“A voz do patrão ainda reverberava na cabeça de João Meireles ao descer quatro lances de escada e chegar à rua. A notícia dos suicídios era, tipo assim, um ruído, um chiado constante, que parecia sobrepor à trilha sonora perfeita, aquela em que ele vinha morar na praia, independente, com um emprego de poucas horas por dia e muito tempo livre.
(…)
‘Mas não pode ser você’, foi a parte que entendeu do que ela disse, antes de a louca desmaiar, soltando a sacola de onde as maçãs saltaram e se espalharam ao redor dela no chão.”
Locutor de rádio, o João Meireles, acima citado, é o personagem principal da história “Um gato chamado Borges”, obra de Vilto Reis que foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura de 2015. Em seu primeiro dia de trabalho, ele tem de transmitir a nota de falecimento de um suicídio, o que o abala por conta de algo em seu passado. No ir dos dias, ele se dá conta que, na cidadezinha litorânea onde se atracou, suicídios são comuns entre os nativos. João Meireles, então, empreita descobrir a causa e, na jornada, intrigas locais, brigas, misticismos, manipulações e todo um microcosmo próprio envolve a obra de Reis.
“Antes de ser publicitário, eu era leitor” — diz ele. Blumenauense, além da escrita literária e da publicidade, dedica-se ao site Homo Literatus, projeto que nasceu ainda na faculdade, quando quis dar início a algo que o interessasse. Com os inúmeros contatos que fez devido ao site, que conta com escritores espalhados por todos os cantos do país, Reis quis também ser escritor — e foi aí que começou a história de “O Gato”, como tem sido chamada a obra na internet.
— Esses escritores me fizeram perder a vergonha. Li de tudo. Escrevi contos, novelas e romances. Fiz oficinas literárias (com Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Maicon Tenfen, entre outros). Reescrevi muito. Joguei grande parte fora. E resolvi publicar, assim, publicar a obra.
Obra esta que será publicada ainda em 2016, pela Editora Nocaute, que tem como slogan “livros pancadas”. Também idealizada por Reis, e pelo paulista de Franca Maik Barbara, a Nocaute teve início em 2015. Foi na Praia dos Ingleses, em Florianópolis (SC). Regado a cerveja, batida de abacaxi e água mineral para os mais lights, o encontro dos colaboradores do Homo Literatus foi também o início da editora que tem como objetivo publicar escritores brasileiros ainda desconhecidos.
— Estávamos batendo um papo, quando alguém perguntou: por que não começamos uma editora? Pensei: esse bebeu demais — mas era o Maik, um dos lights. O pessoal se animou. Quanto mais conversávamos, mais percebíamos que tínhamos os talentos necessários. Editores, revisores, designers, publicitários, marqueteiros, jornalistas, assessores de imprensa, leitores críticos, produtores gráficos, especialistas em e-commerce e logística. E o principal: escritores. Vários. Dali pra frente, o Maik e eu encabeçamos o projeto e fomos definindo aonde queríamos chegar, desde a construção de marca até o perfil editorial e sua causa.
O primeiro projeto da editora, a obra de Reis, será financiado via Catarse, um site para realização de crowdfundings (financiamentos coletivos), no qual o público doa e recebe recompensas, viabilizando a realização da iniciativa. “A internet proporcionou redes de contato que possibilitam e tornam mais acessíveis uma publicação, ainda que envolva outros fatores tal como desembolsar grandes quantias de dinheiro para produção, depois divulgação, distribuição e, principalmente, tempo”, comenta.
— Dado o tamanho da nossa gente, dos brasileiros, temos um número reduzido de leitores. Na mentalidade tradicional das empresas, se um mercado é pequeno, fica difícil arriscar. O medo de errar paralisa inovações. No caso das editoras, torna-se a busca apenas por aquilo que supostamente vai vender — não vejo problema nisso; empresas querem ganhar dinheiro.
Há certo risco em publicar um autor brasileiro contemporâneo, pois os brasileiros lidos geralmente são os clássicos ou não-ficções, mas o Maik e eu acreditamos em ir conversar com as pessoas, apresentar a causa, mostrar os pontos positivos de se ler gente do nosso tempo e por aí vai. Autor tem que escrever, a editora trabalha. Entendemos isso e propomos ser uma editora comercial; ou seja, o autor não paga nada para publicar, ele tem o talento, e isso é o suficiente. O restante é com a gente.
A seleção de novos autores funcionará da seguinte maneira: concursos, antologias, desconhecidos talentosos e escritores que já atuam no Homo Literatus. O site, na verdade, já é um ponto de convergência de agitadores culturais — “os norte-americanos chamariam isso de makers; e pretendemos aproveitar isso”, acrescenta.
— Pense no autor como um rapaz de 18 anos que precisa de um emprego. Ele faz o melhor currículo do mundo, tem conhecimento, vontade, dedicação e qualidade. Depois de um bom tempo procurando, dá de cara apenas com empregos que exigem experiência anterior, pois não querem arriscar ter alguém aprendendo ou, quem sabe, ter o melhor funcionário que jamais terá. É uma via de mão dupla, sempre. Então, ele se pergunta: como ter experiência anterior, se ninguém da oportunidade de “ser o primeiro”? A Nocaute, portanto, quer isso: ser a primeira a ter os melhores que o mercado recusa.
Reis fala, por fim, da reunião no site de escritores, colaboradores espalhados pelo Brasil, que se assemelha a proposta da editora, que é publicar por um mesmo canal talentos literários, país adentro também espalhados. Segundo ele, sempre que perguntam do Homo Literatus, diz que tem sorte por tropeçar nas “pessoas certas” e leva-las para trabalhar consigo.
