terça-feira, 31 de julho de 2018

Digitalização do trabalho e a escravidão no século 21

31.07.2018

Marcelo Menna Barreto


A Indústria 4.0 vai dispensar a força de trabalho e com isso tornar mais lucrativa a produção
(Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp)

Ricardo Antunes é considerado um dos principais sociólogos do trabalho no Brasil e há dez anos leciona em um curso sobre trabalho e imigração na Universidade Ca’Foscari de Veneza, onde tem acompanhado de perto os fluxos migratórios na Itália. Titular da cátedra de Sociologia do Trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor de livros publicados nos Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Itália, Argentina, Venezuela, Colômbia e Espanha, Antunes fala nesta entrevista sobre o seu novo livro O Privilégio da Servidão – O novo proletariado de serviços na era digital, publicado pela Boitempo. De forma entusiasmada, por vezes indignada, o autor aborda as transformações das relações de trabalho no Brasil do período da redemocratização ao impeachment de Dilma Rousseff e os dois anos de Temer, que identifica como contrarrevolucionário e terceirizado. E enumera os problemas da Indústria 4.0, a era do trabalho digitalizado, que considera a nova forma de escravidão do século 21. “Na escravidão o senhor de terras comprava o escravo de um traficante. No mundo moderno, a empresa aluga de outra empresa o trabalho de homens e mulheres”, compara.

Extra Classe – Em uma passagem do seu livro o senhor diz que vivemos um período excepcional da nossa história. Como é a realidade desse laboratório social que o senhor descreve?

Ricardo Antunes – Estamos em um período, digamos, inusitado na história desde o século 19. Estivemos, entre 2009, 2010 e 2011, numa era de rebeliões em todo o Oriente Médio, a partir da Tunísia e Egito, e nos principais países do Ocidente, avançando pela Inglaterra, França, Portugal, Espanha, e Estados Unidos com o Occupy Wall Street. Foram muitas manifestações que mostravam que o cenário social vinha mudando. Aquele cenário anterior de representações partidárias e sindicais, dando conta da totalidade das forças sociais sinalizava uma crise profunda e até mesmo esgotamento. Mas é tão espetacular esse período que a era de rebeliões não se converteu em uma era de revoluções.

Como assim?

Uma era de rebeliões que não se converteu em uma era de revoluções anticapitalistas. Houve revoluções democráticas em vários países do Oriente Médio, mas o mais surpreendente e mesmo trágico deste cenário é que esta espetacular era das rebeliões se metamorfoseou numa era de contrarrevoluções. Estamos vivendo hoje um cenário abertamente contrarrevolucionário.

Quais são as evidências?

O sociólogo Florestan Fernandes usou o conceito da contrarrevolução preventiva, mesmo quando não há o risco das revoluções. Ele pensava na América Latina. Nós estamos vivendo um cenário mundial de contrarrevoluções preventivas mesmo quando não há o risco das revoluções socialistas ou anticapitalistas. Então, por exemplo, um sinal desse cenário, Donald Trump, nos Estados Unidos. Trump mudou todo o tabuleiro internacional, um nacionalismo de uma era financeira que fere de certo modo o interesse do grande capital e das grandes corporações que caminhavam em direção a uma Europa unificada, o Nafta, Ásia-Pacífico. Então, de repente você tem um movimento de extrema direita muito forte com base popular que quebra, que começa a mexer nesse tabuleiro. Theresa May, na Inglaterra, tem um processo similar ao Brexit. De repente se rompe com todo o esquema montado para uma Europa unificada. E você tem no cenário mais abertamente político um Emmanuel Macron, na França. E se não fosse Macron, seria Marine Le Pen! Mauricio Macri, na Argentina. Enfim, um cenário contrarrevolucionário, para não ficar só nos países da Europa, com o nazismo se expandindo significativamente na Áustria, Polônia, na Hungria. Enfim, nós estamos em um momento em que a história vive um cenário tenebroso.

É o laboratório social ao qual o senhor se refere?

Quando eu falava em laboratório me referia a que todas as janelas estão abertas. Da era das rebeliões à era das revoluções, assim como para a era das rebeliões à era das contrarrevoluções que nós estamos vivendo hoje. É nesse cenário, comandado pela hegemonia financeira profundamente destrutiva, que é marcada por uma agressividade neoliberal ainda maior, como se a gente tivesse numa terceira fase ainda mais agressiva do neoliberalismo e onde a revolução, a reestruturação permanente do capital, ou a reestruturação produtiva do capital, se tornou permanente. Estamos na Europa hoje com o debate da Indústria 4.0. Tudo isso levou os capitais a exigirem uma devastação do trabalho em escala global. Não é por acaso que as reformas trabalhistas no Brasil – da contrarrevolução de Temer; na Argentina, de Macri; e na França, de Macron, são muito assemelhadas e tenham ocorrido quase simultaneamente, para não citar outros exemplos. É esse cenário que eu dizia que configura, no momento que eu finalizei esse meu livro, um cenário de contrarrevolução permanente, de amplitude global.

