Crítico da mídia e dos evangélicos moralistas a "desserviço da nação",
o pastor batista Ariovaldo Ramos diz que está em curso a adesão ao
capitalismo internacional contrário aos interesses dos trabalhadores brasileiros
São Paulo – O golpe de estado em curso no Brasil, por meio do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, é uma tentativa de adesão ao capitalismo internacional contrário aos interesses do país, dos trabalhadores e das populações segregadas. Entre as consequências, cortes e flexibilização de direitos, inclusive a revisão do conceito de trabalho análogo à escravidão, além do controle e exploração das riquezas. O alerta é do pastor batista Ariovaldo Ramos.
Conhecido por seu pensamento alinhado com a esquerda, o escritor, articulista e conferencista é uma das principais vozes progressistas no meio religioso. Integrante da Frente Brasil Popular, Ari, como é mais conhecido, considera que os evangélicos conservadores prestam um "desserviço à nação" e espera que os senadores se comportem como "chanceleres da República", em vez de se igualar aos deputados. E que a presidenta Dilma volte a dialogar com os movimentos sociais, que se uniram para defender seu mandato e a própria democracia neste momento conturbado.
Confira a entrevista:
Como o sr. avalia os votos que evocavam o nome de Deus na sessão da Câmara deste domingo?
A liberdade de todo ser humano para justificar sua ação como desejar, inclusive citando Deus, não está em questão. E sim que os congressistas que professam a fé evangélica – a maioria dos que justificaram o voto citando Deus – votaram baseados em princípios ou preceitos de moral em vez de aterem-se aos preceitos civis.
Há um sem-número de parlamentares incriminados e acusados de, no mínimo, não terem noção de ética em relação à coisa pública. E isso, de maneira generalizada, não só evangélicos. Esse problema se manifesta de maneira angustiante nos poderes constituídos, como na seletização dos julgamentos das operações na Polícia Federal, por exemplo.
Este é um país laico, que abriga todas as religiões, com liberdade de culto e de expressar-se em nome de seu culto onde quer que esteja. E há religiosos que não se justificam conforme sua fé. O ponto principal, que divide o segmento evangélico, é se o papel do político em exercício de mandato é o de cumprir e mandar cumprir a Constituição Federal e não tomar posição em favor de um ou de outro segmento em detrimento da lei.
É a moral versus a ética...
A pauta moral prevaleceu sobre a legal. E essa era uma maneira de esses deputados, sobretudo os evangélicos, deixarem claro ao governo que abririam mão do cumprimento à Constituição em nome do respeito a princípios da família, tão comuns na fé cristã, ainda mais numa nação que se confessa majoritariamente cristã. Tanto que a questão das pedaladas só apareceu na voz de uma meia dúzia.
E essa campanha moral vem de longa data. O governo que não foi hábil para detectar, entender e dar uma resposta. Um equívoco histórico que está cobrando seu preço agora. Todos que votaram pelo impeachment, muitos até com razões estapafúrdias, desrespeitaram a Constituição e o Estado democrático de direito.
Essa ênfase moral, explícita nos votos em nome da família é a mesma que aparece na extrema-direita em todo o mundo, não só no Brasil. E pode até influir na escolha do eleitorado evangélico alinhado ao PT, mesmo aquele beneficiado pelos programas sociais.
A força do líder religioso não pode ser subestimada. Independentemente da confissão religiosa, o líder está em contato com o fiel. E o governo não.
O sr. tem dito que o golpe é o mal. Por quê?
Para nós, cristãos, o mal é tudo aquilo que atenta contra o bem da humanidade, do ser humano como pessoa e a humanidade enquanto comunidade. Na minha opinião, essa ação que avança, sem que haja motivo jurídico nem sequer para a denúncia, atenta contra a democracia, contra um projeto de emancipação do pobre, do negro, da mulher, do indígena, do quilombola, de todos que estão à margem da sociedade brasileira.
Então atenta contra a humanidade porque atenta contra os mais frágeis, que sofrem qualquer tipo de segregação, que não têm acesso ao bem comum. É um crime contra os assentados da reforma agrária, os que estão em busca de terra para plantar. É um crime contra a soberania nacional, no tratamento dos nossos recursos, que devem ser para fins eminentemente sociais, e que só serão se estiverem sob controle social, do povo, por meio de um projeto governamental que honre a nossa Constituição cidadã – o que não está acontecendo e nem acontecerá se o impeachment vingar.