— Em outubro deste ano, o site completa cinco anos e nós vamos correr para lançar o “Um gato chamado Borges” até lá, mas não conte a ninguém. (risos)
Abaixo, caro leitor, você confere algumas perguntas feita a Vilto Reis e um trecho de sua obra “Um gato chamado Borges”
Conte-nos um pouco mais sobre o seu livro.
“Um gato” é a convergência de muita coisa em minha vida. Escrevi a primeira versão do livro em 22 dias; porém, passei mais de um ano reescrevendo e revisando. É um romance rápido, de capítulos curtos, brincando com a estrutura do romance policial e a metalinguagem. Entre as revisões, produzi uma monografia sobre as teorias narrativas do diretor inglês Alfred Hitchcock. Foi um acréscimo importante às referências, somando-se a Paul Auster, Rubem Fonseca e Haruki Murakami — referências que vejo como principais.
Alguns leitores-beta, incluindo alguns escritores premiados, disseram que o fim do livro deixa o leitor com uma pulga atrás da orelha. Fica um espaço para quem lê completar a narrativa. Não é um final fechado. Considero isso muito bom.
Vocês publicam a obra pela Nocaute. Qual a expectativa?
É a primeira vez que o livro é publicado. Sou uma pessoa que tenta manter os pés no chão. Conheço o mercado e as dificuldades. Mas não posso negar que gostaria de ver o livro nas mãos do máximo de leitores possíveis, além de ouvir o feedback deles, aprender para um próximo livro. Conciliar a Nocaute com tudo isso só me deixa mais realizado.
Qual a sensação de ser finalista de um prêmio literário como o Prêmio Sesc de Literatura? E o que isso significa para um novo autor?
Vejo o Sesc como um selo de qualidade. Para o autor, fica mais claro o valor daquilo que ele está produzindo; já o público-leitor vê uma possibilidade naquele escritor que até então nunca tinha ouvido falar. Precisamos de mais prêmios assim.
Você fala de “uma oportunidade de mostrar ao mercado que há espaço para novas visões”; seria a editora, um novo canal de publicação, que vem do meio online?
O Maik Barbara e eu viemos de outros mercados. Ele, de uma longa experiência com comércio internacional, desenvolvimento gráfico, engenharia de produção e e-commerces. Eu carrego uma visão do mercado publicitário, tendo trabalhado com diferentes produtos e serviços. Nós dois somos escritores de ficção, mas também empreendedores. O mercado literário vem girando da mesma forma há muitos anos. Chegou a hora de descobrirmos se isso acontece por ser a única maneira possível, ou se apenas porque não se tentam coisas diferentes. Estou propenso em acreditar na segunda possibilidade.
Um gato chamado Borges
A voz do patrão ainda reverberava na cabeça de João Meireles ao descer quatro lances de escada e chegar à rua. A notícia dos suicídios era, tipo assim, um ruído, um chiado constante, que parecia sobrepor à trilha sonora perfeita, aquela em que ele vinha morar na praia, independente, com um emprego de poucas horas por dia e muito tempo livre.
Catou no bolso a sequência de ruas que devia tomar, conforme copiado do Google Maps, e seguiu adiante pela Rua do Cascudo. De braços cruzados, tremendo e agarrando a banha que cobria os sovacos, passou por casas mal-acabadas. Algumas mistas, de tábuas de construção e paredes sem reboco. Diante de uma casa coberta de lonas amarelas, um cavalo desamarrado pastava onde deveria ter uma calçada. Avisaram que a cidadezinha no inverno era um cemitério, mas não tomou a expressão como literal. Algumas pessoas, que começava a reconhecer como nativos, aparentavam ser mutantes doentes. Magros, sujos, morenos, nem sempre com cabelos pixains, vestidos em restos de malha ou jeans retalhados.
Dobrou a esquina, tomando a Rua da Pescada. Refletiu sobre seu desempenho neste primeiro dia de trabalho. Claro, estava um pouco nervoso no começo, mas logo ficou de boa e no balanço do reggae foi seguindo com a programação, imaginando uma pessoa em sua frente no estúdio, com quem conduzia uma conversa e coisa e tal. Este estilo de locução sempre o fascinou, desde os tempos em que no chão de casa, ainda pequeno, brincava com lego enquanto o pai sentado no sofá ouvia rádio e o observava. Bateu até aquela saudade desgraçada, a ausência que nem esse frio filho da puta fazia esquecer. Porém, se animou um pouco ao lembrar da playlist tocada na Maresia. Gente como Natiruts, The Wailers, Steel Pulse, Ponto de Equilíbrio, Chimarruts e SOJA. Bem melhor do que as músicas que ouviu no dia anterior. Ao dormir no Motel do Marujo, ligou o rádio e sintonizou na Maresia. Acabou descobrindo que à noite a rádio local se integrava a uma cadeia maior, da qual fazia parte, e tocava uma programação de fora.
Ao entrar na Rua Gonzaga Faria, viu uma placa apontando o Mercadinho do Afonso. Perfeito, se alugasse o porão de Dona Bergamaschi, estaria a duas quadras do mercado. Comida não seria problema. Aliás, muito brusco perguntar à mulher sobre o negócio dos suicídios logo de cara? Bem, poderia entrar no assunto questionando se ela ouviu sua primeira transmissão. Boa ideia.
Caminhava com essa possibilidade em mente quando uma moça, saindo do mercado e vindo em sua direção, parou do nada em sua frente. Estava com cara de assustada, branquelona. Os olhinhos pequenos dela se arregalaram.
“Mas não pode ser você”, foi a parte que entendeu do que ela disse, antes de a louca desmaiar, soltando a sacola de onde as maçãs saltaram e se espalharam ao redor dela no chão.
Transcrito de Yago Rodrigues Alvim - Jornal Opção - 23/07/2016
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