O que vem a ser a Indústria 4.0?

Houve a revolução industrial, depois houve a expansão do século 20 para o Taylorismo, a indústria automotiva; depois houve a produção dos anos 1970, 1980, 1990 para cá, e agora é o momento da quarta revolução industrial, a digitalização das coisas. É a internet das coisas. É digitalizar o espaço fabril, no sentido amplo – pode ser uma fábrica de automóveis, pode ser uma fábrica hospitalar, pode haver uma fábrica da educação. Digitalizando tudo o que você pode digitalizar você vai criando uma massa limitada de empregos mais qualificados e vai criar uma massa imensa de desempregados que não têm condições de suprir esses empregos qualificados que são reduzidos. Qual é o segredo da digitalização, que os capitais não dizem, que a CNI não diz, que as Febrabans não dizem? A indústria 4.0 vai dispensar a força de trabalho e com isso tornar mais lucrativa a produção.

Na Indústria 4.0, as máquinas estão conectadas em todas as etapas da cadeia produtiva:
“o que nós estamos vendo é uma mutação profunda no mundo do trabalho”
(Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp)

Em seu livro, o senhor aborda as principais mudanças trabalhistas que ocorreram no Brasil desde a redemocratização até o impeachment. Por que a década de 1980 foi o período mais importante dessas transformações?

Veja bem, esse período brasileiro é bastante interessante porque ele é muito complexo. Quando nós começamos a redemocratização, depois do fim da ditadura militar, tivemos um período que foi espetacular no Brasil. A década de 1980 foi a mais importante década deste último período. Talvez uma das mais importantes décadas do Brasil ao longo do século 20. Os capitais costumam dizer que a década de 1980 foi uma década perdida. Para eles, talvez tenha sido, mas no caso brasileiro, no ano de 1980 nós tivemos a criação do PT, que na sua proposta inicial era um partido independente e de classe; a criação da CUT, que era uma reivindicação histórica da classe trabalhadora brasileira, que tinha tentado inúmeras vezes formar uma central sindical e via essa proposta ser tolhida; e a criação do MST, organizando os trabalhadores do campo. Só para pegar três exemplos. Foi um período espetacular. O Brasil teve praticamente as mais importantes greves do mundo. Fizemos quatro greves gerais e chegamos à Constituição de 1988, conseguindo criar uma Constituição que, de certo modo, estabelecia um sistema de organização da relação capital e trabalho com alguns traços de civilidade.

Por que setores da esquerda não aceitaram muito bem a Constituição de 1988 à época da promulgação?

Aqui eu faço um parêntese. Nós que militávamos, estudávamos e vivíamos na década de 1980 já no sentido social e político achávamos a Constituição de 1988 insuficiente, porque houve um momento em que o Centrão fez um pântano que, digamos assim, comanda até hoje o parlamento brasileiro e impediu algumas medidas mais profundas. Por exemplo, aprovamos o direito de greve, que é uma grande conquista para a classe trabalhadora, mas a regulamentação da greve seria feita posteriormente. Ou seja, caiu no pântano. Mas ainda assim, em 1988 se desenhou um Estado com alguns valores públicos, coletivos e sociais que contraditavam a tendência neoliberal. Isto vigorou até 1989/1990.

Até a era Collor?

Sim! Em 1989 houve a eleição que dividiu o país ao meio e a partir dessa divisão, a vitória do Collor, que iniciou o que eu chamei de desertificação neoliberal no Brasil. Collor era uma aberração, como agora estamos perto de novas aberrações. As classes dominantes, quando não têm alternativas sólidas, apelam para aberrações. Nossa classe dominante tem faces fascistas em muito dos seus setores. Veja só: dirigentes da Confederação Nacional da Indústria disseram recentemente que dialogam muito bem e vêem com simpatia a candidatura do Bolsonaro. Basta isso como exemplo.

Como o senhor avalia o período FHC?