Estamos assistindo a uma tentativa de adesão acrítica ao capitalismo internacional, cujos interesses são contrários aos nossos interesses – dos trabalhadores –, e que necessariamente buscarão impor cortes e flexibilização nos direitos e até da definição do que seja trabalho análogo à escravidão.
Por isso, entendo que está em curso o que as escrituras chamam de mistério da iniquidade e nós, cristãos, chamamos de mal. É o mal assumindo o protagonismo.
E a vontade de Deus?
Fazer a vontade de Deus é fazer o que é certo, ou seja, respeitar a Constituição. Essa é a minha postura. Quando digo que os deputados evangélicos evocavam Deus, evocavam a sua visão particular de moralidade, com um viés autoritário e não dialógico, que relativiza a luta pelos direitos civis. Em nenhum momento pode haver uma tentativa autoritária de imposição de um conceito particular sobre o geral.
Em caso de golpe, o Brasil pode perder credibilidade junto à comunidade internacional?
Se acontecer o impeachment, seremos vistos como uma nação que não sabe lidar com a nossa jovem democracia. Depois da independência, tivemos um período monárquico, com democracia relativa. Na República, enfrentamos momentos de exceção, como com Floriano Peixoto e depois com Getúlio Vargas.
Veio então o movimento civil-militar de 1964 e agora essa tentativa de golpe, que pretende ser um ato institucional travestido de institucionalidade – não passa de um golpe de estado.
O mundo saberá que não temos conseguido conviver com a democracia, que ainda não nos tornamos uma nação moderna: temos uma postura antidemocrática e uma estrutura social antiga – inclusive dos tempos pré-revolução industrial –, ainda feudal, que se manifesta nesses arroubos de uma elite que não consegue se adaptar a uma democracia moderna.
Haverá sanções diplomáticas?
O golpe vai falar muito de nós do ponto de vista civil, político, filosófico. Mas os interesses internacionais, escusos, robustos, certamente impedirão quaisquer sanções. Interessa o fim do projeto trabalhista de governo que está em curso no Brasil, o fim do monopólio do petróleo, da nacionalização da construção civil, do regime de exploração do subsolo brasileiro, a flexibilização dos direitos adquiridos pelos trabalhadores com ajuda de traidores que, mesmo de dentro de casa, trabalham pelos interesses internacionais, para reduzir o Brasil a mera republiqueta.
Isso é um absurdo. Estamos sendo submetidos a uma ação dessas. Eu espero que no Senado haja maior senso de respeito à Constituição, que os senadores não queiram se igualar mas superar aquele clima bizarro, patético, burlesco que assistimos no domingo. E que queiram se portar como chanceleres da República, estadistas, e garantam a manutenção do Estado democrático de direito, a Constituição e a indevassabilidade do voto.
Por que isso está em jogo. O voto é majestade numa república porque é o ato do eleitor, de quem emana e para quem emana todo poder. Tomara, queira Deus, que essa seja a oração daqueles que a Ele elevam suas preces. Caso contrário, não passaremos de uma republiqueta.
O que de pior pode acontecer?
O que mais temo é a conflagração nacional. Não estamos mais na década de 1960 e nem somos alienados. As forças sociais, as organizações democraticamente estão aí. E em nome da democracia, do direito, do trabalho, vão reagir à perda de direitos, ao golpe, a uma elite retrógrada, subdesenvolvida.
E isso só Deus sabe onde pode vai parar. Se a elite brasileira acha que esse movimento é simples e acabado, está redondamente enganada. Vai haver reação, vai haver tomada de posição.
O que mais lamento é o complô midiático que transformou sua obrigação da informação em ação contra-informativa. A cada dia que passa, em vez de a gente receber informação, como é direito do cidadão – por isso toda concessão midiática é pública –, recebemos contrainformação ligada a um complô.
Stédile, do MST, já disse que há interesse maior em sangrar o governo, e não derrubá-lo. A aprovação na Câmara poderia ser uma hemorragia?
Nada posso afirmar, mas há essa possibilidade. O que me parece é que a ideia é interromper o projeto trabalhista, no qual tudo tem de ter função social, até mesmo o lucro das empresas, o que contraria interesses do capitalismo internacional, que trabalha na lógica do lucro pelo lucro.
É uma disputa de conceituação de governo, de política, de Estado, que não é uma coisa simples. Pressionado, Getúlio Vargas se suicidou. Depois veio o movimento de 1964, com a ditadura civil-militar, que introduziu partes do que chamamos de capitalismo selvagem e só não se consagrou 100% porque os militares eram nacionalistas.
Com a redemocratização veio a angústia, com Tancredo, e depois a crise, já na democracia, com Collor. A retomada dos postulados capitalistas veio com FHC. Contra tudo o que havia escrito, optou pelo neoliberalismo e foi gradativamente rompendo com o nacionalismo que os militares haviam deixado.
Foram privatizando na lógica do capitalismo dependente, cedendo ao capitalismo internacional a ponto de quase desmontar a estrutura industrial. Não bastasse praticamente o fim da indústria de base, seu governo terminou sob apagão – a forma mais eficaz de sabotar a economia.
Os sonhos dos postulados capitalistas internacionais estavam se realizando, e estávamos voltando a ser exportadores de matéria prima. Não tínhamos mais nada em infraestrutura. Durante 10 anos não tivemos um centavo investido em infraestrutura. Com a chegada do governo trabalhista de Lula, tivemos a retomada do projeto que os militares tentaram silenciar e que FHC parecia ter conseguido.
Nessa retomada, o Brasil volta a existir como nação. Parque industrial brasileiro ressuscita, retomada na economia, 40 milhões de brasileiros saem da linha de miséria, fome vencida, inflação debelada, moeda fortalecida.
Áureos tempos de um governo desalinhado com os postulados do capitalismo internacional ainda que dialogue com o capitalismo.
E Dilma...
Dilma adotou posição dúbia em relação a projetos trabalhistas de modo surpreendente porque ela veio do arraial do Leonel Brizola, um trabalhista por excelência. Houve, porém, algo no meio do caminho que todos nós ficamos a nos perguntar.
Alguns avanços, como reforma agrária, foram parados; houve retrocesso. Projetos emancipatórios de retomada da indústria de base sofreram. E é verdade que a presidente não conseguiu debelar o financismo e nem a mídia, que continua sendo oligopólio. A ausência de um projeto de reforma agrária sustentou um projeto de monocultura, e a ausência de medidas mais sólidas, que refreassem o financismo, impediu o financiamento como precisávamos para o crescimento brasileiro, a juros racionais.
Faltou essa análise. Em algum momento, o governo não percebeu qual era o projeto que deveria fazer vingar. Essa indefinição permitiu que as forças retrógradas se reunissem. Afastar-se dos movimentos sociais foi deletério para seu governo. A perda do apoio popular, dos movimentos sociais, tirou da presidenta capital eleitoral e ela ficou mais à deriva dos oligopólios e sem alicerce pro seu projeto de governo. Tudo isso permitiu a reorganização das forças retrógradas.
Nesse cenário, o movimento evangélico prestou um serviço a esses setores retrógrados e um desserviço à nação ao se deixar subverter pela ênfase midiática, sucumbir à cultura coronelista e colonial que ainda subsiste no Brasil. E aí nós não tivemos a capacidade, a exemplo de outras forças vivas da sociedade civil: a capacidade de analisar, de entender o Brasil, e então assumir direções em relação às posturas que deveríamos tomar enquanto pastores e líderes do rebanho evangélico.
E isso apareceu agora, de forma contundente, agravando a boataria da questão moral com que começamos a conversa. Fechou-se o círculo que hoje atenta contra a sobrevivência da nação como força política internacional.
A luta continua?
Continuo na militância, apoiando. Entendo que o que está acontecendo no Brasil é um retrocesso – o que nós não podemos permitir porque a democracia não é uma benesse. É uma conquista que custou muito caro. Temos de continuar resistindo e denunciando.
Não acredito que o impeachment se concretize; vamos reverter esse quadro, mas vai custar muito caro, com os acordos que vierem a ser feitos. Já está custando. Espero também que, vencida essa fase e a tentativa de golpe, a presidenta se lembre que ela tem um projeto de governo a partir do trabalhador e que foi sustentada pelos movimentos.
Esse é o problema: a gente é esquecido, sai para socorrer o projeto e depois que o projeto se mantém a gente é esquecido de novo. Isso não pode acontecer de novo.
Transcrito de http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/04/mal-assumindo-protagonismo-alerta-pastor-sobre-golpe-dilma-8613.html
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