sexta-feira, 30 de julho de 2021

É ouro... é prata... é bronze

É pobreza extrema

É abrigo ... acolhimento ... comida ... cobertor ... alimento
É o poder acumulando riquezas
E os olhos cerrados ... vedados ... fechados
São vínculos familiares fragilizados
sem moradia ... sem sustento ... sem esperança
E assim as pessoas começam a se acostumar
com mais um índice estranhamente indígno
de dados do chamado
população de rua ou moradores de rua.
Será isso um novo normal?
Me escapa o sentido
de um ser
humano.
Me escapa e me angustia
O sentido da palavra Amor.


domingo, 25 de julho de 2021

Leituras: Pesquisadores vivem ameaças como na ditadura

Leituras: Pesquisadores vivem ameaças como na ditadura:   Radicada na Bélgica, professora da USP que estuda papel nocivo dos agrotóxicos na produção de alimentos diz que ficou impossível permanece...

Pesquisadores vivem ameaças como na ditadura

 Radicada na Bélgica, professora da USP que estuda papel nocivo dos agrotóxicos na produção de alimentos diz que ficou impossível permanecer no Brasil em meio a "terrorismo psicológico"

Larissa Bombardi: "É uma indecência, a gente não tem tranquilidade para fazer pesquisa"

Foram dois anos em que a geógrafa brasileira Larissa Mies Bombardi, professora da Universidade de São Paulo (USP), não conseguia dormir em paz. O pesadelo começou com o lançamento, na Europa, da versão em inglês do seu atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.

Ao levar para fora do país o cenário dos agrotóxicos na produção de alimentos no Brasil, ela contribuiu para aumentar a pressão internacional sobre o setor. "A maior rede de orgânicos da Escandinávia passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho", relata.

A geógrafa passou a viver uma rotina de ameaças e enfrentou uma série de posicionamentos contrários de instituições ligadas ao setor agropecuário.

"Teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que 'se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança'", conta.

No ano passado, sua casa foi assaltada. Bombardi tomou a decisão de sair do país. Transferiu-se para a Bélgica e segue sua carreira acadêmica na Universidade Livre de Bruxelas. Em entrevista à DW Brasil, ela dá detalhes sobre as ameças sofridas.

DW Brasil: Ameaças e um assalto… Quando você percebeu que era hora de deixar o Brasil?

Larissa Mies Bombardi: Depois que eu lancei em inglês o atlas [Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia], em 2019, foi a primeira vez que perdi o sono. Entendi que havia um risco e começaram as intimidações, umas mais veladas, outras menos. Precisava me proteger, proteger meus filhos e ficar fora do Brasil.

Pode descrever alguma ameaça que recebeu?

Foram várias coisas, mas teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que "se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança". […] Então a maior rede de orgânicos da Escandinávia [a Paradiset, da Suécia] passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho. Um professor da USP, Wagner Ribeiro, falou que eu não podia lidar com isso sozinha.

Como a USP se posicionou?

Esse professor contatou a diretora da faculdade [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH], que nos recebeu e pediu um dossiê. Na manhã seguinte, ela contatou o reitor, que concordou que eu precisava deixar o país, seguir por um período meu percurso acadêmico fora. A reitoria se mostrou sensível e ofereceu a guarda universitária para me proteger. Não quis, achei que emocionalmente seria muito pesado lidar com isso. Recebi orientações de lideranças de movimentos sociais para evitar as mesmas rotinas, os mesmos caminhos.

No fim do ano [de 2019], fui convidada a falar no Parlamento Europeu, numa conferência sobre o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Ali me falaram que lidar com esses temas no Brasil era muito perigoso. Eu respondi que nunca tinha sido efetivamente ameaçada. "Mas não precisa, as coisas não acontecem com aviso sempre", ouvi de volta.

Fiquei gelada, mas ainda falei: "Sou professora universitária, branca, tenho esse viés de classe e, infelizmente, do racismo estrutural que existe no Brasil." Ouvi então que "Zuzu Angel [(1921-1976), estilista, vítima da ditadura brasileira] também era branca". O plano passou a ser me mudar [para a Europa] em março [de 2020]. Mas aí veio a pandemia, precisamos adiar.

Em agosto do ano passado, sua casa foi assaltada… Acredita que uma coisa tenha relação com a outra?

Nunca vou saber se foi relacionado ao meu trabalho ou não. Mas levaram pouquíssimas coisas, o laptop que eu usava, que era velho. Não tinha sentido, estava defasado. Mas vasculharam minha casa por três horas, mantendo minha mãe e me mantendo sob tortura psicológica. Foi horrível. Vasculharam a casa inteira. Foi muito pesado, mas não sei se tem a ver com uma tentativa de intimidação ou com uma busca de dados.

Você está na Bélgica neste ano de 2021. Segue vinculada à USP?

Aprovei um projeto de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, é um projeto sobre green criminology na Amazônia, um trabalho sobre conflitos ambientais. A reitoria [da USP] autorizou meu afastamento e estou trabalhando neste tema. Em maio lancei um novo atlas no Parlamento Europeu sobre as relações comerciais entre Mercosul e União Europeia. Chama-se Geografia das assimetrias, colonialismo molecular e círculo de envenenamento.

O que significam esses conceitos?

Mostro esse lugar de colônia que o Mercosul ocupa dentro da economia mundial, em especial na relação com a União Europeia. Colonialismo molecular, porque, se antes havia esse saque das riquezas naturais da América Latina, agora ele continua mas não é só um impacto físico, é um impacto químico, por causa dos agrotóxicos. Colonialismo molecular porque essas substâncias atingem nossas moléculas, causam um dano sem precedentes, de uma crueldade que a gente nunca tinha visto.

Essa suposta modernidade da agricultura, ela traz um ônus que nos oblitera, que potencialmente altera nossos corpos por conta de substâncias que não são autorizadas na União Europeia mas são vendidas por empresas da União Europeia, sem pudor em vender [para países como o Brasil] substâncias que são proibidas em seus próprios países por conta dos danos à saúde e ao meio ambiente.

Como foi a pressão sofrida quando você publicou uma pesquisa relacionando a covid-19 à suinocultura?

Publicamos no ano passado dois artigos sobre as possíveis correlações entre suinocultura e covid-19. Vimos uma certa correspondência espacial em Santa Catarina, ou seja, áreas com maior densidade de criação de porcos também eram áreas com maior número de casos, proporcionalmente, de covid. Ficou um trabalho interessante, mas apenas levantamos a hipótese de que os vírus não teriam sido trazidos pelos morcegos, mas pelos porcos, via morcegos, já que há muitas similaridades [dos humanos] com os porcos. E os porcos vivem praticamente imunodeprimidos, com todos os animais criados de maneira intensiva. Eles não têm como exercer seus hábitos mais básicos e então — vou falar com cuidado, entre aspas — eles "podem ser" laboratórios de vírus. São animais que defecam e comem no mesmo local […].

Associação Brasileira de Proteína Animal escreveu uma carta para a USP [desqualificando o trabalho da professora], a Embrapa também produziu uma nota técnica… Mas a gente estava trabalhando com uma hipótese, em momento algum afirmando ser algo definitivo. Encerramos o texto dizendo que é preciso mais pesquisas. Não tem outro jeito de caminhar na ciência se não for buscando hipóteses, né? É assim que a gente caminha. Estou há quase 15 anos na USP e nunca vi isso de perto, como estou vendo. Essa atmosfera invasiva das entidades se acharem no direito de contestar pesquisa, de fazer ameaça… Isso é ameaça à minha carreira.

Você se considera exilada?

Sim, de alguma forma me considero exilada porque [faz uma longa pausa] simplesmente ficou impossível permanecer no Brasil lidando com essa temática. É um terrorismo psicológico gigante, e eu precisava proteger a mim e aos meus filhos. Foi um alívio gigante sair do Brasil, e isso ilustra a condição de exílio.

Está muito desesperador e eu sei que não sou só eu, há outros pesquisadores que passam por coisas parecidas, de ameaças institucionais a ameaças externas. Isso ficou muito claro a partir do governo [do atual presidente Jair] Bolsonaro, ficou nítido. É uma indecência, a gente não tem tranquilidade para fazer pesquisa. A última vez que a gente viu isso foi quando? Na ditadura. A única diferença é que agora aparentemente vivemos num regime democrático. Mas, no fundo, estamos vivendo um período de exceção.

Planeja um dia voltar ao Brasil?

Não. Pelo menos não até o fim deste governo.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Brasil: Polarizações no Brasil afetam a Igreja Luterana

23/07/2021

No Brasil, os ataques verbais e mensagens de ódio dirigidos à liderança da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) estão aumentando. Walter Altmann, ex-presidente da Igreja da IECLB, chamou a atenção para isso no Facebook: “Entre outras coisas, as congregações luteranas estão sendo chamadas a retirar seu apoio financeiro à IECLB. O movimento é denominado 'Aliança Luterana'. Mas isso tem pouco a ver com 'luterano'. Aqui estão representadas posições ideológicas e politicamente radicais claras, que excluem, difamam e denegrem ”.

Harald Malschitzky, secretário-geral da Obra Gustavo Adolfo da IECLB confirma os incidentes: “As frentes políticas no Brasil estão se endurecendo. Bolsonaro disse novamente que só Deus pode removê-lo da presidência. Há algumas semanas, ele vem realizando grandes manifestações de motocicletas com seus apoiadores em todo o país, com discurso de ódio contra qualquer pessoa que pense diferente. Infelizmente, isso também se reflete em nossa igreja. Uma chamada 'Aliança Luterana' está constantemente atacando em público professores da Escola Superior de Teologia (EST), a liderança da igreja e um grupo de pastores, incluindo eu. Ela pede aos paroquianos que não paguem as taxas da igreja. Infelizmente, ainda não sabemos quem pertence a esta 'aliança' e quantas pessoas existem."

A Federação Luterana Mundial apoiou a IECLB em solidariedade. Em uma carta à Presidente da IECLB, Silvia Genz, o Secretário Geral Pastor Martin Junge expressou preocupação com "a extensão da violência verbal e do ódio" que moldaram os ataques nas últimas semanas. Tais ataques são perigosos, disse Junge, porque “onde o discurso de ódio pode criar raízes, onde os debates são cortados pela raiz por meio de tentativas de intimidação que enfraquecem as pessoas e sua dignidade, a violência sempre vence no final”. Portanto, devemos nos defender de todas as tentativas de permitir que o discurso de ódio se torne normalidade na vida da igreja. Como uma comunidade mundial de igrejas luteranas “oramos pela IECLB, pelos líderes em nível nacional, sinodal e paroquial e pelos conselhos da igreja e seus membros”. Que “a unidade triunfe sobre o desacordo” e que a Igreja “dê testemunho poderoso do poder do evangelho”.

(Carta de Martin Junge: https://de.lutheranworld.org/de/content/solidaritat-mit-brasilianischer-kirche-gegen-hassrede-21)

domingo, 18 de julho de 2021

Leituras: A Rússia alertou que os EUA estão testando uma rev...

Leituras: A Rússia alertou que os EUA estão testando uma rev...: Diego Lopes 15 Julho 2021 A porta-voz do Itamaraty, María Zajárova, acusou hoje os Estados Unidos de aplicar sua estratégia das chamadas rev...

A Rússia alertou que os EUA estão testando uma revolução colorida em Cuba

Diego Lopes

15 Julho 2021

A porta-voz do Itamaraty, María Zajárova, acusou hoje os Estados Unidos de aplicar sua estratégia das chamadas revoluções coloridas em Cuba, por meio de processos de desestabilização interna.

María Zajárova, acusou hoje os Estados Unidos de aplicar as revoluções coloridas em Cuba

"A lógica aqui é simples. Washington já tentou várias vezes em diferentes situações, mas todas sob o mesmo ângulo: a inspiração das revoluções coloridas em relação a governos indesejados", disse a diplomata para jornalistas.

Ela alertou que a fórmula inclui primeiro sanções e problemas que eles introduzem do exterior, que geram dificuldades que agravam a situação socioeconômica do país e, a partir disso, criam tensões e estimulam sentimentos antigovernamentais.

Explicou que quando essa "massa crítica" se acumula, toda a culpa recai sobre o governo nacional e, a partir disso, penduram-se qualificadores, suas ações ficam desacreditadas de todas as formas possíveis, gerando uma situação caótica.

"O mesmo algoritmo agora está sendo aplicado a Cuba. Apesar de todas as medidas tomadas pelas autoridades para apoiar a economia do país e dar assistência à população, são elas as acusadas por Washington da atual situação de crise", disse Zajárova.

Esclareceu que como parte dessa política de manipulação, as autoridades norte-americanas tentam fazer crer que Havana se recusa a aceitar ajuda dos Estados Unidos, não quer participar de mecanismos internacionais de distribuição de vacinas e segue uma política antipopular em em geral.

“Ao mesmo tempo, os americanos, como sempre, silenciam sobre suas próprias ações subversivas e aspirações oportunistas”, comentou o representante do Itamaraty.

Ela chamou as ações de Washington em relação a Cuba "mais uma encenação política, um exemplo da prática profundamente arraigada de padrões duplos pelos americanos", disse ele.

Destacou que isso se evidencia na aplicação seletiva das normas jurídicas e na interpretação tendenciosa e diferenciada dos fatos.

Zajárova disse que seu país exorta Washington a adotar uma posição objetiva, para se livrar da hipocrisia, dos dois pesos e duas medidas de sua política para com Cuba. “Que os cubanos, seu governo e seu povo percebam o que está acontecendo e decidam seu próprio destino”, disse ela.

Ela ressaltou que se Washington está realmente preocupado com a situação humanitária na ilha caribenha e quer ajudar os cubanos de alguma forma, deve começar levantando o bloqueio, rejeitado por toda a comunidade mundial.


sábado, 17 de julho de 2021

Leituras: A delação do general golpista da Bolívia que se ac...

Leituras: A delação do general golpista da Bolívia que se ac...: 17 de julho de 2021, 20:16 h  Moisés Mendes, do Jornalistas pela Democracia (Foto: Reprodução) A sensação na imprensa e nas redes sociais bo...