Se com Collor veio a primeira devastação neoliberal, que foi travada com a sua deposição, a vitória do Fernando Henrique Cardoso trouxe um quadro mais complexo. Com FHC iniciava-se uma fase neoliberal dotada de racionalidade burguesa. Se a fase do Collor foi um neoliberalismo devastador, eivado de irracionalidade da sua conduta, da sua personalidade, FHC foi claro no discurso de posse: eu vou implantar a política do Collor sem as maluquices que ele tentou, sem base nenhuma, e uma personalidade completamente fora dos padrões. A partir daí nós tivemos, de fato, o início da efetiva desertificação neoliberal. Só que para o FHC quebrar a CLT não era fácil. A CLT é uma espécie de Constituição para a classe trabalhadora. Os trabalhadores não sabem bem como é a sua Constituição, mas eles sabem que a CLT traz direitos, décimo-terceiro, descanso semanal, férias, etc, etc, que permitem um salário mínimo, que permitem esses direitos longamente conquistados. FHC não conseguiu quebrar a CLT, a espinha dorsal da legislação protetora do trabalho no Brasil, porque o movimento sindical resistia.

“O problema, o pavor do capital, nesse cenário que nós temos hoje é que o trabalho não
desapareceu. Ele é trabalho ultraqualificado, semiqualificado, manual, escravo, semiescravo,
análogo à escravidão, infantil” (Foto: Capa de Blood and Earth: Modern Slavery,
Ecocide, and the Secret to Saving the World Hardcover, de Kevin Bales)

E a era Lula?

É curioso. Fernando Henrique faz um primeiro governo e sai bombando. No seu segundo governo, saiu pela porta dos fundos como um vira-latas que leva um pé na bunda, com níveis baixíssimos de popularidade. Não podia fazer aparições públicas, porque era vaiado. O inverso do Lula que fez um primeiro governo em que quase perdeu a reeleição, mas saiu, no segundo mandato, com uma aprovação altíssima. Só não perdeu a reeleição porque é quase impossível alguém perder para o Alckmin (risos).

O que explica a popularidade de Lula naquele momento?

O que se deu, em uma palavra, no governo Lula, que eu trato basicamente na parte três do livro é que o Lula tentou e fez uma espetacular política de conciliação de classes. O Lula é um gênio da conciliação de classes, como o Getúlio (Vargas). Para quem gosta de conciliação de classes, ele é um mito; para quem, como eu, que não gosta, ele não é mito nenhum. Mas ele é um gênio, eu tenho que reconhecer. Ele bota deus e o diabo na terra do sol e faz virar samba. Isto é uma condição que só Getúlio tinha no passado. Não é fácil essa capacidade, mas enquanto o seu governo teve uma expansão econômica, criou 20 milhões de empregos, teve uma política de assistência social muito pífia.

Quais são as suas críticas aos governos Lula?

Eu vou dizer como eleitor, não como um analista: votei no Lula não para dar um pouco a farofa aos pobres. Muitos de nós que votamos no Lula queríamos reforma agrária, controle do grande capital, controle da remessa dos lucros. A gente sabia que não era fácil, mas é muito importante lembrar que o Lula se elegeu com mais de 50 milhões de votos. Ele tinha muito capital político para dizer: agora vai ser um governo reformista para valer. É disso que estou falando, nada além disso. E não foi. Foi um governo de conciliação, que trabalhou com a ideia de que o capital ganha muito dinheiro, mas tem que sobrar alguma coisa aqui para os debaixo. Isso funcionou, o Lula tinha uma ideia desde os anos 1970, eu o conheço há muitos anos, que era assim: incrementando o mercado interno brasileiro você aumenta o salário da classe trabalhadora, ela consome e a economia vai se desenvolver. Foi isso que fez com que a expansão econômica do mercado interno brasileiro compensasse a retração do mercado externo.

Onde Lula errou?

O Lula transnacionalizou e enriqueceu uma parte importante da burguesia brasileira que agora o pôs e o quer na cadeia. Porque a política de conciliação acabou! Ele faz a sucessora, que ganha a eleição no tranco, prometendo que não ia tomar nenhuma medida destrutiva, mas a sua primeira medida foi nomear o Joaquim Levy para ministro da Fazenda. Atenção! O primeiro convidado não era o Levy, era o (Luiz Carlos) Trabuco. Imagina se a Dilma nomeia o Trabuco, o número um do Bradesco?

O senhor é bastante crítico em relação a Dilma. Por quê?

Eu digo no meu livro, a Dilma foi o maior erro que o Lula cometeu. E não foi por acaso. O Lula escolheu a Dilma, obviamente no meu entendimento, como candidata porque ele não poderia ter como seu sucessor uma sombra poderosa e autônoma, por exemplo, um Tarso Genro, que tem luz própria, está num espectro do lulismo, mas é um indivíduo que sabe para onde ir e como ir. Ele não seria um nome que teria o respaldo do Lula para ser seu sucessor, como tantos outros não teriam. Por outro lado, a Dilma tinha méritos enormes. Ela é uma executiva poderosa, uma mulher que faz a máquina funcionar.

