sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Como oito ou nove livros fizeram de mim um milionário

Edney Silvestre*

Em Nova York, uma tarde, eu atravessava a Broadway, perto da Union Square, levando uma sacola pesada com as compras que acabara de fazer, quando tive a epifania. Eu me sentia exatamente como um milionário que entra na loja de carros e sai de lá com uma Ferrari de um milhão e quatrocentos mil reais.

Eu tinha, naquela sacola da Strand Bookstore, uns oito ou nove livros. Entre eles, uma bela edição (capa dura, 1.026 páginas) das obras completas de Oscar Wilde. Mas, diferentemente do milionário da Ferrari, minha conta não chegava perto de uma fração da grana queimada por ele.

Fonte da imagem: Link

Eu tinha pago exatos dezenove dólares.

A Strand é uma livraria na parte sul de Manhattan, próxima ao campus da NYU, sem outro charme que não as prateleiras dos dois andares - com subsolo - repletas de obras usadas e novas. Estas, quase sempre de segunda mão, de quem ganhou e não as quis - como resenhistas de jornais e revistas, por exemplo - e que as repassa, por um punhadinho de dólares, à Strand.

Estar perto de livros me faz sentir rico. Milionário, aliás. Basta eu entrar numa livraria - e não precisa ser grandona como a Travessa do Leblon - para ser tomado por essa megalomania. E não importa se não os posso ter todos, nem saber que uma vida centenária tampouco me permitiria ler metade do que vejo.

Mas vejo. Ali está o tesouro de nossa cultura, de Electra e Édipo a Quincas Borba e João Grilo, de Campos de Carvalho a Chesterton, Cervantes e Camus, Bellini (o artista e o capitão da seleção de 1958, igualmente), Dante, Virgílio, Virginia (Lane & Woolf), Swift, Gil (Vicente & Gilberto), Bill (Clinton & Shakespeare), Lord Jim, Tonio Kröger, Portnoy, Tarzan, Tintin, Maigret, Mersault, Ripley, Ulisses (tantos deles), Gulliver, Arkadina, Tio Vanya, Petruchio, Esopo, Lobato, Ubaldo, Drummond, Mishima, Stendhal, Lampedusa, Calvino (Ítalo & Jean), Yourcenar, diga um nome, jogue aqui na roda. Estará lá. Ou poderá ser encomendado. Todos à mão. Tudo próximo. Todos possíveis.

Meu encanto é partilhado com milhares de telespectadores toda semana. Dentro da livraria gravo boa parte das entrevistas do Literatura, que apresento na Globonews. Um dia desses um telespectador escreveu querendo saber onde era aquela biblioteca tão bonita e grandiosa - e se estava aberta à visitação pública.

Bacana, né mesmo? A produção do espírito humano no que há de melhor, a criatividade e o desejo de compartilhá-la, democraticamente acessível.

Para mim isso é bom, mas teve um tempo em que foi ruim. Assustador. Explico: quando terminei de escrever Se eu fechar os olhos agora, meu primeiro romance, me deu uma paúra. Como eu me atrevia a imaginar meu livro na mesma prateleira de Memorial do Convento? Perto de O jovem Törless? No corredor ao lado de Coração das trevas?

Em novembro do ano passado encontrei uma cópia de Se eu fechar os olhos agora, na Librerie V.O. de Lille, junto às obras de Saramago. A versão francesa, vi exposta ao lado de Paul Auster, em Paris, na livraria La Hune. A alemã, em Hannover, na mesma área onde ficam as obras de García Marquéz na livraria Leuenhagen & Paris. Em abril deste ano, a tradução de A felicidade é fácil vai coabitar com os livros de Charles Dickens, nas livrarias do Reino Unido.

Mó orgulho, pode crer. Estou me acostumando.

Porém muito antes disso, uns doze anos atrás, no início deste novo século, lá estava eu, em downtown Manhattan, descobrindo quão rico - milionário - eu me sinto porque sei ler.

A felicidade, realmente, é (ou pode ser) fácil.

A riqueza, também.

*Edney Silvestre é jornalista e autor dos romances Vidas provisórias, A felicidade é fácil e Se eu fechar os olhos agora, ganhador do Jabuti 2010 e do Prêmio São Paulo de Literatura.


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