o que passou na sexta. Mas a nós, contemporâneos, importa, sim, que um membro do poder político abuse do cargo, confundindo, distorcendo e agredindo um criador como Raduan, protagonista único da cerimónia, que lhe devia merecer, no mínimo, silêncio. Não cabe ao ministro aprovar ou reprovar o discurso do premiado, não lhe cabe responder. Tal como não é preciso alguém estar de acordo com Raduan politicamente para entender como foi absurdo o que se passou. O prémio não é deste governo, é patrocinado por dois Estados, e atribuído por um júri. A sua aceitação nunca deverá implicar um discurso bem-agradecido. Um ministro da Cultura que veja os criadores como estando ao serviço não entendeu nada. Idem para quem sugere que se pode tirar a política da cultura, e vice-versa. De resto, o que o actual governo brasileiro está a fazer na Cultura é um desmonte do muito que veio sendo construído. Se há áreas em que os anos de Lula deram frutos fortes, a Cultura é certamente uma delas.

*Jornalista

Transcrito de https://www.publico.pt/2017/02/20/culturaipsilon/noticia/o-ministro-que-se-confundiu-a-si-mesmo-com-um-premio-1762632

A era do humanismo está terminando

“Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século
XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o
capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o
humanismo e o niilismo”, escreve Achille Mbembe. E faz um alerta: “A crescente
bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização”.

Achille Mbembe

Foto: geledes.jpg

Achille Mbembe (1957, Camarões francês) é historiador, pensador pós-colonial e cientista político; estudou na França na década de 1980 e depois ensinou na África (África do Sul, Senegal) e Estados Unidos. Atualmente, ensina no Wits Institute for Social and Economic Research (Universidade de Witwatersrand, África do Sul). Ele publicou Les Jeunes et l'ordre politique en Afrique noire (1985), La naissance du maquis dans le Sud-Cameroun. 1920-1960: histoire des usages de la raison en colonie (1996), De la Postcolonie, essai sur l'imagination politique dans l'Afrique contemporaine (2000), Du gouvernement prive indirect (2000), Sortir de la grande nuit – Essai sur l'Afrique décolonisée (2010), Critique de la raison nègre (2013). Seu novo livro, The Politics of Enmity, será publicado pela Duke University Press neste ano de 2017.

Não há sinais de que 2017 seja muito diferente de 2016.

Sob a ocupação israelense por décadas, Gaza continuará a ser a maior prisão a céu aberto do mundo.

Nos Estados Unidos, o assassinato de negros pela polícia continuará ininterruptamente e mais centenas de milhares se juntarão aos que já estão alojados no complexo industrial-carcerário que foi instalado após a escravidão das plantações e as leis de Jim Crow.

A Europa continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal ou o que o teórico cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar dos complexos acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez mais em uma guerra de extermínio entre as várias formas de niilismo.

As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.

A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa.

Com o triunfo desta aproximação neodarwiniana para fazer história, o apartheid, sob diversas modulações, será restaurado como a nova velha norma. Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias estabelecidas.

Nenhuma das alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.

Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.

O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.

Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.

Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.

Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade. Como os mercados estão se transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender.

A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios computacionais.

A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão.

A principal função da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.

Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.

O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles, aos fracos em que não querem se transformar.

Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.

A política se converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente ultracompetitivo.

Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política, este é o problema do século XXI.

Transcrito de http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando