A Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio publica na íntegra, e exclusivamente, o artigo de Affonso Romano de Sant’Anna, autor dos recentes “Ler o mundo” (Ed.Global) e “Sisifo desce a montanha” (ED. Rocco), parcialmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
O Ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional, em cuja gestão foram criados o Sistema Nacional de Bibliotecas e o Proler, é membro do Conselho de Desenvolvimento da Cátedra, e convida a discutir:
O leitor, cadê o leitor?
Os editores brasileiros revelam que estão publicando livros “demais”. Isto é uma verdade ou um mal entendido? Luiz Schwarcs, da Cia das Letras disse que publica 280 títulos por ano e que “não dá para crescer mais com obras de mercado, até porque o mercado está muito competitivo (...). Há editoras que hoje não conseguem entrar em redes de livrarias com um exemplar de algum título. Há uma superprodução. De livros, escritores, editores, um número de editoras grande surgindo.”
Sergio Machado, Ed. Record, informa que em 2010 o Brasil editou 55 mil títulos, numa média de 210 obras por dia. Só a editora Record coloca no mercado 80 títulos por mês. Seu proprietário revela que tem dois milhões de livros em galpões que lhe custam uma despesa alta.
Há uma crise no ar. Uma crise paradoxal. De excesso e de carência. Excesso de livros ou carência de leitores? Assim como um copo com metade de água pode ser visto como um espaço metade cheio ou metade vazio, permitam-me examinar a questão por outro ângulo, fazendo uma correção: o Brasil não produz livros “demais”, o Brasil produz leitores de menos. Há que “produzir” o leitor. E não estou falando de alfabetização. Essa cadeia do livro não existe sem o destinatário: o leitor. Não há excesso de livros, há falta de bibliotecas, de livrarias e de leitores. Há, por outro lado, centenas de iniciativas governamentais e particulares tentando corrigir isto. Todos, não só os editores, temos que modificar o conceito de livro, livraria, biblioteca, leitor e leitura, pois na verdade todo esse sistema em torno do livro está em crise (ou metamorphose).
Mas que crise é essa? Vejamos:
Crise editorial
1. Atualmente os editores estão disputando um mercado de eleitos, um mercado mínino de consumidores. Ninguém sabe quantos são. Há quem ache que leitores de livro no país não cheguem a 20 milhões. Ser forem 30 seria igualmente vergonhoso. E mais: um desperdício econômico e cultural lastimável. E os outros 170 ou 180 milhões, onde estão? Estão apenas anestesiados pela sociedade do espetáculo?
2. Dizem as estatísticas que as editoras produziram em 2010, 23% mais livros que em 2009. Mas a perplexidade continua: tirante os best selleres que têm uma dinâmica especifica, as edições dos livros “normais” continuam em torno de dois a três mil exemplares. Se lembrarmos que quando o país tinha 30 milhões de habitantes (em torno de 1920) as edições eram de 500 exemplares, veremos que há algo errado no nosso “progresso”. Naquele tempo, cerca de 60% da população eram de analfabetos, hoje dizem que são 9%. Façam a conta com os 200 milhões de habitantes hoje. Portanto, há algo errado não apenas com a produção de livros, mas com a “ produção” de leitores.
3. A indústria editorial tem duas características: a) vive em grande parte de vender para o governo; b) disputa ferrenhamente um reduzidíssimo mercado de leitores. A parte disto, entrou a terceira variável: c) grupos multinacionais adquiriram editoras brasileiras e lançam aqui autores e títulos estrangeiros que competem e/ou reprimem o consumo de autores nacionais. Não se trata de ser contra ou a favor, mas uma constatação. É o preço da globalização. E o Brasil, grande exportador em outras áreas, é um grande importador de obras estrangeiras. Nossos editores e agentes literários vão a Frankfurt e outras feiras para comprar, não para vender. Será que nossa literatura é tão precária que não é competitiva?
4. Estatísticas recentes da Câmara Brasileira do Livro dizem que o número de livros vendidos no país aumentou 13,12%. Ótimo. Mas isto se insere dentro deste contexto de disputa do mesmo público leitor. Começa agora uma luta pela conquista da classe C. Isto levanta outra questão: - Que tipo de livro está sendo vendido? O que é o fast reading (tipo sanduíche, “fast food”) e o que é livro com importância modificadora para a cultura?
5. A mesma notícia diz que o mercado do livro movimentou R$ 4,2 bilhões em 2009. Maravilha! Mas é curioso que este é o mesmo montante da indústria de cerveja. É intrigante que se veja tanto anúncio de cerveja e quase não se veja anúncio de livro. Claro, o governo não compra cerveja, mas compra livro. E isto se é uma solução para alguns editores, só é um elemento complicador na relação paternalista de nossa tradição.
6. O governo federal através da Fundação Biblioteca Nacional criou na administração de1990/1996, programa de bolsas de tradução de obras brasileiras, trouxe ao Brasil agentes literários estrangeiros e diretores de suplementos literários dos principais jornais do mundo para divulgar nossa literatura, e começou a participar e organizar feiras internacionais de livros e a dar suporte a uma política nacional do livro, da biblioteca e da leitura. Isto não é suficiente, tem que ser ampliado e melhorado.
Crise nas livrarias:
1. O censo da Associação Nacional de Livrarias diz que em 2009 havia 2.980 livrarias no país, ou seja, uma livraria para cada 64.255 habitantes. Segunda a UNESCO deveria haver uma livraria para cada 10 mil habitantes. Façam a conta e vejam nosso débito. As livrarias, a exemplo das mega livrarias, continuam concentradas nos bairros mais prósperos. Os subúrbios e maioria das cidades brasileiras não conhecem esse comércio.
2. Paradoxalmente quem entra em uma das raras livrarias hoje se escandaliza com a enorme quantidade de títulos que se revezam nas estantes, livros que surgem e morrem rapidamente. Diz-se que hoje o tempo de vida útil de um livro é de três meses. Se não vendeu, desaparece. As editoras até pagam para ter seus livros expostos em lugares privilegiados nas livrarias.
3. O “excesso” e a “rotatividade” de livros fazem com que os funcionários não consigam informar com segurança o que há nas estantes, nos estoques ou o que está esgotado. Muitos livros procurados estão no imponderável, no “estoque” ou, às vezes, nem aparecem na tela do computador.
4. Com isto, os “sebos” e “estantes virtuais” passaram a ser o lugar para se encontrar obras mais duradouras.
Crise no ensino
1. Nos anos sessenta a reforma de ensino introduziu o sistema de créditos, seguindo modelo americano, e acabaram, por exemplo, os cursos de línguas neolatinas, anglo-germânicas e clássicas. Um aluno de neolatinas antes estudava a literatura e a língua francesa, a espanhola, a hispano-americana, a portuguesa, a brasileira e a italiana. Escrevia trabalhos nessas línguas. Com a reforma, ao invés de o aluno estudar várias literaturas e escrever trabalhos em várias línguas, passou a se “especializar” só em português e uma outra língua e literatura.
2. Concomitantemente, também nos anos 60, no ensino médio se substituiu o português e a literatura pela “comunicação e expressão”. Iniciou-se um processo de desprestígio da leitura e da literatura. Contaminados pela ideologia da “comunicação”, que entrou na moda nesta época, chegou-se a eliminar a palavra “literatura” dos currículos. Como mostrou Luis Augusto Fischer em ensaio recente, estuda-se letra de música no lugar de poesia, e mais recorte de jornal e história em quadrinho que romance. Daí que Jim Davis (do Garfield) e Bob Thaves (da tira “Frank e Ernest” apareçam mais que Graciliano Ramos e João Cabral.
Crise do escritor
1. Houve sim um aumento do número de escritores. A sociedade da comunicação facilita a publicação. Todos querem ser lidos e vistos.
2. A partir dos anos 70 surgiu uma geração de escritores viajantes que percorrem todo o país indo ao encontro do público, ao contrário das gerações anteriores, mais sedentárias, e os escritores eram sobretudo funcionários públicos localizados no Rio de Janeiro.
3. Há cursos de criação literária aqui e ali. Surgiram, ainda que timidamente, as bolsas para os escritores. Mas as livrarias não cresceram proporcionalmente e as bibliotecas muito pouco.
4. Nessa crise, que é de todo sistema em torno do livro, o autor está muito inconfortável. Ela passa grande tempo elaborando um livro, se o livro não dá certo, ele é o primeiro a ser prejudicado. Lá se vão três, cinco ou mais anos de trabalho pelo ralo. Já o editor, como lançou dezenas de livros, vai se safar, se compensar com os outros. Se o livreiro não vende um, vende outros. Não é assim com o autor.
Crise nas bibliotecas
1. Nos anos 90 a Fundação Biblioteca Nacional constatou que havia cerca de 3.000 municípios sem biblioteca. Foi lançada na ocasião a campanha “uma biblioteca em cada município”. Somente 15 quinze anos depois, com Gilberto Gil/Juca Ferreira no Ministério da Cultura se conseguiu implantar uma biblioteca em cada município (excetuando uma meia dúzia de prefeitos que acham que biblioteca é dispensável).
2. Criou-se nos anos 90 o Sistema Nacional de Bibliotecas com encontros e seminários nacionais, estaduais e municipais e a tentativa de mudança de mentalidade das bibliotecárias e bibliotecários, pois na sociedade informatizada a biblioteca e seu funcionário teriam outro papel: servidor de informação e não apenas de catalogador ou guardião de livros.
A crise, a leitura e o Pré-sal
1. Urge uma outra compreensão, não apenas do seja livro, livraria, biblioteca, editor, mas sobretudo do que é leitura.
2. Leitura não se limita à “alfabetização”.
3. Leitura não se limita à escola: trata-se de formar uma sociedade leitora, condição sine qua non para o país enfrentar os desafios do século XXI.
4. Por isto, é urgente uma Política Nacional de Leitura que atravesse não só todos os ministérios, mas seja uma determinação da Presidência da República. Como poderia dizer: Leitura é uma questão de segurança nacional.
5. Considerada a leitura como algo além da escola, algo além da alfabetização, algo que vai lidar com o “analbetismo funcional” e com o “analfabetismo tecnológico”, haverá (como já começa a haver) programas de leitura em hospitais, quartéis, fábricas, sindicatos, empresas, tribos indígenas, igrejas, condomínios, acampamentos agrários, comunidades quilombolas, favelas, programas para aposentados e programa para cegos, surdos, mudos e outros deficientes físicos, e etc.
6. Nos últimos anos, “agentes de leitura” e “mediadores de leitura”se espalharam pelo Brasil. A experiência positiva dos agentes de leitura no Ceará, foi levada para o Ministério da Cultura e expande-se em vários estados. No Acre, foram criadas mais de cem Casas da Leitura interagindo com uma nova maneira de ler a cultura e a natureza. Os agentes ou “mediadores de leitura devem chegar a 15 mil brevemente e têm sido treinados por instituições como a Cátedra de Leitura da PUC/RJ. O ideal é que se mesclem com os “agentes de saúde” e aos “médicos de família”.
7. Nessa redescoberta da leitura, onde havia apenas o Instituto Nacional do Livro espera-se a criação do Instituto do Livro e da Leitura e a nova administração da Fundação Biblioteca Nacional planeja construir 25 mil bibliotecas populares com livro de qualidade a $10 reais.
8. Enfim, a leitura é o verdadeiro pré-sal. O petróleo em si não resolve os problemas básicos de um país. Há países que têm petróleo e têm terríveis desigualdades sociais e opressão política. Ha países que não tem petróleo e estão na ponta do processo civilizatório. E todos os países que realmente se desenvolveram passaram pela leitura. A leitura torna os livros vivos e desenvolve os países.
Leitura equívocos e acertos:
É recente a emergência da Leitura e do Leitor no panorama brasileiro. O Leitor e a Leitura até há pouco foram elos invisíveis, não falados, diria até reprimidos ou esquecidos dentro de um sistema que parece pouco sistêmico.
Cito casos sintomáticos de como nossa elite vê a questão da leitura:
1. Edson Nery da Fonseca, conhecido bibliotecário narra que, nos anos 50, ao questionar Lúcio Costa porque não havia projetado uma biblioteca pública para Brasília ouviu a seguinte resposta- Esse negócio de biblioteca pública nunca deu certo no Brasil.
2. Quando apresentei publicamente os projetos de leitura da Fundação Biblioteca Nacional, nos anos 90, numa reunião do MINC, ouvi do ministro Antonio Houaiss esta frase: “leitura não é um assunto prioritário no meu ministério”.