A delação do general golpista da Bolívia que se acovardou

17 de julho de 2021, 20:16 h 

Moisés Mendes, do Jornalistas pela Democracia

(Foto: Reprodução)

A sensação na imprensa e nas redes sociais bolivianas no momento é a lavação de farda suja dos militares que aplicaram o golpe em Evo Morales em novembro de 2019. Se prestarmos atenção no que acontece lá, poderemos prever o que pode acontecer aqui, se o blefe de Bolsonaro for levado adiante.

Relembremos antes que os ex-chefes das três armas estão presos em La paz. O general Jorge Mendieta, ex-comandante do Exército, foi encarcerado em março.

O também general Jorge Gonzalo Terceros Lara, ex-comandante da Força Aérea, e o vice-almirante Palmiro Gonzalo Jarjuri Rada, da Marinha, foram presos agora, no início de julho.

Os três caíram porque, depois da vitória dos golpeados na eleição do ano passado, subestimaram o Ministério Público e a Justiça e não fugiram. O único fardado que fugiu (e pode estar no Brasil) é o ex-chefe das Forças Armadas Williams Kaliman.

O general foragido é agora o alvo dos depoimentos e dos recados dos que estão presos. O que eles dizem é deduragem contra os ex-parceiros e funciona como uma delação, mesmo que não tenha sido formalizada.

Jorge Santistevan, advogado de Mendieta e Terceros, tem contado que os dois não tiveram participação na redação do manifesto dos chefes militares de 10 de novembro.

O documento, lido por Kaliman em vídeo depois transmitido pelo Twitter, sugeria que Morales deveria renunciar. Além dos generais Mendieta e Terceros, o almirante Flavio Arce San Martin, ex-chefe do Estado Maior, diz a mesma coisa.

Todos aparecem, fardados e em pose militar, na famosa cena da leitura do documento. No depoimento que deu como investigado por motim e pelo golpe, Tercero disse, a respeito da encenação: “Somente posei para a foto”.

O general assegura que a nota foi redigida pela equipe de comunicação de Kaliman. O chefe de todos eles chamou os comandantes à sua sala, naquele dia 10 de novembro, e anunciou que iria ler o manifesto sugerindo a Morales que renunciasse. Um detalhe: seria uma sugestão.

O jornal Pagina Siete contou tudo em detalhes, a partir das queixas dos delatores. O que eles dizem é que os cinco participantes subalternos da cena, que estão em volta de Kaliman, não deram nenhum palpite na redação do comunicado.

Terceros e Arce asseguram que a nota lida por Kaliman teria sido um truque, por dois motivos. Como a pressão para o golpe havia sido das polícias, e não dos militares, que foram levados a apoiar o motim, era preciso marcar posição.

Com o comunicado sendo redigido pouco antes de Evo Morales anunciar que deixaria o governo, as Forças Armadas estavam tentando dizer que eram protagonistas do golpe.

O segundo motivo é derivado do primeiro. Os dois delatores dizem que Kaliman sabia que Morales iria renunciar. A nota teria o objetivo de pegar carona no que já sabiam que aconteceria.  

É possível aprender muito com o golpe boliviano. Primeiro, é preciso prestar atenção em notas que tentam transmitir consensos, como aconteceu há pouco no Brasil com o comunicado em que o ministro da Defesa, Braga Netto, e os comandantes das três armas enquadram o presidente da CPI do Genocídio, Omar Aziz.

Também é educativo prestar atenção nos traumas provocados por um fracasso, quando todos os chefes militares golpistas (com exceção de um, foragido) estão na cadeia junto com os seus cúmplices civis.

Jorge Gonzalo Terceros Lara não assume seu protagonismo e delata Kaliman, mas se sabe que foi o mais furioso de todos os comandantes manobrados pelos civis da extrema direita e pelos policiais amotinados.

Terceros é acusado de tentar reter no aeroporto, sem apoio dos demais comandantes, o avião que iria levar Evo Morales para o exílio no México.

Também era Terceros quem negociava ajuda externa ao golpe com a Argentinha e, possivelmente, segundo suspeitas levadas à Câmara dos Deputados da Bolívia, com o Brasil e o Chile. Pois Terceros se revela agora o mais acovardado de todos os militares golpistas.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Cem anos de Morin, filósofo da Complexidade

 

Com frequência, é preciso ser um desviante minoritário para estar no real.
Embora, aparentemente, nele não haja nenhuma perspectiva,
nenhuma possibilidade, nenhuma salvação, a realidade
não está paralisada para sempre, ela tem seu mistério e sua incerteza.
O importante é não aceitar o fato consumado”
Edgar Morin

A inaudita perspectiva de uma extinção precoce da espécie humana em decorrência de suas próprias ações, como vêm apontando muitos especialistas nas ciências da Terra, provavelmente será um dos principais estigmas que deve assombrar a humanidade neste século XXI. Inauguramos um tempo sombrio, que nasce sob o signo ignominioso de uma profunda agudização do processo de destruição dos ecossistemas, em aceleradíssimo curso nesta Era do Antropoceno, no qual os humanos alcançaram, por meio da hegemonia capitalista predatória globalizada, o estágio mais avançado do seu ímpeto de dominação e subordinação da natureza e, por consequência, de pulsão de morte e de autoaniquilação.

O trágico século XX foi marcado pelas guerras e pelos totalitarismos desencadeados no seio dos dois principais projetos civilizatórios fracassados – o capitalismo e o socialismo real –, os quais rivalizaram ao longo do período em que a humanidade vivenciou os maiores horrores contra a condição humana. Estima-se que pelo menos 187 milhões de vidas foram dizimadas (Brzezinski, 1993) por deliberações humanas, o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Neste início do século XXI, com a insistência da humanidade em continuar na rota ecocida do sistema-mundo capitalista, a degradação ambiental em escala planetária, combinada ao crescente declínio das democracias e às ameaças dos avanços do fenômeno da algoritmização da vida, ambos patrocinados pela globalização insana de uma visão tecnomercadológica de mundo, constituem os dois principais motores da regressão e da barbárie civilizatória que se anunciam, já para as próximas décadas.

Como compreender as forças que nos arrastaram, ao longo do tortuoso percurso civilizatório, para um modo de viver tão incongruente com a natureza? Como se contrapor a uma sociabilidade capitalista tão dissonante das dinâmicas que sustentam a imensa teia de vida do nosso planeta e que está nos empurrando para uma realidade tão distópica e insustentável? Como entender e resistir a um comportamento humano tão esquizofrênico, ecocida e, no limite, suicida?

Um pensador planetário

Uma das respostas a essas grandes indagações do nosso tempo está na trajetória de vida de um dos mais prodigiosos pensadores contemporâneos, que hoje (8/7/2021) celebra seus 100 anos de insurgência contra um modo de viver de viés unidimensional, fragmentado, controlador e, portanto, desconectado da complexidade do mundo real. Estamos falando do multifacetado Edgar Morin, notável pensador francês que, mesmo tornando-se um centenário, conseguiu manter, até os dias atuais, a sua lucidez e capacidade de compreender e lidar com as realidades tão precárias que ele mesmo vivenciou desde os tenebrosos anos 1920, incluindo-se as adversidades que se impuseram à sua própria vida pessoal. Como ele mesmo sempre gosta de mencionar, uma vida inspirada pelos versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminhante, não há o caminho. O caminho se faz ao andar, ao andar se faz o caminho”.

