11.07.2018
Marcia Tiburi e Rubens Casara
Os preconceitos não são inúteis. Eles têm uma função importantíssima na economia psíquica do preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos servem na prática para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar certezas incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para mistificar, para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal falso na pessoa do preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de “superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função fundante.
A filósofa Márcia Tiburi (Arquivo)
Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um sentido muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida, as culturas, as sociedades, as pessoas, ao parâmetro “superior-inferior”. Preconceitos não funcionam fora de jogos de linguagem que são jogos psíquicos, que produzem algum tipo de compensação psíquica.
Vivemos tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com um vazio do pensamento e um vazio da ação que se resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No sistema de preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto básico do preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas, lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles, conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu próprio medo. Segundo Henry Darger, o preconceituoso é, basicamente, um covarde.
Tendo isso em vista, é importante falar de um preconceito que está em voga nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado, pois o lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para muitos. Se podemos falar em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do conhecimento, e de “ignorância populista”, como um uso elitista da ignorância, como duas formas de exercer o poder manipulando o campo do saber, podemos falar também de um ódio à inteligência, do seu apagamento.
Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da “negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil (na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais constantes críticas direcionadas ao candidato Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das eleições municipais contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de que por ser professor não falaria “a linguagem do povo”).
O alto índice de abstenções, votos nulos e brancos (bem como a expressiva votação de políticos que se apresentavam como não-políticos) também é um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o eleitor identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um “saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.
No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores de justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de decidir contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de massa.
Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos típicos de um conservadorismo carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação.
A barbárie está em curso.
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