3. Apos ouvir uma conferência de Eliana Yunes- uma das maiores especialistas em leitura no país, um alto dirigente da Câmara Brasileira do Livro me disse: “quando mais ouço a Eliana, menos entendo o que ela quer”.
4. Não estranha que o ex-Ministro Weffort (ex-genro de Paulo Freire) secundado por Eduardo Portela, tenha sabotado o Proler e os projetos de leitura em curso no país (1996) e que somente 10 anos depois (em 2006) na administração Lula/Gil/Juca Ferreira a leitura voltasse a ser prioritária.
Contrastando com esse tipo de incompreensão, a reação de pessoas do povo é mais sábia. Há centenas, milhares de exemplos. Só o projeto “Viva Leitura”, patrocinado pela Organização dos Estados Iberoamericanos e a Fundação Santilhana, listou cerca de 10 mil projetos, dos quais destaco três:
1. Luiz Amorim, dono de um açougue em Brasília, decidiu fazer dentro de seu estabelecimento uma biblioteca. Chegou a ser condenado pela Saúde Pública. Resistiu. Hoje seu projeto cresceu, a população da cidade participa do que se transformou num grande centro cultural. Além de expandir seu negócio começou a por bibliotecas nos pontos de ônibus.
2. Em Sabará, Marco Túlio Damasceno criou a Borrachoteca dentro da borracharia que era de seu pai e já tem três filiais.
3. No Complexo do Alemão (RJ) enquanto zuniam as balas entre os traficantes e a polícia, Otavio Santanna, que já era um agente de leitura e tinha uma biblioteca móvel, começou projetos para construir uma Barracoteca.
Suponho que devam existir cerca de 15 projetos de leitura no país.
Leitura, descoberta recente
A evolução semântica e social da questão do livro no Brasil passou por algumas fases bem sintomáticas no último século:
1. Em 1918 com a experiência da edição popular do “Sacy” Monteiro Lobato, através de sua experiência no jornal “O Estado de São Paulo”, cria a indústria editorial brasileira. Até então os livros eram publicados por editoras estrangeiras (Garnier e Lammert) a atendiam a 30 pontos de venda. As edições eram de 500 exemplares. Lobato levou o livro a todo o país e chegou a vender 11.500 exemplares de um único livro em um ano.
2. Em 1935, Rubem Borba de Moraes reinventa a biblioteca pública ao estruturar a biblioteca municipal de São Paulo, criando (com Mário de Andrade) novas seções abertas à cultura popular. Descentraliza ações com bibliotecas volantes pelos bairros.
3. Em 1937, o governo federal cria o Instituto Nacional do Livro, dirigido por Augusto Meyer, com colaboração de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Hollanda, com o objetivo de fazer uma enciclopédia brasileira. Posteriormente o INL começou a fazer coedições de livros que eram mandados para bibliotecas públicas. (Quando assumi a Fundação da Biblioteca Nacional (1990) encontrei em Brasília 200 mil exemplares do INL encalhados, que distribui imediatamente para as bibliotecas).
4. Em 1961 Paulo Freire - Diretor do Departamento de Educação, no Recife - põe em prática seu método de alfabetização ensinando plantadores de cana a ler em 45 dias. Essa experiência de “ler o mundo” foi interrompida pelo golpe de 64.
5. Em torno de 1980 a universidade redescobre a leitura. Em 1981, em Campinas, surge a Associação Brasileira de Leitura do Brasil (ALB) e o COLE (através de Ezequiel Theodoro) e cria-se a Jornada Nacional de Literatura (Universidade de Passo Fundo) coordenada pela profa. Tânia Rosing. A “teoria da recepção” criada na Alemanha por Iser/Juass se interessa academicamente pelo receptor/leitor, mas restringe-se aos intramuros universitários.
6. A criação do PROLER (1992) coordenado por Eliana Yunes dentro da Fundação Biblioteca Nacional é o inicio de uma “política do livro e da leitura” como questão de Estado. Já não se trata apenas de editar livros, já não se trata da alfabetização ou de uma visão acadêmica da leitura. A palavra leitura/leitor desentranha-se do livro, da biblioteca, da alfabetização, da universidade e ganha amplitude social. Com a criação da Cátedra da Leitura PUC/UNESCO (2006) a universidade leva socialmente para fora de seus muros a questão da leitura.
7. Por outro lado, em 2006 o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), com José Castilho, une sociedade civil e o governo começa articular a criação de um Instituto do Livro, da Leitura e das Bibliotecas, propõe o “vale cultura” e em 2011 Galeno Amorin da FBN se empenha na construção de 25 mil bibliotecas populares.
Inclusão digital e a leitura
Tem-se falado muito de “inclusão digital”. O Ministério da Comunicação (GESAG) informa que “telecentros” estão sendo implantados em todo país e já existem 13.379 em 5.564 municípios. Eles podem ter o papel que as bibliotecas convencionais deveriam ter tido. Os “promotores de inclusão digital” são irmãos gêmeos dos recentes “agentes de leitura” ou “agentes de cultura”. Os telecentros oferecem 6.200 kits do MC às prefeituras. O telefone portátil, o Ipad o Google são uma realidade. Os 200 milhões de telefones portáteis são 200 milhões de bibliotecas em potencial à espera de nossa criatividade. Assim como um viajante do sec XVIII tinha uma maleta de viagem em que carregava algumas dezenas de livros para ler, hoje pela internet todos podem ter uma biblioteca em suas mãos, seja nas margens do Tocantins ou na cochilas do Sul.
Se não conseguimos em 500 anos colocar uma biblioteca em cada canto do pais, por outro lado, cada cidadão está se convertendo, à revelia de nossa incompetência histórica em um "consumidor" de informação através da informática, do Google, da internet. Se temos apenas 2.600 livrarias e 2.500 cinemas, é bom que nos espantemos e nos rejubilemo-nos com o fato de que temos 109.000 lan houses e que só uma favela como a da Rocinha, que tem apenas uma biblioteca heroicamente construída e seguramente não tem nenhuma livraria, tem, por outro lado, 200 lan houses.
O que não foi feito em 500 anos, hoje graças ao universo digital, pode constituir-se em uma conquista rápida e uma reparação. Isto não significa que não se construam bibliotecas e não se comprem livros, apenas que há meios de acelerar o consumo de livros e promover a leitura. Mas aqui torna-se irrecusável contar uma história verdadeira que narrei na recente Jornada Literária de Passo Fundo quando Alberto Manguel e Kate Wilson debatiam equivocamente sobre esse tema. Diz-se que o Marechal Rondon, no principio do século passado, foi designado para conquistar grande parte do território brasileiro levando a comunicação através de postes e fios que conduziam mensagens telegráficas. Depois de ter instalado praticamente em todo o país esse sistema de comunicação ao colocar o último poste na fronteira da Bolívia foi surpreendido com a notícia de que Marconi havia acabado de descobrir o telégrafo sem fio.
Cem anos depois a situação se repete. Conseguiremos fazer na era do livro eletrônico o que não conseguimos fazer na era do livro impresso?
O Brasil está vivenciando três fatos novos: 1) primeiro a invasão da eletrônica em nossa vida cotidiana, nos jogando em outra era. 2) Em segundo lugar o surgimento de outras gerações chamadas de X,Y.Z pelos especialistas em marketing: jovens que vivem zapeando. São “dispersivos”, fazem várias coisas ao mesmo tempo, não têm o sentido de "concentração" unidirecional que era a nossa. Nós os achamos superficiais, Mas, e se estivermos realmente diante de um fenômeno de mutação não exatamente genética, mas cultural? Um daqueles momentos de point of no retur, que remete para a metáfora que McLuhan usou: a lagarta assustada olhando uma borboleta em seu esplendor, dizia: eu nunca me transformarei num monstro daqueles…
3) Em terceiro lugar, a emergência das classes C,D, e E que até agora estavam fora do mercado, da comunicação e da cultura livresca A todo instante nos dizem de estratégias de marketing `a procura desses novos "índios" que a sociedade de consumo quer incorporar catequizando-os com o evangelho da sociedade do espetáculo. Fabio Mariano da ESPM diz que os jornais não conseguiram chegar a 60% das classes C, D e E, constituída por pessoas com menos de 30 anos. “Os jornais brasileiros não entendem essas classe C, estão distantes. Quando a gente fala de classe C, falamos de um século de exclusão, sem saúde, sem saber o que é política”.