Mas foi golpeada…

Foi um erro gravíssimo entregar o comando político do país a alguém sem nenhuma experiência política prévia. Quando o céu é de brigadeiro, tudo vai bem. Mas quando começam as tempestades, aí… E, claro que a Dilma – eu estou tratando aqui só no plano das subjetividades dos dois, não estou falando nos interesses em volta que isso eu deixo para o leitor buscar no livro – num dado momento diz: agora a presidente sou eu, agora quem vai dar o tom sou eu. E nesse momento, politicamente, começou o acerto neoliberal que ficou com a cara de impostura eleitoral em um momento de crise, com o PT mergulhado em processos de corrupção que marcam toda a história brasileira. O PT não foi o primeiro nem será o último nesse quadro, longe disto.

E o impeachment?

Uma aberração! O impeachment foi uma aberração jurídica, um golpe parlamentar. Se a gente supõe que a pessoa sofre um impeachment é porque a pessoa cometeu crime, então automaticamente seria inelegível. Na verdade, ela foi deposta porque perdeu as condições de governabilidade, como se ela fosse um primeiro-ministro. Agora, porque esse quadro complicou? Porque em 2013 a crise chega pesada aqui, e também começa a era da devastação sobre o PT.

Como o senhor avalia Temer?

É um governo contrarrevolucionário, um governo terceirizado, que teria umas funções básicas: a PEC do fim do mundo, congelar a educação, a saúde, a Previdência; privatizar tudo o que ainda não tinha sido privatizado e devastar a legislação social protetora do trabalho. Daí aprovar a Lei da terceirização total e, por fim, arrasar de vez com a Previdência, o que foi praticamente a única coisa que não conseguiu avançar. Então nós tivemos nesses últimos dois anos a derrogação de 80%, 90% do que foi criado ao longo de lutas operárias desde a década de 1910, consubstanciado depois na CLT. A CLT, aliás, é muito ardilosa. No direito à proteção do trabalho, ela é um avanço. No que diz respeito à estrutura sindical, ela é estatizante e controladora. Carregou essa ambiguidade até hoje.

Qual o saldo disso tudo?

O resultado é que desde a redemocratização, quando visualizávamos um estado social e político capaz de ser reflexo das lutas dos anos 1980, chegamos em 2018 com o Brasil se aproximando muito, mas muito celeremente à tragédia social que é a Índia, um país com milhões – não milhares – de miseráveis perambulando pelas ruas, sendo tratados como animais e cuja miséria passa a ser assimilada pelas classes médias, pelos ricos, como natural. ‘Eu quero os miseráveis longe do meu portão’. Então, nós estamos nos convertendo em um país de miseráveis, com uma população cada vez mais empobrecida, com um desemprego estrutural profundo e o trabalho intermitente que é uma farsa. Esta é a “conquista” do Temer e é um tema forte no meu livro, por isso o título O privilégio da servidão. Quem tem trabalho, trabalha e ganha; quem não tem trabalho, não ganha. E como é que vai viver? Ah, é problema seu, não tem mais nem a sopa das 18h para distribuir para os pobres. Agora é assim: quer a sopa, vai buscar no esgoto. Como eu vi na Índia.

“Agora é o momento da quarta revolução industrial, a digitalização das coisas, que vai digitalizando tudo o que pode, cria uma massa limitada de empregos mais qualificados e uma massa imensa de desempregados que não têm condições de suprir esses empregos qualificados que são reduzidos” (Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp)

Nessa sua nova obra, o senhor coloca uma luz sobre o trabalho digital, on-line e intermitente. Nessa época de relativização de vários conceitos, o senhor faz questão ainda de denominar esses trabalhadores como o novo proletariado de serviços. Por quê?