O renomado sociólogo francês Alain Touraine o chamou de “humanista planetário”. De fato, Morin é reconhecido por muitos como um pensador planetário que, para compreender as muitas facetas do real, optou por transitar, simultaneamente, pela sociologia, filosofia, antropologia, biologia e muitas outras áreas do saber, sempre buscando as conexões (invisíveis aos olhos da racionalização disjuntiva, que tudo separa) entre as diversas ilhas de conhecimento e integrando-as a partir de um “pensamento do contexto e do complexo” que pudesse dar um melhor entendimento das contradições da condição humana e de sua cada vez mais desajustada interação com a realidade complexa que a cerca e que a desafia permanentemente.

Desde cedo, Morin começou a perceber que a realidade não poderia ser reduzida às noções de ordem, certeza, separação e causalidade linear – atributos considerados alicerces dos ideais iluministas da modernidade, ainda muito dominantes na contemporaneidade. Para ele, a busca da compreensão do real está nas incessantes interações e retrointerações entre uma infinidade de componentes que o integram, isto é, a realidade é mais bem compreendida pelo entrelaçamento de atributos como incerteza, desordem e acaso.

Por isso, o estranho mundo real, na visão de Morin, comporta riscos constantes de erros e ilusões, face à aleatoriedade que o permeia. “A complexidade”, afirma Morin, “é o desafio, não a resposta”. Diferentemente das visões de mundo que moldaram a experiência humana no passado e ainda a moldam no presente, a complexidade (a origem do termo complexo vem do latim complexus, que significa “o que é tecido junto”) nos remete a uma visão de mundo aberta, plural e incerta. Ela procura acolher e conciliar as inúmeras “verdades” que tentam decifrar a realidade. Ela reconhece que tais “verdades” são indecifráveis, pois resultam de um oceano de relações e de incessantes interações que integram o real. Por isso, lidar com o real é estar em permanente processo de descoberta, desconstrução e reconstrução, em um constante diálogo com a realidade, cujos principais atributos parecem mais próximos da ideia de aleatoriedade, diversidade, ambiguidade, pluralidade, instabilidade, multiplicidade, imprevisibilidade e incerteza.

Uma vida desafiada pelo inesperado

Sua própria experiência de vida, intelectual, política e pessoal, o levou a essa percepção de um real imponderável. Morin já chega ao mundo, em 8 de julho de 1921, tendo seu primeiro contato com o imprevisível. Segundo ele, “o parto foi um momento trágico, no sentido de que a vida de minha mãe necessitava da minha morte e minha vida devia provocar sua própria morte. Minha mãe sobreviveu à expulsão, mas eu nasci quase morto, estrangulado pelo cordão umbilical.” A mãe, Luna Beressi, uma judia sefaradita, em razão de ter contraído gripe espanhola, sofria de uma grave doença cardíaca, o que a desaconselhava ter filhos. Beressi, com quem Morin estabeleceu uma ligação maternal muito forte, faleceu 10 anos depois, o segundo imprevisível devastador na vida de Morin, que lhe provocou “uma Hiroshima interior”.

A partir daí, Morin entra num processo de imersão pessoal, buscando refúgio na literatura e no cinema, principais influências na sua formação. “A literatura, assim como o cinema”, na ideia de mundo de Morin, “quando bem concebidos, representam uma aprendizagem da compreensão humana (…) Entendemos o próximo muito melhor do que na vida real, e é esta compreensão que é preciso inserir na realidade”.

Sua adolescência foi marcada pelas turbulências da Europa dos anos 1930, que se afundou em regimes ditatoriais implacáveis e sanguinários. Em 1940, antes dos nazistas chegarem à França, Morin, com apenas 19 anos e já sem a proteção do seu pai – Vidal Nahoum, também judeu sefaradita, que havia sido convocado para guerra –, resolve assumir sua liberdade. Pega um trem e vai se refugiar em Toulusse onde conseguiu continuar seus estudos. Poucos anos depois, em 1942, para escapar da ocupação das tropas nazistas, foge para Lyon. “Conquistei minha liberdade”, diz ele, “contraditoriamente, quando a França perdeu a sua”.

Após a guerra, em 1945, Morin voluntariou-se para ajudar na reconstrução da Europa e foi nomeado oficial do exército francês de ocupação para trabalhar numa Alemanha devastada. Lá escreveu seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha (L’An zéro de l’Allemagne. Paris, França: La Cité universelle, 1946.). Nessa obra, Morin registra suas primeiras percepções acerca da complexidade do real. Ele mergulha nas contradições da condição humana ao refletir sobre a trágica experiência do povo alemão na guerra. Como uma sociedade que produziu mentes notáveis como Hegel, Marx, Brecht, Kant, Beethoven e tantos outros foi capaz de se deixar levar pelo devaneio nazista? “Perplexo, olhando aquele país destruído”, reflete Morin, “me perguntava como era possível que aquela nação, que abrigou a mais rica filosofia, a mais bela música, uma cultura extraordinária, tenha sucumbido ao nazismo.”

Assim foi a adversa trajetória de Morin nas suas primeiras experiências de vida. Outros momentos marcantes de sua vida podem ser consultados no sítio eletrônico produzido pelo SESC-SP (acesso aqui), que reúne o melhor acervo, disponível no Brasil, sobre a vida, a obra e a visão de mundo desse extraordinário pensador.

A cegueira diante da complexidade do real

Todas essas experiências intensas parecem ter ajudado Morin a desenvolver suas múltiplas capacidades de compreensão do real, para além do que a visão de mundo hegemônica sempre impôs em cada momento histórico. Capacidades que se manifestam de forma vigorosa até hoje, mesmo ele tendo alcançado o seu centenário. Para Morin não há como observar e compreender o real sem que haja uma religação das muitas disciplinas e saberes que foram apartados pelo “grande paradigma do Ocidente”, concebido por Descartes e irradiado para o mundo dentro do processo histórico de dominação europeu, a partir do século XVII. Sua principal proposta para melhorarmos nossa percepção do real está no “pensamento complexo”, que procura compreender que os fenômenos da natureza (incluindo a humana) não podem ser traduzidos pelas dualidades cartesianas, tais como ordem/desordem, sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria, qualidade/quantidade, emoção/razão, liberdade/determinismo, dentre muitas outras. Na visão complexa de mundo elaborada por Morin, todas essas dicotomias não são atributos da realidade tão separados e excludentes como imagina a visão de mundo cartesiana, que sustenta o ideário tecnoeconomicista atualmente hegemônico.

Sua postura torna-se cada vez mais rebelde diante de uma academia produtora de conhecimentos estanques, compartimentalizados e, consequentemente, reprodutora de mentes embotadas para o real, acomodadas num “conformismo cognitivo”. Por isso sua preocupação com a pertinência do conhecimento gerado pela academia. Para Morin, “o parcelamento e a compartimentalização dos saberes impedem de aprender ‘o que está tecido junto’”. Contrariando a primazia da objetividade e da razão, Morin transgride o modo de fazer Ciência e opta por compreender o real a partir de novos métodos de cognição.

Um desses métodos, por exemplo, é o que adota o princípio dialógico, conforme ele mesmo expressa neste depoimento sobre suas primeiras pesquisas sociais: “quando se deseja estudar uma comunidade, seres humanos, devemos, evidentemente, ser 100% objetivos, procurar considerar os fatos, os dados assim como se apresentam. Ao mesmo tempo, era preciso ser 100% subjetivo, quer dizer participar, comunicar, amar as pessoas. Ou seja, é preciso utilizar inteiramente a objetividade e a subjetividade, apesar de que a subjetividade era considerada pela maioria dos sociólogos como sendo algo negativo.” Para Morin, os supostos antagonismos que integram a realidade não são mutuamente excludentes como pensa a visão binária de mundo ainda predominante. Eles são, simultaneamente, concorrentes e complementares, razão pela qual precisamos saber abracá-los para compreendermos e lidarmos melhor com o real.

Foi graças ao trabalho de Morin que muitos autores de diversas áreas do conhecimento passaram a desenvolver novos métodos de cognição e investigação dos problemas que se colocam diante da experiência humana. A partir desse novo olhar, que considera que o real é “tecido junto”, novos pressupostos para colocar o pensamento complexo em prática já estão sendo adotados. Daí surgiu, como uma das estratégias para abordarmos melhor os desafios contemporâneos, a aplicação dos chamados operadores cognitivos do pensamento complexo, também chamados de operadores de religação. São eles: circularidade, autoprodução/auto-organização, operador dialógico, operador hologramático, integração sujeito-objeto e ecologia da ação.

Para quem deseja aprofundar-se na gigantesca obra de Morin, que compreende mais de 100 livros (incluindo-se as muitas parcerias que fez com diversos autores), e nas suas formulações sobre a teia de relações que integram o mundo real, os seis volumes de O Método (A natureza da natureza, 1977; A vida da vida, 1980; O conhecimento do conhecimento, 1986; As ideias, 1991; A humanidade da humanidade, 2001; Ética, 2004), contendo mais de 2.500 páginas, sistematizam e explicitam uma epistemologia do pensamento complexo. Nessa obra, Morin oferece muitos elementos para quem deseja uma melhor compreensão das muitas nuances implicadas nas concepções sobre a vida, a condição humana, o nosso destino, e propõe uma ética de religação que nos permita uma melhor conexão com a complexidade do mundo real e com a construção de um futuro possível, de modo a evitar o abismo para o qual estamos caminhando.

Destaco também mais dois livros de Morin, um voltado para a educação e outro para a política, que me parecem centrais para o entendimento da necessidade de mudança para uma nova sociabilidade, fora da lógica de mercado, que os nossos tempos reclamam. O primeiro é o ensaio Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez – UNESCO/ONU Brasil, 2000), que convida o atual sistema educacional, aprisionado pela lógica do produtivismo do mercado, que opera a partir de fundamentos meramente utilitaristas e só reforça ainda mais a exacerbação do individualismo, a rever seus pressupostos e a buscar uma educação emancipadora de sujeitos, mais centrada no desenvolvimento da compreensão da condição humana e da necessidade de uma cidadania planetária, que nos permita lidar melhor com as múltiplas crises da atualidade. O segundo trata-se do livro Rumo ao Abismo? – Ensaio sobre o Destino da Humanidade (Bertrand Brasil, 2010), no qual denuncia o agravamento da gigantesca crise planetária e a incapacidade do pensamento político atual de propor uma nova política de civilização que evite o mergulho na barbárie. Para Morin, precisamos abandonar o sonho de dominação e “substituir a noção de desenvolvimento pela de uma política da humanidade e a de uma política de civilização”.

Compreender a condição humana

Um dos legados mais importantes da abrangente obra de Morin talvez esteja nas suas reflexões em torno da condição humana. No seu entendimento acerca dos caminhos a serem traçados para enfrentarmos os principais desafios contemporâneos está a ideia de que “o século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas”. Morin nos instiga, portanto, a abdicar dessa visão unilateral que define o ser humano exclusivamente pela racionalidade tecnoeconomicista. O homem é, a um só tempo, sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista), prosaicus poeticus (prosaico e poético).

Somos, portanto, mais bem compreendidos pela ideia de um Homo complexus, que nas palavras de Morin significa que “o ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável”. Daí a necessidade de voltarmos mais nossas atenções para a condição humana e menos para o aperfeiçoamento das técnicas e dos instrumentos, pois a crise de civilização que enfrentamos, em grande medida, é fruto dessa incompreensão. Precisamos entender, como o próprio Morin alerta, que “quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros”.

Assim como prevaleceu ao longo de quase todo o percurso civilizatório, nossas inclinações para ilusões desnecessárias – talvez as mais nocivas sejam a ilusão de ordem, controle e dominação –, que ainda persistem com mais intensidade na contemporaneidade, estão a nos empurrar para o abismo. Nas duas últimas décadas, elas se expressam especialmente por meio da aposta que tem sido feita no avanço da tecnologia para resolver todos os problemas do mundo. Trata-se do chamado movimento transumanista que pressupõe que o ser humano caminha para um aperfeiçoamento que o alçará à condição de pós-sapiens, mediante os aparatos e as manipulações a cargo da inteligência artificial. Como alertou recentemente o próprio Morin (entrevista ao Le Monde, em 20/4/2020), ao refletir sobre a crise sanitária gerada pela pandemia da Covid-19, “a loucura eufórica do transumanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem não apenas sobre a natureza, mas também sobre o seu destino, ao prever que o homem terá acesso à imortalidade e controlará tudo pela inteligência artificial.”

Contrariando os supostos benefícios em prol de um progresso da humanidade, que poderiam advir a partir dos algoritmos, o que se conseguiu até agora com essa visão cibernética de mundo foi amplificar assustadoramente o ímpeto de controle, dominação e apropriação da verdade que caracteriza a cultura patriarcal milenar. De um lado, afloram novamente novas regressões sob variadas formas: ameças às democracias em muitos países, corrupção generalizada, desigualdades socioeconômicas brutais, regimes totalitários, arroubos nacionalistas, crime organizado, xenofobia, racismo e outras formas de desagregação do tecido social. De outro, assistimos inerte a um processo de degradação ambiental em escala planetária, que já nos colocou dentro da sexta extinção em massa e ameaça nossa sobrevivência como espécie.

No fundo, o que Morin nos mostra é que estamos no cerne de uma mudança de época histórica, na qual há uma profunda crise de percepção que fragmenta os modos de interpretação da realidade e que constitui a gênese da vulnerabilidade institucional que fragmenta os modos de intervenção nessa mesma realidade. Há, assim, com o atual modo de vida centrado no desenvolvimento tecnoeconômico, que alimenta a insanidade do crescimento do sistema de produção capitalista, um agravamento sem precedentes da crise planetária. Por isso, Morin propõe uma passagem do pensamento linear cartesiano (enfoque em fragmentação, controle e previsibilidade) – cujas concepções remontam à época de Aristóteles, Platão e Sócrates, na Grécia antiga –, bem como do pensamento sistêmico (enfoque em conjuntos, padrões e totalidades), desenvolvido ao longo do século XX, para o pensamento complexo, cujo enfoque está nas interações, incertezas e imprevisibilidades, que é bem mais abrangente para lidar com a complexidade da condição humana e da realidade que a cerca. Daí a necessidade de aplicarmos novos operadores cognitivos, conforme mencionado antes, para podermos colocar o pensamento complexo em prática e, desse modo, nos religarmos novamente à nossa condição natural.

A esperança na metamorfose

No entanto, esse pensamento complexo proposto por Morin ainda está muito longe de superar o pensamento linear e o pensamento sistêmico. Por isso, torna-se tão difícil abraçarmos novos modos de cognição que nos permitam lidar melhor com a complexidade do mundo natural ao qual estamos imbricados e com as múltiplas crises que se manifestam na contemporaneidade. Como diz Morin, “por todo lugar se aceleram e se amplificam a crise da democracia, a crise da biosfera, a crise do pensamento, o sonambulismo político, e também os delírios xenófobos, racistas e belicistas”. Razão pela qual ele alerta que “a desintegração é provável. O improvável, mas possível é a metamorfose”. A aposta na metamorfose, a que ele se refere, é o elemento catalisador da capacidade humana, diante da possibilidade da autodestruição, de mudar seu modo de ver e interagir com o mundo e, desse modo, ressignificar-se diante de uma crise tão profunda, pois, nas atuais condições do nosso planeta, sem uma mudança radical em nosso modo de estar no mundo não teremos futuro. “Quanto mais nos aproximamos da catástrofe”, diz Morin, “mais a metamorfose é possível. Então, a esperança pode vir do desespero”.

Todos os cenários, seja no âmbito político, ecológico, social ou econômico, apontam para o fim da longa história de prevalência da cultura patriarcal, que também se originou de uma metamorfose ocorrida no neolítico. Segundo a socióloga austríaca Riane Eisler, a partir de algum momento por volta da época da revolução agrícola, deu-se a grande bifurcação cultural do ocidente, na qual os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, a chamada cultura matrística que predominava até então, para a “sociedade de dominação”, que resultou na cultura patriarcal vigente até hoje (O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2008). Desde essa época aos dias atuais, a história da civilização tem sido uma história de guerras, massacres e destruições, em nome de um suposto progresso da humanidade.

As próximas décadas, portanto, contêm todos os elementos para serem marcadas por uma nova metamorfose, com todas as indesejáveis agruras que esse tipo de fenômeno comporta. Como lembra Morin, “a História humana nasceu de uma metamorfose não programada que teria parecido impossível a todo observador extraterrestre há dez mil anos”. É a partir dessa perspectiva que Morin parece encontrar, doravante, alguma possibilidade de regeneração, muito embora haja um forte e crescente sentimento coletivo de desesperança que não vê mais alternativas à civilização.

O fato é que temos uma realidade cada vez mais distópica no horizonte. Qual percurso, então, poderia nos desviar do colapso civilizatório? Com muito esforço de otimismo, se buscarmos algum aprendizado das muitas regressões do passado, um novo modo de viver certamente seria algo que aceitasse a nossa limitada e contraditória condição natural e tentasse superar o nosso aprisionamento à cultura patriarcal. Não resta à civilização outra saída que não seja abandonar a visão mercadológica de mundo e assumir uma visão relacional (complexa) de mundo, que considere o entrelaçamento de todas as dimensões da condição humana e do mundo natural, com o qual temos uma irremediável relação de interdependência.

Se tivéssemos hoje alguma instância de governança global com esse propósito, que alcançasse os consensos necessários entre os países mais desenvolvidos, que ditam os destinos da humanidade, uma política de civilização, tal como defendida Morin, provavelmente contemplaria pelo menos as seguintes abordagens de transformação: uma estratégia de redução da sobrecarga populacional sobre a Terra, para mitigar as mudanças climáticas já em curso; a articulação de uma democracia global, que tolere o pluralismo de modos de vida; o resgate do sentido de comunidade e de preservação dos bens comuns, que foram destruídos pelas relações narcisistas, excludentes e predatórias do mercado; e a formulação de uma nova economia relacional, que dê centralidade à vida ao cuidado da nossa Casa Comum e não à acumulação e ao consumo. A construção de um futuro reconhecível necessariamente passa por este caminho, mas ele está muito longe de ser uma realidade.

Ao que tudo indica, daqui em diante, o futuro da humanidade ficará, cada vez mais, sob os desígnios do acaso e da metamorfose. Há aproximadamente vinte anos, quando escrevia o último livro de sua principal obra, La Méthode 6 – Éthique (Editions du seuil, 2004), Morin vislumbrava dois desfechos para o atual impasse civilizatório imposto pelas múltiplas crises da contemporaneidade. Segundo ele, poderíamos sair da História “por cima”, pela regeneração do poder absoluto dos Estados, ou “sair por baixo”, pela regressão generalizada e pela “explosão de uma barbárie à Mad Max”. No entanto, Morin parece já ter descartado a primeira saída, conforme podemos observar das suas manifestações nos últimos anos, e indica ter se rendido aos muitos prognósticos que apontam cada vez mais para a barbárie. Nas palavras dele, “a barbárie está presente, hoje, ameaçando-nos novamente, esta velha barbárie de destruição e ódio, aliada a uma nova barbárie, nascida em nossa civilização, uma barbárie fria, gélida, a da técnica e dos cálculos que ignoram os sentimentos e a vida.”

O inestimável trabalho de Morin nos mostra que quaisquer tentativas humanas de moldar a realidade, seja pela visão mercadológica de mundo, seja pela visão cibernética de mundo, ou alguma outra, que estão disputando hegemonia nesta mudança de época histórica, estarão fadadas ao fracasso, o que pode acelerar ainda mais a interrupção prematura da experiência humana neste planeta já gravemente degradado. É bem melhor apostarmos nosso futuro na reforma do pensamento, como propõe Morin, na aceitação da pluralidade de modos de viver, na revisão de nossas crenças e valores patriarcais, numa visão de mundo que dialogue com a complexidade da natureza, que se afaste das ilusões de controle, hierarquia e apropriação da verdade, que aceite a aleatoriedade, a ambiguidade, as contradições, a multiplicidade, a imprevisibilidade e a incerteza que conduzem a nossa limitada condição natural.

Salve a vitalidade de Edgar Morin! Salve a sua centenária e vigorosa rebeldia! Uma rebeldia que nos instiga a aceitar e a abraçar a complexidade das dinâmicas que sustentam a vida, para nos livrarmos do engodo da insanidade capitalista que está destruindo a nossa humanidade e a nossa biosfera. Uma indispensável inspiração para superarmos os impasses civilizatórios deste século, enquanto ainda temos tempo.

Referências

EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro. São Paulo: Palas Athena, 2007.

MARIOTTI, Humberto. Os operadores cognitivos do pensamento complexo. 2007. 

MORIN, Edgar. Elogio da metamorfose. EcoDebate, 12 de janeiro de 2010. 

MORIN, Edgar. Entrevista ao Le Monde, 20 de abril de 2020. 

MORIN, Edgar. Dos Demônios: Atelier ao vivo do pensamento de Edgar Morin. Sesc São Paulo, 28 e 29 de agosto, 2000.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.

MORIN, Edgar. Meu Caminho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

MORIN, Edgar. O método 6: ética. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez/ UNESCO, 2000.

