sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Dia do livro em Barcelona mesmo que poucos leiam

Milhares de pessoas nas ruas, com rosas numa mão e sacos de livros na outra, vão percorrendo as ruas e param apenas para meter o nariz nas bancas das editoras. É um dia diferente em Barcelona, onde as lojas que ladeiam as Ramblas (a principal rua da cidade) estão vazias e as bancas de livros no meio da rua cheias de potenciais compradores. "É uma festa para os escritores. É um dia em que eles se sentem muito acarinhados e as pessoas compram muitos livros. Pena é que a maioria não os leia a seguir". Esta é a descrição da festa de Sant Jordi (S. Jorge) feita pelo escritor catalão Màrius Serra.



Tal como ele muitos são os escritores locais que lamentam a falta de hábitos de leitura, especialmente numa região que defende uma língua própria como a Catalunha. Não só apenas 26% lê em catalão, como há um terço da população que não lê um único livro o ano inteiro. Mas essas críticas são esquecidas a cada dia 23 de abril. As celebrações de Sant Jordi espalham-se por toda a Catalunha numa espécie de feira do livro em grande escala. Facilmente os fãs esbarram com um escritor conhecido numa ruela mais escondida de Barcelona.

Por toda a cidade há escritores a dar autógrafos, sessões de leitura, programas radiofónicos de debate literário ou simplesmente bancas de vendas de livros. A esta festa da literatura junta-se a atmosfera romântica do dia dos namorados. A tradição diz que elas recebem flores - porque esta foi a planta que nasceu do sangue do dragão morto por São Jorge - e eles livros (este é um hábito mais recente, do início do século XX, e criado pelas editoras e livreiros de Barcelona, uma das principais 
indústrias da região). Mas hoje em dia "já não é uma coisa só para meninos e outra só para meninas", sublinha Bel Olid, presidente da Associação de Escritores de Língua Catalã.

Patrícia e Juan provam essa teoria. Compraram rosas para os dois e livros para os dois. Ela, brasileira, vive esta tradição há 15 anos. Enquanto ele, catalão, sempre se lembra se celebrar Sant Jordi. E também eles espelham a tradição de não ser certo que vão ler os livros. Falta tempo, desculpam-se. Pela mão trazem a filha, que ainda não sabe ler, mas também já carrega uma rosa. "É uma festa muito especial porque não tem idade. Toda a gente pode vir para a rua e celebrar, sejam crianças ou adultos", aponta Patrícia.

A atmosfera diferente é algo que os catalães passam o dia a tentar explicar aos turistas. "É uma festa na rua, celebra os livros, o dia dos namorados, depois é também uma espécie de início da primavera e as pessoas estão de bom humor. Há mesmo um ambiente especial." Isabel Momso esforça-se por deixar claro que nem sequer tem a ver com o facto de estar a fazer negócio. Claro, "há a parte da faturação, já que neste dia se vendem 7% dos livros do ano inteiro", mas "é uma festa muito importante para os catalães". Responsável pela Editora Base, Isabel diz não ter feito uma grande seleção dos livros que trouxe para o Sant Jordi: "trouxemos quase tudo o que estava no armazém". E tem compensado já que "este ano está a correr melhor".

Além de ser uma festa tradicional, este ano tem ainda o elemento especial de ser o primeiro Sant Jordi depois de Barcelona ter sido considerada Cidade da Literatura pela UNESCO, na mesma data em que Óbidos recebeu a mesma designação. Uma nomeação que a coordenadora do gabinete da UNESCO na cidade espera vir a ajudar na maior interação dos catalães com a literatura. "Queremos ajudar a recuperar a alma de Barcelona e que as pessoas que aqui vivem passem a saber que as ruas onde passam todos os dias já inspiraram escritores como Cervantes ou George Orwell", aponta Marina Espasa. Ela própria uma escritora que não imagina as suas histórias com outro cenário além de Barcelona.

Não só Barcelona e a Catalunha são os cenários preferidos dos escritores locais, como é impensável escrever noutra língua que não o catalão. Najat El Hachmi nasceu em Marrocos, mas chegou a Barcelona com oito anos e é em catalão que pensa. "Para mim é impossível escrever noutra língua. Foi a primeira língua que aprendi na escola", justifica. No entanto, Bel Olid sublinha que se pode ser um escritor catalão e escrever em castelhano e dá como exemplo o best-seller Víctor Amela. Ainda que a própria escreva em catalão e lamente algumas falhas na defesa da sua língua. "Quando as minhas filhas eram mais pequenas não percebiam os filmes porque eles são dobrados apenas em castelhano e nós falamos catalão em casa."

Também a popular escritora infanto-juvenil Gemma Lienas defende uma maior proteção do catalão durante o Sant Jordi. "Agora já não é apenas para os escritores catalães e às vezes a grande figura é uma celebridade que escreveu um livro." Ainda assim, Gemma reconhece que este continua a ser um dia em que "os escritores são acarinhados pelos seus leitores" e em que "há uma troca de ideias muito bonita".

Transcrito de www.dn.pt - Ana Bela Ferreira - 24/04/2016

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