sexta-feira, 29 de julho de 2016

De quando Chimamanda Adichie me encantou

Lianja Soares Aquino*

Entre minhas leituras teóricas sobre cultura e história do afro-brasileiro e africano, as leituras literárias tiveram um papel primordial na compreensão dos processos de colonização, descolonização e negociações entre as diferentes culturas nas diásporas. Essas intersecções entre crítica, teoria e literatura são importantes para entender as complexidades que existem no campo social, político, cultural e econômico de um povo, de um país e de um continente. São condições humanas interligadas numa rede de dependências, intermediadas por apropriações, expropriações, negociações, ou seja, por relações de poder.
  
As relações de poder estão atreladas ao domínio econômico. Quem pode mais, quem detém os recursos financeiros e econômicos não apenas constroem muros, casas, prédios, ruas e calçadas. Quem pode mais também constrói narrativas simbólicas que assegurem uma longa permanência nesse poder. Essas narrativas passam tanto pelo plano objetivo como pelo plano subjetivo do texto. 
Em outras palavras, um texto histórico e um texto ficcional, por exemplo, informam, ensinam, trabalham no plano simbólico e contextual de formas diferentes: enquanto o primeiro trabalha com o conceito de “verdade”, o segundo trabalha no plano ficcional (mentira). Verdade e mentira são antônimas, mas podem ser relativizadas em seus conceitos epistemológicos. Basta realizar algumas perguntas que clareiam as relações de poder existentes na sociedade:

Quem conta a história? 
Quem autoriza? 
Quem divulga? 
Quem reforça um discurso ideológico? 
Existe mesmo apenas uma história, uma verdade?

Não se está defendendo que existe uma história melhor que a outra. O que existe são histórias que não conseguem os mesmos espaços que outras, que não são lidas tanto quanto outras. Ou seja, o que existe são autores e autoras que por não terem o mesmo prestígio que outros, não conseguem se tornar conhecidos e são impedidos de contar as suas histórias.
Mas um segredo preciso revelar: existem pessoas empoderando-se discursivamente por aí. E é para falar de umas dessas pessoas que escrevo hoje. Minha alegria em escrever e minha alegria literária desses últimos dias tem nome: Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Adichie. 

Conheci a romancista, por acaso, através de um vídeo compartilhado no facebook, por alguns amigos incomuns. Com o titulo “O perigo da história única” , Chimamanda expõe, nesse vídeo, as suas experiências leitoras, enquanto criança, morando na Nigéria e lendo livros americanos e britânicos. 



Sobre as leituras que realizou na infância, ela diz que aqueles livros ocidentais foram muito estimulantes para o processo criativo que se concretizaria em romances, anos depois, mas o fato de não se sentir representada nessas histórias a incomodava. Partindo desse incomodo e da dificuldade de encontrar literaturas que representassem bem a sua cultura, resolveu escrever romances e contos que fugissem dos estereótipos criados pela cultura ocidental. Como ela diz no vídeo, “[...] histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida”.

Falar sobre a cultura africana e afrodescendente merece uma discussão mais cuidadosa devido à diversidade de línguas e culturas existentes no continente africano e nas relações estabelecidas nas diásporas pelo mundo. O que é preciso entender é que não há apenas uma cultura, uma língua e uma história. 

Não se pode falar sobre “uma África”. Não existe apenas a África de guerras e expropriações. Não existe apenas a fauna e a flora exótica, como mostram alguns documentários bem produzidos. Existem pessoas e existem histórias. Histórias contadas pelo colonizador e histórias contados pelo colonizado. 

Ouvir as diferentes versões de uma mesma história, seja no plano objetivo como no plano subjetivo, é o que sugere a autora em algumas palestras ministradas pelo mundo e é o que fui buscar em sua obra Meio Sol Amarelo. Encontrei o que vou tentar narrar agora, mas antes falarei um pouco sobre a autora que me encantou e que espero encantá-los também. 

Chimamanda Ngozi Adiche nasceu na Nigéria, em 1977 e mudou-se posteriormente para os Estados Unidos, onde completou os estudos superiores. Vinda de uma família de classe média, estudou em boas escolas. A curiosidade, a criticidade, a criatividade, o incentivo dos pais e as oportunidades que surgiram na vida dessa autora anglófona a tornaram conhecida no mundo. 