MORIN, Edgar. Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

A cadeia é o lugar dos golpistas na Bolívia

 Moisés Mendes, do jornalistas pela democracia

O ex-comandante da Força Aérea boliviana Jorge Gonzalo Terceros "agia sob as ordens do líder da extrema direita, Luis Fernando Macho Camacho, o Bolsonaro deles". O jornalista diz que, apesar da vitória da esquerda com Luis Arce, "a Bolívia está sob a ameaça permanente de golpe".

A cúpula militar que pediu a renúncia de Evo Morales no dia 10 de novembro de 2019


 


Estão presos há uma semana, em La Paz, Jorge Gonzalo Terceros Lara, ex-comandante da Força Aérea boliviana, e Palmiro Gonzalo Jarjuri Rada, ex-comandante da Marinha. A cúpula militar que pediu a renúncia de Evo Morales no dia 10 de novembro de 2019 (Foto: Reprodução | Reuters)

Mais um aviso a quem tem ambições golpistas, em qualquer lugar. Estão na cadeia todos os chefes militares bolivianos das três armas, que ajudaram na execução do golpe contra Evo Morales, em novembro de 2019, sob as ordens da polícia amotinada.

Estão presos há uma semana, em La Paz, Jorge Gonzalo Terceros Lara, ex-comandante da Força Aérea boliviana, e Palmiro Gonzalo Jarjuri Rada, ex-comandante da Marinha. Terceros e Jarjuri se juntam ao outro ex-chefe militar que já estava preso desde março, o ex-comandante do Exército Jorge Mendieta. Faltavam esses dois e o ex-comandante das Forças Armadas William Kaliman, que ninguém sabe onde está.

A prisão dos militares aconteceu no dia 5 de julho. Dois dias depois, Kaliman saiu de casa e desapareceu. É considerado foragido e está na lista da pela Interpol.

Também está presa desde março, entre outros civis, a ex-senadora e usurpadora do cargo de presidente, Jeanine Añez, que fingiu governar por um ano e é acusada pelo golpe e por corrupção.

Terceros foi o militar que recebeu munições da Argentina, como ajuda de Mauricio Macri para o golpe contra Morales. O presidente foi derrubado no dia 10 de novembro.

O atual governo localizou e remeteu ao Ministério Público uma carta de 13 de novembro em que Terceros agradece as munições ao embaixador da Argentina na Bolívia, Normando Álvarez García.

No presente de Macri aos golpistas estavam 40 mil cartuchos AT 12/70 e uma quantidade não definida de bombas de gás lacrimogêneo.

A munição foi usada pela polícia nacional e por militares contra manifestantes que combatiam o golpe, nos massacres de Sacaba, em 15 de novembro de 2019, e de Senkata, em 17 de novembro de 2019. Mais de 30 pessoas foram assassinadas.

Fica cada mais evidente que, ao contrário do que se pensava, o líder de fato do golpe na área militar não foi Williams Kaliman. Quem se submeteu ao comando da polícia nacional amotinada foi Terceros, que também é general.

Kaliman, segundo os bolivianos, era covarde demais para assumir o comando do golpe. Morales acusa Terceros de tentar matá-lo, no dia 4 de novembro, quando o helicóptero em que viajava teve uma pane que teria sido provocada por gente a mando de Terceros.

Terceros agia sob as ordens do líder da extrema direita, Luis Fernando Macho Camacho, o Bolsonaro deles. O militar foi preso na cidade de Santa Cruz de la Sierra, onde tinha a proteção de Camacho, eleito presidente do departamento em maio.

O almirante Palmiro Gonzalo Jarjuri Rada, ex-comandante da Marinha, também foi detido na mesma cidade, que é o antro da direita boliviana. A juíza Regina Santa Cruz determinou que os dois fiquem em prisão preventiva por pelo menos quatro meses.

Os militares golpistas são acusados de terrorismo, motim e organização criminosa pelo golpe contra Morales. Foi Tercero quem mobilizou aviões de combate para sobrevoos que espalharam o terror em regiões de maior resistência ao motim.

Williams Kaliman estava em prisão domiciliar e desapareceu no meio da semana passada, quando a Justiça o procurou em casa e foi informada de que o general havia saído e não voltara.

O diretor da Interpol na Bolívia, Pablo García, informa que o homem é considerado foragido e está nas listas de procurados em todo o mundo.

É certo que Kaliman decidiu fugir depois da denúncia de que os militares bolivianos receberam munições enviadas por Macri e ao saber das prisões de Terceros e Jarjuri.

Em novembro do ano passado, exatamente um ano depois do golpe articulado pela Organização dos Estados Americanos, em conluio com a extrema direita de Camacho, o Movimento ao Socialismo de Morales venceu os golpistas no voto e elegeu presidente o ex-ministro Luis Arce. Mas a Bolívia está sob a ameaça permanente de golpe.

Os bolivianos enfrentaram a OEA e todos os que se envolveram com as falsas suspeitas em torno da eleição que havia reconduzido Morales ao governo um mês antes do golpe. Enfrentaram Trump e a vizinhança hostil.

Reagiram com a democracia e devolveram o poder à esquerda. E, o que talvez seja mais surpreendente, o Ministério Público e a Justiça conseguiram encarcerar preventivamente os chefes do golpe. Quando o Brasil estará preparado para viver algo parecido?

domingo, 4 de julho de 2021

Leituras: Pobreza como cor da pele

Leituras: Pobreza como cor da pele:             Cristãos publicam manifesto contra o presidente Bolsonaro do Brasil                        Em agosto do ano passado, 130 cristão...

Pobreza como cor da pele

            Cristãos publicam manifesto contra o presidente Bolsonaro do Brasil                     


Em agosto do ano passado, 130 cristãos no Brasil escreveram um manifesto que agora também está disponível em alemão. Denuncia a política governamental do presidente Jair Messias Bolsonaro. Zeitzeichen conversou com Hans Alfred Trein, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil     ::


Zeitzeichen - Pastor Trein, o que o fez decidir formular um manifesto sobre a situação social e política no Brasil e divulgá-lo ao público?

Hans Alfred Trein - Devido à nossa confissão da Reforma Luterana, temos a convicção de que temos que vincular nossa fé ao dia-a-dia de nossa vida. Desde que o atual governo do Brasil sob o presidente Bolsonaro assumiu a gestão do país, há dois anos, a situação no país foi se deteriorando sempre mais: necropolítica é o nome adequado. Muitas das promessas iniciais não foram cumpridas, e ele escolheu a mentira como método político, seguindo seu exemplo, Donald Trump.


A que você está se referindo?

Bolsonaro - como Trump - puxou as elites financeiras para seu barco com um discurso neoliberal: privatização, reforma trabalhista, reforma previdenciária... sempre em detrimento das classes mais pobres. Ele também prometeu acabar com o nepotismo. A cada dia fica mais claro que ele apoia principalmente sua família e amigos, se cerca de milícias e descreve seus críticos como inimigos ou comunistas.


Quais são suas principais críticas ao Governo Federal?

