Daniel Cassany & Consuelo Allué
Os dispositivos digitais nutrem, enriquecem e complementam a leitura em papel e livro que tivemos até agora. A internet oferece mais estímulos para ler e para desfrutar da literatura
É comum observarmos rostos angustiados em nossas plateias de professores, bibliotecários, docentes e pedagogos quando surge o tema dos suportes digitais (celulares, tablets, e-books, iPads, smartphones, etc.). Os olhos expressam preocupação e tristeza, dando a entender algo como: “Que azar eu tive! Gosto tanto dos livros… e agora me privam deles. O que vai acontecer com a literatura?”.
Na verdade, não vai acontecer nada… Ou vai acontecer muito menos do que imaginamos. Continuaremos lendo literatura como antes, inclusive de modo mais divertido, diferente, criativo e variado. Neste artigo, apresentamos algumas ideias a esse respeito, destacando as novidades trazidas pelo meio digital e sugerindo o que permanecerá igual, o que mudará e as possibilidades que se abrem à nossa volta.
O vinho e as garrafas
Vamos continuar lendo todo tipo de literatura, de elite ou de massa, importante e reconhecida ou mais popular e de consumo, para crianças e jovens ou para adultos. Isso não vai mudar com a substituição dos livros de papel pelos dispositivos digitais.
As crianças continuarão lendo os títulos de suas coleções preferidas de literatura infanto-juvenil, como A ilha do tesouro ou A fábrica de chocolate, a série Harry Potter ou Crepúsculo, O senhor dos anéis, textos de Poe ou Lovecraft, Memórias de Idhún, de Laura Gallego, Frankenstein e Drácula, assim como qualquer outra obra ou série fantástica, de aventuras e outros gêneros que as mídias ou as redes sociais elevem à fama.
Nada indica que essa prática leitora mudará muito com o advento dos dispositivos digitais. Continuaremos lendo o mesmo Lazarillo de Tormes, Celestina ou O livro de bom amor, A Ilíada, A Odisseia, As mil e uma noites e Dom Quixote em nossa tela multicolorida conectada à rede ou em nosso iBook com tinta eletrônica. Poderemos ler inclusive em nosso telefone — se tivermos visão suficiente e paciência para mover os olhos e os dedos em uma superfície tão reduzida. Poderemos comprar esses textos de nossa casa apenas com alguns cliques e em poucos minutos, pagando com cartão de crédito e importando o texto para nossa nuvem ou biblioteca digital.
Está claro que o cânone literário castelhano ou português — assim como o de qualquer outra língua — permanecerá o mesmo. Nossos autores de cabeceira continuarão publicando suas obras em versão digital e em papel para que cada um leia como quiser. Se a pirataria, o streaming musical (Spotify) ou os sites de vendas on-line (como iTunes e Amazon) não acabaram com os músicos, a criação literária tampouco diminuirá ou se perderá com a chegada dos dispositivos digitais.
Na verdade, a oferta de leitura aumenta com a internet, pois é possível comprar e ler qualquer livro on-line, ou saber em que biblioteca há exemplares físicos de determinada obra, ou ainda averiguar os dados de qualquer volume — o que antes era impossível. A rede inclusive incrementou o consumo de literatura em papel. Enfim, não devemos confundir as garrafas com o vinho. A internet trouxe novos recipientes, novos sistemas de produção e distribuição (mais rápidos e eficazes), que nos permitem tomar vinho e saboreá-lo de novas maneiras, o mesmo vinho de antes ou outros que não conhecíamos... E, com esses novos recipientes, podemos usufruí-lo de outras maneiras. A leitura literária enriquece, diversifica-se, complexifica-se.
O que muda?
É evidente que não se bebe do mesmo modo em uma taça, um copo, uma garrafa ou um odre. Por isso, devemos analisar o que muda na leitura pelo fato de utilizar dispositivos digitais. Não é o propósito deste artigo recompilar toda a oferta tecnológica que temos hoje ao nosso alcance: ao enfatizar o recipiente ou continente, perdemos de vista que o mais importante é o vinho. Destacamos apenas algumas mudanças e possibilidades.
1. Navegar na obra
Um leitor digital permite:
aumentar ou reduzir o tamanho e o contraste da letra na tela, conforme nossa acuidade visual, o período do dia, a orientação da luz;
dispor a página na vertical ou na horizontal;
reordenar o texto e recalcular o número de páginas da obra a partir do tamanho de letra e do formato escolhidos;
mover-se interativamente no texto, saltando de uma citação à bibliografia ou às notas de rodapé, e inclusive interromper a leitura e voltar a ela na página em que se parou;
marcar com cores diferentes e preestabelecidas qualquer fragmento de texto e atribuir-lhe uma categoria (frases importantes, erros de linguagem, má tradução, palavras desconhecidas);
escrever anotações ou comentários sobre o texto, guardá-los ou enviá-los a alguma conta de correio eletrônico ou telefone;
fazer buscas por palavras ou expressões e navegar por todos os fragmentos assinalados ou comentários realizados.
São injustificadas as críticas que se costuma fazer aos dispositivos digitais de que eles não permitem sublinhar, tomar notas, pôr sinais e pontos ou utilizar o livro em diferentes ambientes (trabalho, praia, campo, deslocamentos, etc.). Eles igualaram e superaram as práticas de anotação com papel e lápis: o problema é que estamos acostumados a certos hábitos e preferimos mantê-los, o que é certamente legítimo e respeitável.
2. Consultar dados linguísticos, artísticos ou culturais
Se nosso dispositivo está conectado à rede, podemos realizar tarefas como:
buscar no dicionário, em uma base de dados terminológica ou em qualquer outro recurso léxico digital o significado ou a tradução para nossa língua materna de um termo que não entendemos;
usar um tradutor automático ou outros recursos (analisadores morfossintáticos, corpos de textos etiquetados) para resolver dúvidas gramaticais;
consultar algum dado cultural na Wikipedia ou em qualquer outro site informativo de arte, história, etc.;
consultar mapas e fotos dos lugares onde se passa o romance ou o poema que estamos lendo;
pesquisar críticas, resumos e comentários da obra;
consultar fotos e vídeos dos personagens ou fatos mencionados na obra (como trailers de filmes ou trechos de montagens teatrais baseados na obra que estamos lendo, fotos de atores caracterizados para os personagens centrais, fotos das capas de várias edições da obra, fotos e vídeos de festas populares que recriam os fatos da obra, entre outros). Pensemos, por exemplo, em obras populares como La Regenta, Fortunata y Jacinta, Obabakoak, El Quijote ou o Poema de Mío Cid, a respeito das quais foram realizadas séries de televisão, filmes, quadrinhos, versões teatrais, etc.
3. Contatar outros leitores
Vários sites (editoras, instituições, bibliotecas, etc.) permitem:
contatar on-line outros leitores de uma mesma obra para trocar impressões, recomendar obras ou interagir sobre a leitura;
contatar outros leitores de uma obra e estabelecer diálogos em chats, consultas presenciais e trocas de opiniões em fóruns sincrônicos por meio de programas de bibliotecas e clubes de leitura on-line;
optar entre ler a obra de modo “aberto” ou on-line ou de modo “fechado” ou out-line, podendo compartilhar ou não nosso processo leitor com outros leitores conectados;
sublinhar uma frase ou inserir um comentário (alguns dispositivos podem também nos avisar que outras pessoas realizaram ações parecidas no mesmo ponto da obra, fornecer seus nomes e, inclusive, colocar-nos em contato com elas).
4. Criar fanfic, histórias realistas e sequências
Os sites e fóruns que fomentam a produção de literatura digital vernácula (Harrypotter.cat, fanfic.net, fanfic.es; ver Cassany, 2011) merecem menção à parte. Neles as crianças inventam sequências, prequelas1, paródias e versões alternativas de aventuras novas e velhas, com seus heróis favoritos, sejam originários da literatura, de quadrinhos, do videogame ou do cinema e da televisão. Vale a pena clicar em algum dos links citados e passear por milhares de histórias e de comentários produzidos por jovens de todo o mundo, com recriações muito diversas dos mesmos referentes. É absolutamente fascinante ver a criatividade e a diversidade dessas obras de literatura à margem da lei, que se relacionam com obras da literatura legitimada ou oficial.
