sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Os sinos que unem John Donne, Hemingway e Raul Seixas

Elder Dias

Com raras exceções, já se vão longínquos os tempos em que a Igreja era a referência de uma comunidade em todos os assuntos, inclusive em termos de comunicação. Com TV, computador, internet e celular à mão, soa anacrônico e até jocoso, além de improvável, imaginar que o sino de uma capela pos­sa anunciar a uma população inteira um novo fato da localidade.



Mas era assim quando em 1764 o escritor e clérigo anglicano John Donne, um parente de São Thomas More, santo católico decapitado pelo rei Henrique VIII, padroeiro dos políticos — que era tio-avô de Elizabeth Heywood, mãe de Donne —, redigiu, em sua “Meditação 17” o trecho hoje famoso: “Nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti” (“And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee”). Na segunda metade do século 16 e na primeira do século 17, quando viveu John Donne, a igreja era o lugar, Deus, o fim e a fé, o meio; nada mais natural que os religiosos centralizarem a comunicação da época.

A citação no parágrafo anterior é parte do trecho com que Ernest Heming­way abre “Por Quem os Sinos Dobram”, livro de 1940, que receberia versão para o cinema três anos depois — com direção de Sam Woods e roteiro de Dudley Nichols — com direito a um Oscar (de me­lhor atriz coadjuvante, com Katina Paxinou) e indicação para mais oito categorias, entre elas a de melhor filme.

Apesar de cético, He­mingway tem muito de influência do anglicano John Donne. A citação do inglês no livro, portanto, é mais do que uma simples referência: talvez esteja mais para deferência, ou até reverência. O que chega a ser uma ironia: Donne, um dos principais arquitetos do pensamento de Hemingway, esteve no porão até seu reaparecimento, no preâmbulo de “Por Quem os Sinos Dobram”. O escritor estadunidense tornou-se, portanto, o arauto contemporâneo da voz importante, mas esquecida, de séculos atrás.

Em comum, embora de formas diferentes, Donne e Hemingway tinham em si a chama do existencialismo. John Donne, especialmente no período em que produziu as “Meditações”, quando esteve acometido de uma doença grave, dialogou com a morte em seus escritos.

Hemingway, por sua vez, sempre se referiu à inevitabilidade do fim da vida — e com isso à desesperança e à futilidade das coisas — como tema de suas obras. Ele mesmo tinha visto a morte de perto como vo­luntário durante a 1ª Guerra Mundial e depois como jornalista, ao cobrir a 2ª Guer­ra e a Guerra Civil Espa­nhola, que inspirou “Por Quem os Sinos Dobram”. O personagem principal do romance é Robert Jordan, que, como vários em suas histórias, tem muito de “alter ego”: em uma cena, Jordan joga em um lago a pistola que era de seu avô, soldado na Guerra Civil americana e com a qual seu pai se matou.

A referência é clara à morte do pai do próprio escritor, Edmond, em 1929. Com a saúde abalada e em meio à crise financeira após a quebra da Bolsa de Nova York, ele se suicidou. A mãe de Hemingway, Grace, em uma atitude enigmática, enviou a ele pelo correio a pistola usada por Edmond no ato. Hemingway morava, então, na Flórida, com Pauline Pfeiffer, a segunda das quatro esposas que teve. A proximidade do escritor com temas como depressão e suicídio se agravou a partir da década de 1950, quando passou por diversos problemas de saúde. Em 1961, ele se deu um tiro com a espingarda que usava para matar pombos. Morava em Ketchum, no Estado de Idaho (EUA), onde foi sepultado. O sino que então dobrou por Edmond já dobrava também pelo filho. O trecho do sermão de Donne no livro tinha se tornado uma ironia cruel no destino de Hemingway.

“Por Quem os Sinos Dobram” influenciaria também o pensamento de um controverso e genial artista brasileiro: Raul Seixas, que batizou seu 9º álbum — e uma de suas canções — com esse título. Além de leitor de Hemingway, Raul devorava também outros escritores e filósofos — suas canções tem, por vezes, claras inspirações em Niet­zsche, por exemplo. E como Donne e Hemingway, o roqueiro baiano também tinha, em toda a sua obra, uma dialética particular com a morte, o que fica explícito em “Canto Para a Minha Morte” (… vou te encontrar vestida de cetim/ Pois em qualquer lugar esperas só por mim/ E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo,/ mas tenho que encontrar…”).

O pensamento e as palavras dos escritores deveriam levar a ricas reflexões de seus leitores, sobre o que cada um tem feito de sua própria caminhada. O problema é que o ritmo da vida no século 21 não deixa muito espaço para tanto. Leitores de Donne e Hemingway há poucos; leitores que os interpretem de forma profunda, muito menos. Os sinos continuam dobrando para cada um, hoje em formato tecnológico, seja por meio da música do plantão do “Jornal Nacional”, seja em um “trending topic” do Twitter. Quase ninguém se dá conta de que suas ressonâncias são também um pré-réquiem pessoal.

Para quem quer entrar no mundo metafísico de John Donne, a Editora Landmark lançou um volume com as “Meditações”, em edição bilíngue, disponível também em forma de e-book. Sobre “Por Quem os Sinos Dobram”, é o romance de Hemingway que aparece entre os 100 livros do século 20, em lista elaborada em conjunto pela Fnac e pelo “Le Monde”. Curiosamente, “O Velho e o Mar”, considerada a obra-prima do escritor e que o levou ao Prêmio Pulitzer em 1953 e ao Nobel de Literatura em 1954, não está relacionado.

Transcrito de http://www.revistabula.com/1553-os-sinos-que-unem-john-donne-hemingway-e-raul-seixas/

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