Meio Sol Amarelo é o segundo livro da escritora negra nigeriana Chimamanda. Baseado na guerra Nigéria-Biafra de 1967-1970, a história retrata as mudanças políticas que ocorrerem nesse período, mas o livro vai muito além. As histórias que se cruzam, os laços que se concretizam entre os personagens da trama, os diálogos, a paisagem que alterna as belezas das plantas nativas e a fome que deixa milhares de crianças e adultos desnutridos; as crenças e as relações interpessoais daqueles que buscam um lugar melhor para recomeçar a vida compõe o cenário dessa história que cativa, que informa e sensibiliza. Além disso tudo, os protagonistas são negros. Mas e aí, se são negros?

A importância de destacar que a obra foi escrita por uma negra, colocando como protagonistas homens e mulheres negras na história, está na representatividade que isto provoca no negro que lê essa obra. Já que numa busca rápida na internet por filmes e livros, pode-se constatar que os protagonistas negros estão em menor proporção que os protagonistas brancos. Que brancos ainda são a maioria em cargos privilegiados e que ainda temos muito o que discutir sobre a importância de uma identidade negra. Não como fator que diferencia branco e negro, mas como individualidade respeitada e, porque respeitada, incluída no coletivo. 

Em Meio Sol Amarelo, durante os anos 60, seis personagens se destacam na história pelos diálogos, conflitos amorosos, políticos e sociais. Ugwu, Olanna, Kainene, Odenigbo, Richard e Baby são esses personagens que vivem em Biafra, um Estado independente do povo ibo, que existiu por 3 anos. 

O ponto de vista fica a cargo de três desses: Ugwu, que é um menino do interior do país da Nigéria, que indicado por uma tia vai trabalhar na casa de Odenigbo, professor universitário; Olanna, filha de aristocratas que deixa a vida de privilégios que tinha com os pais, para se dedicar a carreira acadêmica ao lado de seu namorado Odenigbo; Kainene, irmã de Olanna, num primeiro momento administra os negócios do pai aristocrata, mas também parte para Biafra e passa a ajudar necessitados durante a guerra civil. 

Cada um deles tem uma personalidade única dentro da história. O menino do interior, Ugwu, deixa a história possível de ser compreendida numa extensão que apreende muitas sensações que levam ao riso e ao choro. Olanna, que na sua fragilidade de mulher aristocrata descobre, durante a fome e alguns imprevistos em sua relação com Odenigbo, a força militante que tem o ato de ministrar aulas. Kainene, que por muitas vezes mostra o seu lado feminista, executado atividades e enfrentando desafios durante a guerra civil em Biafra. Tudo surpreende em Meio Sol Amarelo. 

O livro está divido em três partes e entre elas a voz do único personagem que é branco e inglês está destacada em trechos que tem como título: “O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos”. Nesses trechos, o personagem Richard descreve a guerra civil na perspectiva de um inglês que mora na Nigéria e acompanha de perto os horrores da guerra e as belezas da cultural local. 

O desenrolar da trama não é possível de ser contado por aqui. É preciso uma entrega. É preciso viajar pela Nigéria através da narrativa. 

A obra também se encontra disponível em PDF e E-book. O livro, nesses formatos, pode ser baixado pela internet de forma gratuita e é uma grande oportunidade para entender o contexto da guerra entre Nigéria-Biafra e refletir sobre a cultura, sobre a importância da literatura africana em termos de representatividade do negro na história e na ficção. 

Ler Meio Sol Amarelo, como dito anteriormente, é uma oportunidade de viajar no tempo, de conhecer um pouco do continente africano e sensibilizar-se com protagonistas que provam que a cor da pele, para quem mora na África, não é fator decisório nas relações econômicas, políticas e sociais. A cor da pele é um modo de ver, europeu, e que há muitos anos vem sendo reforçado como algo que define valores e posições sociais, ou seja, que vem excluindo e matando negros durante séculos. Meio Sol Amarelo, fala de relações humanas. Fala de nós, brancos, pretos e pardos. 

Que outros leitores possam envolver-se nesse encantamento e que a obra contribua efetivamente nas discussões sobre história e cultura africana, dentro e fora da sala de aula.

*Graduada em Letras e Mestranda em Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína (TO).

Nenhum comentário: