sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Ler é uma prática

Alex Castro

Existe gente que “leva jeito” pra leitura?

Gosto de ler livros densos, argumentativos, cheios de ideias, que refletem sobre nossa história, sobre nossos desejos, sobre nossa civilização. a grande conversa, enfim.

ler livros assim é como exercitar um músculo ou como aprender uma língua: quanto mais você faz, mais fácil fica.

* * *

quando eu tinha 20 anos e li foucault pela primeira vez, seu estilo me pareceu difícil, palavroso, cabeçudo.

quando eu tinha 41 anos e li ou reli quatro livros do foucault, seu estilo já me pareceu fácil, fluente, gostoso.

(depois de ter encontrado o que eu estava procurando, ainda li mais dois livros dele por puro prazer.)

mudei eu ou mudei foucault?

ninguém “leva jeito” ou “tem o dom” de ler foucault: existem pessoas que escolhem consistentemente ler textos como os de foucault até o ponto que a leitura e absorção desses textos se torna não apenas mais fácil, como inclusive prazerosa.

(hoje, outros autores me parecem difíceis, palavrosos, cabeçudos: derrida, lacan, jung. estarei lendo jung por prazer daqui a vinte anos?)

* * *

fui professor, em sala de aula, durante 18 anos, em cursos particulares, escolas do ensino médio e universidades, em dois países, ensinando três disciplinas, em três idiomas, para pessoas de dezenas de nacionalidades, de todas as classes sociais.

e nunca encontrei a tal mítica pessoa que “leva jeito”, “que tem o dom”, etc.

até acredito que ela exista. que nem todas nós conseguiríamos jogar bola como pelé, ou calcular raiz quadrada de cabeça como o menino que ganhou a olimpíada de matemática.

mas também acredito que:

1) se a pessoa decidir dedicar o seu tempo a isso, que qualquer uma de nós pode jogar futebol ou calcular raiz quadrada, cozinhar ou cerzir, decentemente bem.

(e isso não tem nada a ver com formulinhas bestas tipo a das dez mil horas.)

2) escolher dedicar-se a ler livros-densos -em-ideias não é significativamente diferente, melhor ou mais útil, do que escolher dedicar-se a jogar bola ou calcular raiz quadrada, a cozinhar ou a cerzir.

* * *

dei aulas de inglês, espanhol, português, sempre como língua estrangeira.

como parte das aulas, eu estimulava as alunas a escolherem um livro de um tema que realmente gostassem, que não estivesse disponível em suas próprias línguas e que tentassem lê-lo na língua que estavam aprendendo.

e elas diziam:

“ah, mas eu não entendo nada. não adianta!”

e eu respondia:

“nunca vai chegar o dia em que você vai abrir o seu primeiro livro em uma língua estrangeira e magicamente entender tudo. o primeiro livro que você tentar ler em uma língua estrangeira talvez você só entenda 20% e lhe custe muito esforço. mas, graças a esse livro, talvez você consiga entender 30% do livro seguinte, e assim por diante. não tem atalho. não tem dia mágico. é um processo lento, um esforço consciente, uma escolha diária.”

* * *

em outras palavras, não é foucault que é cabeçudo:

você é que não leu um número suficiente de livros-densos-em-ideias como os de foucault, porque escolheu não dedicar o seu tempo a essas leituras, e sim a outras coisas, e não tem nada de errado nisso, mas também não venha criticar foucault, pois ele não tem nada a ver com as suas escolhas.

Transcrito de Papo de Homem, 12/07/2016

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