sexta-feira, 24 de abril de 2015

O nazismo e a guerra como matéria-prima dos romances de Günter Grass

RIO - O romance “O tambor” é considerado o mais emblemático de Günter Grass ao retratar a Alemanha na primeira metade do século XX. Por que a obra alcançou tanta repercussão, entre elogios e críticas?

De todos os livros escritos por Günter Grass “O tambor” ficará muito provavelmente como o mais significativo. É de uma força narrativa incomum, que não foi superada ou alcançada por nenhuma outra obra posterior. O sucesso estrondoso desse romance deve-se também ao fato de que o narrador (o gnomo Oskar Matzerath) toca em tabus e pontos nevrálgicos da sociedade alemã do pós-guerra, relacionados não só ao período nacional-socialista e à guerra, mas também à religião, moral, sexualidade etc. É por isso que Hans Magnus Enzensberger abre uma das primeiras resenhas sobre “O tambor” com a constatação: “Se ainda há críticos na Alemanha, ‘O tambor’ irá provocar gritos de alegria e de indignação”. Com esse livro Grass teria conquistado o direito, segundo Enzensberger, “de ser execrado como um escândalo satânico ou então enaltecido como escritor de primeira grandeza”. Uma resenha não só pioneira como também extremamente clarividente.

Na Trilogia de Danzig, Grass abordou a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra do ponto de vista alemão. Como ele conseguiu narrar eventos tão traumáticos?

Grass vivenciou a transição para o nazismo e os anos de guerra na antiga cidade-livre de Danzig (a atual Gdansk polonesa), durante os anos de infância e adolescência. Esses acontecimentos o marcaram profundamente, e ele soube encontrar a linguagem literária adequada para transfigurá-los em sua Trilogia de Danzig, cerca de 1.500 páginas de incomparável força épica. Grass elaborou também complexas perspectivas narrativas nessas obras, que apresentam os fatos — o grande exemplo é o romance “Anos de cão”, com seus três narradores, Eduard Amsel, Harry Liebenau e Walter Matern — do ponto de vista da vítima, da testemunha e do perpetrador.

Grass teve posições políticas fortes e se envolveu em polêmicas dentro e fora da Alemanha. Há cruzamentos entre seu posicionamento político e a sua literatura?

Sua literatura sempre teve forte substrato político, ainda que anti-ideológico, pois Grass sempre foi ferrenho adversário de “ideologias”, entendidas no sentido adorniano de “ocultamento” das coisas. Agora, o poema de 2012 sobre Israel, país do qual ele sempre foi defensor, não se inclui certamente entre o que há de melhor em sua produção literária. O poema “O que deve ser dito” — sobre Israel, Irã, a Palestina e toda a situação no Oriente Médio — é bastante problemático enquanto "poema" e sequer pode ser colocado ao lado de seus melhores textos líricos. Mas deve ser respeitado enquanto posicionamento político do cidadão Günter Grass.

Em “Nas peles da cebola”, Grass revelou sua participação na tropa de elite nazista durante a Segunda Guerra, pelo que foi muito criticado. De que forma essa experiência marcou o seu trabalho?

Segundo essa confissão tardia, aos 15 anos ele alistou-se voluntariamente nas forças armadas alemãs, movido pelo desejo de escapar à estreiteza familiar e pequeno-burguesa de Danzig; preterido por causa da idade, ele recebe dois anos mais tarde, em fevereiro de 1945, a convocação para integrar as “Armas SS”. De acordo com a reconstituição autobiográfica, o jovem soldado Grass não teria disparado um único tiro até ser ferido no dia 20 abril de 1945. Mas a vergonha pelo fato de ter pertencido, ainda que passivamente, a essa organização criminosa, responsável por inúmeros massacres da população civil e dos prisioneiros de guerra, fez Grass calar-se sobre o fato ao longo de toda a sua vida. A necessidade de trazer à tona essa vergonha, confessar publicamente o remorso ou sentimento de culpa, foi uma das motivações para a redação da autobiografia. Se considerarmos que quase todos os narradores da Trilogia de Danzig escrevem a partir de um sentimento de culpa, então podemos ver retrospectivamente nesse elemento de “perspectiva narrativa” o influxo da experiência, recalcada ao longo de mais de 60 anos, de ter pertencido às “Armas SS”. Mas para julgar de fora esse fato é preciso considerar que se tratava de um adolescente de 16 ou 17 anos, submetido durante toda a infância à “lavagem cerebral” nazista e sem poder contar com uma orientação política por parte dos pais, da escola, igreja ou de outra instância.

Transcrito de http://oglobo.globo.com/cultura/livros/o-nazismo-a-guerra-como-materia-prima-dos-romances-de-gunter-grass-15862069

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