Segundo Bolsonaro, o Brasil tem uma intensiva política de proteção florestal. No entanto, os dados acessíveis internacionalmente mostram o contrário. Os incêndios e o desmatamento ilegal aumentaram drasticamente, desde 2019. Instâncias de controle e até órgãos governamentais de proteção florestal estão sendo desmontados. Em junho de 2019, ele extinguiu o Conselho do Fundo Amazônia. Como resultado, a Alemanha e a Noruega retiraram suas doações. Agora, na recente cúpula virtual do clima, ele pediu dinheiro para retomar a proteção da floresta tropical, mas no dia seguinte, mais de 36 milhões de euros foram cortados do Ministério do Meio Ambiente. Durante a estação seca, ocorreram grandes incêndios na área de subsidência do Pantanal. O governo culpa as ONGs por isso - uma mentira. Recentemente, 200.000 metros cúbicos de madeira foram roubados ilegalmente da floresta tropical. A imprensa denuncia e nada acontece. Existem agora mais de cem processos de impeachment no Parlamento e nada acontece. É insuportável.


Existem outros pontos de crítica?

Outro assunto é o nosso novo regime militar, que se instalou mesmo sem golpe. Milhares de militares estão agora em cargos no governo federal, a maioria dos quais ainda está ativa no exército. O que acontecerá no próximo ano se a oposição vencer as eleições? Esses militares voltarão para o quartel? O presidente também quer garantir que as pessoas possam manter até seis armas de fogo em casa e os colecionadores até sessenta. Dá a impressão que algo está sendo preparado.


No manifesto você também fala sobre o Brasil sendo colocado à venda.

A privatização de nossas empresas estatais de petróleo e eletricidade está ocorrendo a portas fechadas. O Banco Central também está sendo aberto à especulação financeira internacional. Nenhuma outra nação faz isso. Terras são colocadas à venda a investidores. Grandes empresas compram madeira e minerais; no futuro, ouro só deverá ser garimpado por grandes empresas estrangeiras. Resumindo: é uma grande liquidação.


O que você entende por genocídio da população local?

A maneira como Bolsonaro lida com a pandemia do coronavírus é catastrófica; inicialmente ele a chamou de “gripezinha”. Argumentou com a necessidade de manter a atividade econômica contra as demandas da saúde, para não restringir a disseminação. Ainda há meio ano, ele se manifestou contra as vacinas. A gente é induzido a pensar que uma espécie de darwinismo social está sendo implementado aqui. Isso significa: o governo presume que todos os habitantes se contaminarão com o vírus e, então, surgirá algo como a imunidade de rebanho. E aqueles que não são suficientemente fortes ou muito fracos, morrerão. Ele aceita isso como fatalidade irreversível, e isso explica as 395.000 mortes até o final de abril de 2021.


Em seu manifesto diz, que a religiosidade de Bolsonaro é apenas marketing.

Bolsonaro era originalmente católico, depois vinculou-se aos neo-pentecostais. Seu rebatismo no Jordão foi muito publicizado e explorado durante a campanha eleitoral; ele foi repetidamente retratado orando e ajoelhado. Mas, em todas as suas declarações não se ouve nada do Evangelho de amor e paz. Fala-se apenas de ódio e armamento. Mesmo assim, ele é politicamente apoiado por neopentecostais que atraem (a) população pobre com curas e uma teologia da prosperidade. Pelo que sustentam, qualquer pessoa pode pregar sem conhecimento ou estudo porque o Espírito Santo está soprando tudo. O discurso anticientífico de Bolsonaro é amplamente aceito justamente por muitas dessas pessoas de boa fé.

A Conferência dos Bispos Católicos do Brasil já havia divulgado um manifesto em abril de 2020. Como o seu foi recebido?

Ironicamente, teve uma resposta muito boa dos jesuítas da contra-reforma no século 16 e foi inicialmente colocado no site da Universidade Católica UNISINOS de São Leopoldo. Imprensa e jornalistas o publicaram em magazines e jornais brasileiros. Mas não houve nenhuma publicação da liderança de nossa igreja, nem da Federação Luterana Mundial ou do Conselho Mundial de Igrejas. Provavelmente porque não veio da igreja como instituição. Houve reações muito críticas à publicação universitária. Isso aponta para a divisão polarizada dentro da sociedade brasileira que perpassa a nossa Igreja Evangélica de Confissão Luterana. Recebemos feedback agressivo de membros da igreja ou associações como "Herdeiros de Worms".

Qual foi o conteúdo dessas declarações?

Exigem a separação entre religião e política; infelizmente, também existem ideologias de direita em nossa Igreja, até o ponto de se tornarem fascistas. Muitas pessoas não distinguem conceitualmente entre fé e ideologia e têm uma imagem autoritária da sociedade de acordo com o lema: um bom governo é um governo forte, autoritário, também com a participação de militares. Eles também rejeitam as discussões atuais, por exemplo, sobre igualdade das mulheres, a descriminalização do aborto ou o debate de gênero. Argumentam que a igreja deveria ficar em silêncio sobre isso e se basear em declarações bíblicas. Nenhuma distinção é feita entre a cultura bíblica de 2.000 anos atrás e a atual - muito menos são atualizadas as “Boas Novas”.


Então, há uma interpretação fundamentalista da Bíblia?


Sim, embora a interpretação e exegese histórico-crítica sejam ensinadas em nossas faculdades de teologia. O que nós teólogos aprendemos nos últimos cinquenta anos não chegou à base da Igreja. Além disso, muitos em nossa igreja se sentem atraídos pelos neo-pentecostais, porque eles oferecem cura, uma espiritualidade individualizada e teologia da prosperidade. Também existe uma atitude de discriminação racial em nossa sociedade. Aqui, a pobreza tem uma cor de pele. Parte da discriminação social em nosso país data da época da escravidão. Em contraste com a América do Norte, escravos libertos no Brasil não receberam condições para se estabelecer como “livres” – por exemplo, um pedaço de terra. Foram “libertados” da escravidão para o desemprego. Isso resultou num sentimento cultural e racista de superioridade e numa estrutura de pensamento que se baseia exclusivamente no mérito. O que no fundo não é verdade e também é incompatível com o ensino luterano. A maioria tende a ser contra quando a política promove a integração social. Quando meus ancestrais emigraram do Hunsrück (Renânia/Alemanha) em 1825, eles receberam terras. Bolsonaro, por seu turno, prometeu aos grandes proprietários de terras uma inconstitucionalidade: não demarcar um milímetro de terra aos povos indígenas e descendentes dos escravos.


O que você espera das eleições da próxima campanha?

Nossa democracia sofreu um grande golpe com a destituição da presidente Dilma Rousseff, em 2016. O judiciário e a mídia oficial - nas mãos de cinco famílias brasileiras – deram sua contribuição para isso. Nós, na Igreja, também nos equivocamos na avaliação de nossa sociedade. Em termos de progresso social, estabilidade das instituições democráticas e da educação, estamos muito mais atrasados do que pensávamos: falta muito para superar e reparar os efeitos de massacres de povos indígenas e da escravidão negra. Soma-se a isso a ausência de um juízo social e político sobre a ditadura militar (1964-1985), uma sombra política permanente nos bastidores de nossa história.

Sinal do Tempo - 22º ano - junho de 2021  -   Zeitzeichen - 22. Jahrgang Juni 2021 € 7,20 8424