Graça Taguti
Pensava pequenino, esse grande menino. Gostava de revirar pontuações nas poesias e na cabeça de pensamentos ondulantes. Engasgava na política dos pontos e vírgulas: sobrevoava os lentos e dúbios acasos das reticências infinitas. Duvidava de tudo, até das interrogações. Pois questionava o que já nascera pronto, rígido e sem jeito de mudar.
Pensava pequenino, esse grande menino. Gostava de revirar pontuações nas poesias e na cabeça de pensamentos ondulantes. Engasgava na política dos pontos e vírgulas: sobrevoava os lentos e dúbios acasos das reticências infinitas. Duvidava de tudo, até das interrogações. Pois questionava o que já nascera pronto, rígido e sem jeito de mudar.
Certas horas se interjeitava, segurando uma interjeição bem alta, quando um bambuzal resolvia assoviar pra ele. Namoros de recantos livres ao ar livre, que aconteciam mesmo sem vento nem abanos de alguma espécie. Sussurros já davam conta, assim semeados pelo caminho dos sonhos.
Esse menino Manoel de Barros sempre teve todas as idades, desde o primeiro choro no parto fresco. Um berro da infância já se anunciava todo cúmplice dos vãos e desvãos da natureza.
Encontrava fechaduras em troncos de árvores longevas. Elas usavam monóculos. Árvores do tempo quase um tanto carecas. Ele, com suas poetices, valia-se vez por outra de telescópios. Pra enxergar um ziguezague corrido de minhocas. Um rabo afoito de lagartixa, que nasceu pra crocodilo, mas parou no meio do percurso da genética.
Doce rebelde este moço pantaneiro, que resolveu botar o mundo desavisado de cabeça pra baixo. Sabia que antena de formiga servia de wifi, mas na roça, pra quê? Que pedra é muito menos severa do que parece, escondida em suas rugas cinzentas. Era só deixar um pé de água doce palmilhar a pedra em frente, que logo surgia um escorrega pra criançada descer, limo abaixo feito peixe de terreno.
Esse moço de sorriso largo demais viveu de mansinho. Sem pressa de atravessar um século inteiro como atravessou. Aí aprendeu a fazer tira-gosto de palavras. Encaixotar parágrafos. Abrir a palma das mãos pra receber gota gelada dos ventos e perceber que andorinhas choravam orvalho, nas altitudes das nuvens e sem que a gente desconfiasse. Pode?
Certos dias, Manoel saía de braços com o sol e diziam que ele então tinha perfil de puro trigo. Dourado como espiga, mas sem bestice, por estar na situação de breve e acalorado caso com o astro rei.
Semana sim semana não se anoitava com estrelas cadentes, brilhando feito ouriço do céu. Fazia colar de luz, despia a camisa, encostava a joia contra o peito. Pros cavalos de pasto no entorno não havia ninguém com o coração mais galopante que o poeta. O amor quase relinchava em forma de soneto dedicado ao enfeite de estrelas.
Mas faltava uma moça do campo pra oferecer o brilho desta prenda e dançar com ela uma fanfarra. As meninas estavam longe, esticando palavras e moendo números pra começar a conversar com os ditos e não ditos da escola.
Manoel se desmanchava a lamber com os olhos as cores das saias das mocinhas que gemiam baixinho – as mocinhas e as saias arfavam diante dessa sedução versejada em silêncio.
Um dia um pensamento passeou nos seus ouvidos e disse pra ele que a vida era um lego do tamanho do mundo. Que ele poderia encaixar o que quisesse aonde quisesse. Outra imaginação se aproximou, cobriu-se de tintas, aquarelou e expôs um segredo pro Manoel.
Olha rapaz, dá pra despregar palavras dos livros, viu? Jogar orações coordenadas num liquidificador e partir pra misturanças de verbos e advérbios. Um suco temperado na semântica. Uma vitamina no espaço sereno e vespertino de gerar escrituras com belas miudezas.
O poeta apalavrou-se com as possibilidades. Sentiu-se aquoso e ardente como água viva, estrofe salgada como estrela do mar. Também era lagarta cigana de longas jornadas. E gafanhoto de espantos e soluços.
Tudo — da chave enferrujada ao carrinho de madeira. Da chuva descabida deitando nas manhãs verde-esperança — tudo tinha seu alto grau de responsabilidade e significância.
Sopa fumegante de rimas ricas e pobres. Risos frouxos e esquecidos nas bocas sempre abertas pras invisíveis alegrias. Prato cheio de poesia pronta pra servir aos olhos e demais sentidos. Pele eriçada. O moço de letras miúdas se alargava de amantes em penca na escrita, mais que palmeira prenhe, banana nanica, apetitando cachos de saborosidades.
Conseguir se embebedar com o vinho das auroras não é pra qualquer um. E a ressaca, quem cura? Um mergulho de peito no riacho?
Quem dá conta de fruta assanhada, mais oferecida que manga, se esparramando em poemices tarde adentro? Ficava o cheiro manhoso de um gosto novo. Na cara, no corpo, nos pés bem no meio da rua. Cheiro desusado por enquanto, que enrodilhava línguas ingênuas. Eita verso em flor. Madrugada coalhada de rosas. Espinhos servindo de agulha de costura.
Manoel de Barros era assim. Já apresentava terra no nome, entendia de esculpir o universo com simplicidade e eficiência. Bastava uma chuva à toa. Chuva de belezuras. Jardim de encantos e de abelhas. Mel saindo dos poros pra perfumar toda a existência.
Obrigada menino grande ou grande menino, por essas travessuras. Esses folguedos nos versos, essas crianças eternas que brincam de roda pra sempre, nas praças das nossas emoções.
Você é nosso parceiro de festas. E fique sabendo: não tem despedidas nem lenços que deem marcha à ré nessa história toda.
Transcrito http://www.revistabula.com/3449-o-fazedor-de-amanhecer-anoiteceu/
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