sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A crise permanente: poucos perceberam que a aparente inabilidade de Bolsonaro era operação ensaiada

09.11.2018​

Vladimir Safatle*

O senso comum acredita haver uma dicotomia importante entre crise e governo. Ou seja, tudo se passa como se a função do bom governo fosse impedir as sociedades de entrarem em crise ou de combater as crises que nelas se instalam. 

No entanto, o Brasil irá rapidamente descobrir uma nova forma de governo. Uma forma para a qual governar é alimentar continuamente crises capazes de capturar as forças de contestação social.

Durante certo tempo, muitos acreditaram que o senhor Bolsonaro era alguém desastrado com as palavras e com as ações. Poucos perceberam que a aparente inabilidade era operação bem ensaiada. Ela é apenas um exemplo do que significa governar hoje em dia. 

O jogo consiste em fazer os ocupantes do poder definirem todas as pautas de discussão da sociedade civil. A sociedade deve se mobilizar, discutir e se rebelar a partir de uma agenda cujo enunciador é o próprio governo. Isso faz de todo movimento social um movimento reativo impulsionado pela velocidade descontrolada com que o governo parece produzir catástrofes potenciais.


Ilustração de Marcelo Cipis para coluna de Vladimir Safatle de 9 de novembro de 2018. - Marcelo Cipis

A dinâmica já havia sido colocada em prática na campanha eleitoral. Toda ela foi pautada por uma só dinâmica. O senhor Bolsonaro e os seus falavam algo abominável a respeito dos setores mais vulneráveis da população (mulheres, LGBTs, negros, índios). Depois, aqueles que se solidarizavam com tais setores se mobilizavam e colocavam em marcha uma impressionante energia de revolta. Nos dias posteriores, os próprios enunciadores se desdiziam, afirmavam que tiveram o significado de suas falas distorcidas. Mas, logo em seguida, aparecia outra abominação, e assim foi até o último dia de campanha. 

Dessa forma, a sociedade ficava aprisionada à pauta e à dinâmica produzida pelo próprio Bolsonaro. O objetivo final era dar a impressão de que esses setores da sociedade tinham apenas uma ação reativa, sem nenhuma capacidade de proposição.

A mesma lógica foi implementada agora, nas primeiras semanas de ensaio do que será um governo por vir. Primeiro, ressuscita-se o ignóbil programa Escola Sem Partido, fazendo toda a sociedade se mobilizar contra ele. Depois, adia-se sua votação na Câmara, como se fosse para dar um alívio momentâneo. Posteriormente, o programa volta e, junto com ele, toda a coreografia. 

Outro exemplo foi a discussão imoral a respeito da transferência da Embaixada Brasileira em Israel para Jerusalém. Fora os EUA, nenhum outro país relevante no mundo o fez por saber o que significa naturalizar um processo de ocupação que impede a viabilização de um Estado (a Palestina) reconhecido pelo próprio Brasil. Logo em seguida, o senhor Bolsonaro deu indicações de voltar atrás.

Enquanto isso, a oposição a seu governo fica presa em um movimento no qual ela não consegue fazer os dois processos que precisariam ser feitos agora, a saber: uma autocrítica implacável do passado e uma mobilização a partir de nova capacidade de propor e afirmar. Em política, não basta apenas dizer o que não se quer. Há de se saber mobilizar a partir da capacidade de fazer as pessoas sonharem e quererem novas alternativas. 

O que se coloca a nós atualmente é simplesmente um governo cuja grande novidade consiste em fazer a roda da história voltar 40 anos para trás. Contra isso, é necessário mostrar novas formas de experiência de poder e de produção de riquezas. Levar as pessoas a não apenas agir por medo, mas por confiança na sua própria capacidade de tomar o poder nas mãos, em vez de entregá-lo para uma representação caricata de força e mando. 

Levá-las a não se curvarem a um processo brutalizado de espoliação, mas a assumirem o desejo de uma economia que não seja mais o antagonismo fundamental da solidariedade. Mas, para tanto, faz-se necessário saber parar de se submeter à crise permanente que o próximo governo irá gerenciar.

*Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/11/a-crise-permanente.shtml

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