Porque esse é o elemento novo desses últimos 40 anos. Houve nos anos 1970 e 1980 a tese de que o trabalho estava acabando, que a classe trabalhadora ia desaparecer. Um completo engano. Eu conheço a China, eu conheço a Índia, nós conhecemos a América Latina e o que nós estamos vendo é uma mutação profunda no mundo do trabalho. O setor industrial sofreu retração, o setor agrícola sofreu retração e o mundo dos serviços sofreu uma monumental expansão. Só que não são mais os serviços que nós tínhamos nas décadas 50, 60, 70 do século passado. Hoje, por exemplo, praticamente todos os espaços do trabalho sofreram a invasão do mundo digital. O celular faz com que eu possa ser contratado para trabalhar, por exemplo, na Inglaterra, onde existe um sistema que hoje já é mundial, o contrato de zero hora. Médicos, advogados, enfermeiros, cuidadoras, zeladores, limpadores, enfim, quase todas as profissões de serviços estão disponíveis por celular. Como o contrato é de zero hora, você não tem a obrigação de atender, nem o aplicativo que ganha uma porcentagem do seu trabalho de te chamar, mas em geral, as pessoas atendem ao chamado. Se não fosse o celular esse trabalho não existiria.

Para surpresa do capital, o trabalho não acabou…

O trabalho é visto pelo capital financeiro como um apêndice, infelizmente imprescindível. Se o capital pudesse eliminar o trabalho, teria feito isso há décadas. O problema, o pavor do capital, nesse cenário que nós temos hoje é que o trabalho não desapareceu. Ele é trabalho ultraqualificado, semiqualificado, manual, escravo, semiescravo, análogo à escravidão, infantil. Isso quem nos ensinou foi um velho filósofo, o Marx.

Quais são os problemas das novas formas de contratação pelo ambiente digital?

O resultado é um mundo digitalizado, informalizado, em que as plantas produtivas flexíveis exigem um mundo sob o comando financeiro. E a lógica do capital financeiro é gerar mais dinheiro e não importa como. É explorando a classe trabalhadora em todas as suas dimensões, em todos os seus momentos, em todos os seus segundos. Para isso, eu não posso ter legislação social protetora do trabalho. Então, posso ter o trabalho terceirizado – eu fui praticamente o primeiro a dizer no Brasil, que a terceirização é uma forma de escravidão. Eu fazia a seguinte metáfora: na escravidão o senhor de terras, de engenho, comprava de um outro comerciante, o traficante, um escravo ou uma escrava. No mundo moderno, a empresa aluga de outra empresa o trabalho de homens e mulheres. Na escravidão, eu compro, na terceirização, eu alugo. É claro que é uma metáfora, mas mostra a dependência. Diziam que a lei da terceirização era para legalizar a terceirização. A lei da terceirização é a burla da farsa. Querem dizer que agora é legal burlar porque a burla deixou de ser burla e passou a ser legal.

“A lógica do capital financeiro é gerar mais dinheiro, explorando a classe trabalhadora em
todas as suas dimensões, mas antes precisa eliminar a legislação social protetora do trabalho” (Imagem: Divulgação)

E as questões do trabalho intermitente?

As grandes corporações deram pulos no dia em que a reforma trabalhista passou, porque esses grandes grupos podem contratar no dia de pico, nos dias de maior movimento, sábado, domingo, à noite, e contratam os trabalhadores que ficam esperando. Tem trabalho, são chamados. Se ele vai para um almoço das 11h às 15h e depois sabe que tem que voltar das 18h às 22h ele fica direto na empresa, recebendo por trabalho intermitente. O que significa esse trabalho intermitente, esse trabalho flexível, esse trabalho, digamos, terceirizado? Ele só é possível não mais na planta rígida Taylorista e Fordista do passado, mas na planta flexível que inicia a era da acumulação flexível e aquilo que nós chamamos de Toyotismo que se ocidentalizou e ganhou novos componentes, adquirido a partir do Vale do Silício, da Califórnia. Ora, há fotografias hoje de trabalhadores do Vale do Silício que moram nas ruas ou nos carros para trabalhar porque não têm condições de pagar um apartamento, um quarto, uma pensão nessa área que é caríssima. E em compensação ele não quer perder esse emprego. Então ele coloca o carro lá, monta um banheiro e uma cozinha improvisados. Não é possível isso, não é possível…

Muito se fala de que os trabalhadores têm que se adaptar às novas ondas tecnológicas que cada vez mais impactam o mundo do trabalho. Parte da mão de obra que perde seu emprego por causa das novas tecnologias acaba sendo absorvida em outros campos da economia. E os que não conseguem se adaptar?

Miséria, fome, condição abjeta e desumana. É a Índia. Seguindo a lógica do mundo financeiro e nessa reestruturação permanente do capital nós vamos ter bolsões de miseráveis; os fluxos migratórios vão aumentar, norte-sul, sul-norte, leste-oeste, oeste-leste. As massas vão ficar desesperadas e vai ter que ter estados fascistas se fechando, fechando o trabalho.

Fonte: www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2018/07/digitalizacao-do-trabalho-e-a-escravidao-no-seculo-21/

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