As possibilidades didáticas que se abrem aqui, com o aproveitamento dos recursos tecnológicos atuais, são diversas, criativas e até surpreendentes, incluindo:
incentivar os alunos a abrir um perfil de Facebook para Calixto, Melibea e Celestina;2
ler a obra imaginando que amigos teriam, que notícias colocariam em seu mural, que música ouviriam ou que vídeos vinculariam ao seu perfil;
abrir uma conta no Twitter para El Cid Campeador ou para Jorge Manrique, depois de ler suas obras, e imaginar que twits, retwits e hashtags usariam.
Sem dúvida, não acreditamos que esse conjunto amplo e diverso de possibilidades técnicas de acesso ao texto, de consulta de dados complementares ou de criação de materiais complementares à obra básica seja prejudicial para a leitura de literatura. Ao contrário, com esses recursos digitais e sociais, ler literatura é ainda mais divertido. Mas toda rosa tem espinhos…
Nem tudo é perfeito
Algumas vozes mais pessimistas destacam vários inconvenientes da leitura digital. Dizem que a conexão à internet distrai o leitor jovem, que perde o fio do texto para procurar fotos, responder a mensagens, ver vídeos ou ouvir música. Evidentemente, não são tentações novas: o que aumenta a concorrência contra a leitura é a possibilidade de ter acesso a todos esses recursos a qualquer momento e em qualquer lugar.
Argumenta-se também (Carr, 2011) que a prática continuada da leitura on-line — fragmentada, interativa e rápida — tem efeitos em nossos hábitos de leitura. Concretamente, estaríamos perdendo o hábito de ler durante várias horas seguidas um mesmo texto. Pouco a pouco, nossa mente estaria perdendo a capacidade cognitiva daquilo que alguns chamam de “leitura em profundidade”. Nossa mente plástica e versátil estaria acostumando-se ao zaping leitor, ao processamento rápido de fragmentos, à atenção a diferentes modos, em oposição à leitura reflexiva de textos extensos e monologados.
Epílogo
Acreditamos que os dispositivos digitais nutrem, enriquecem e complementam a leitura literária em papel e livro que tivemos até agora. Os artefatos conectados à rede sofisticam as obras literárias e oferecem novas possibilidades de acesso, consulta de dados linguísticos ou culturais, busca de documentação, intercâmbio de opiniões entre leitores, criação pessoal a partir da obra lida, entre outros recursos. A internet oferece mais estímulos para ler e para desfrutar da literatura do que o livro e o papel.
O que a escola deve fazer com todas essas mudanças? Prosseguir com as mesmas políticas de dinamização e formação de leitores das últimas épocas do livro em papel e ampliá-las com a incorporação das propostas apresentadas. Não há por que se angustiar com a chegada dos novos artefatos leitores, sejam eles laptops, celulares ou tablets: à medida que se popularizem, que tenham um preço acessível e que cheguem às salas de aula ou às residências, serão incorporados por nós. O que é essencial — o texto, a compreensão, a interpretação — permanece intacto e, inclusive, rejuvenesce.
NOTAS
Do inglês prequel, obra artística que contém elementos presentes no mesmo universo ficcional ou universo paralelo de uma narrativa prévia completa, mas que ocorrem anteriormente ao que é narrado no primeiro trabalho.
Personagens da obra La Celestina, publicada originalmente em 1499.
Daniel Cassany é doutor em Letras e Ciências da Educação, especialista em Didática da Língua e professor da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona (Espanha). daniel.cassany@upf.edu
Consuelo Allué é doutora em Filologia Hispânica, professora de língua e literatura castelhanas no ensino secundário e na Universidade Pública de Navarra, além de assessora na formação de professores em castelhano e basco. mconsolacion.allue@unavarra.es
Transcrito de http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/8080/leitura-e-literatura-na-era-da-internet.aspx
Transcrito de http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/8080/leitura-e-literatura-na-era-da-internet.aspx
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