Some-se a isto o fato de haver hoje 200 milhões de celulares. São 200 milhões de bibliotecas volantes a espera de nossa criatividade. Um jovem na margem esquerda de um afluente do Amazonas pode ter, de graça, acesso aos clássicos brasileiros e estrangeiros sem precisar sair de casa.
Lembremos: o aprendizado já foi oral - o essencial era o uso da memória. Com a evolução o saber passou a ser escrito. Hoje passa pelo visual. Ou pode-se dizer, é oral, é escrito e também visual. O oral, o escrito e o visual se complementam.
Há um novo universo da leitura, além do livro. O livro está se metamorfoseando. O leitor também tem que se metamorfosear. Como tem que se modificar o editor, o livreiro, o jornalista, o publicitário e todo o sistema da escrita e de representação simbólica. De uma certa maneira, somos todos analfabetos.
Não é vergonhoso dizer que não se esta entendendo bem as coisas. O Búlgaro Karl Valentin dizia ironicamente: "O futuro era melhor antigamente". E há essa irônica frase italiana stavamo meglio quando stavamo peggio.
Quero dizer, que os "leitores virtuais" se adiantaram. A indústria fonográfica está caçando avidamente seu público, as lojas virtuais estão pululando. Por que a indústria da produção do livro tarda tanto em descobrir a indústria da leitura? Por que disputar os mesmos minguados leitores entulhando toneladas de livros que serão rapidamente destruídos antes de serem lidos.
É como se os habitantes da Somália e da Etiópia, famintos, tivessem que assistir no seu acampamento de refugiados, alguns se banqueteando e jogando comida na lata de lixo enquanto eles morrem à mingua.
E o Brasil nisto?
Fomos pegos por uma tsumani. Só que a onda, (terceira, quarta, quinta?) envolve todo mundo, dá volta ao Globo e causa modificações de acordo com a natureza ou acidentes geográficos e culturais de cada região.
Em tempos de feroz globalização, é bom lembrar que a antropofagia é própria dos seres vivos, e que Darwin tem razão ao falar da seleção das espécies. Apenas temo que as espécies mais ferozes, não necessariamente as mais inteligentes sobrevivam.
Quando me refiro à leitura estou me referindo também à liberdade. A verdadeira leitura liberta e problematiza a própria leitura e a própria liberdade. O livro em si, ou a leitura fanática de uma única obra ou pensamento não amadurece o individuo e a sociedade. Há sociedades que deram o livro ao povo, mas não deram liberdade de pensamento. Quando estive na Rússia, exatamente na semana em que o comunismo acabou, há 2o anos, naquele mês de agosto de 1991, reuni-me com editores soviéticos e soube para meu espanto que tinham mais de 200 mil bibliotecas. E nem por isto… Também as edições dos autores oficiais do partido, mesmo poesia, chegavam a milhões de exemplares. E nem por isto…
Em algumas ocasiões tenho dito que provavelmente somos a última geração letrada. Gostaria de estar equivocado, que o futuro me desmentisse. Ou que descobrisse, descobríssemos formas novas de ler. Se olharmos a história do Brasil podemos detectar três momentos culturais e econômicos relevantes que nos forçam a uma decisão crucial no presente:
1) A febre do ouro e das pedras preciosas ocorreu quando éramos colônia e essa riqueza escoou para os cofres dos dominadores. Isto foi diferente do que ocorreu com os Estados Unidos, que já era independente quando a “corrida do ouro” ocorreu na costa leste.
2) Tendo perdido essa chance, perdemos também a chance da revolução industrial nos séculos XVIII e XIX, porque aqui predominava a escravidão, a cultura agrária e a coroa brasileira era apenas cliente dos produtos industrializados europeus.
3) Estamos diante da revolução digital. Se perdemos as duas revoluções anteriores, hoje há algumas coincidências: a revolução digital chega com a avassaladora globalização, no momento em que o Brasil auto suficiente de petróleo incorpora outras classes e descobre o pré-sal
Repito, para terminar: o verdadeiro pré-sal é a cultura e/ou a leitura. Os animais, os peixes, as árvores e até as bactérias lêem constantemente o mundo antes de tomarem qualquer decisão. Por que o ser humano insiste em andar às cegas no universo da comunicação?
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