Ellen dos Santos Oliveira (Graduanda/FSLF)
Profa. Dra. Vilma Mota Quintela (Orientadora/FSLF)
É indispensável para os estudantes de graduação em Letras o conhecimento literário a partir de leituras de obras consideradas obrigatórias para a formação acadêmica. É importante tanto para os docentes quanto para os discentes que haja preocupação com a formação literária no curso de Letras, considerando-se que, provavelmente, estes venham a se tornar futuros professores de Língua Portuguesa e Literatura. Assim sendo, esses formandos terão, entre tantos, um grande desafio a cumprir durante a sua jornada profissional, qual seja: formar leitores literários.
Quanto a isso, é importante ressaltar que, antes de se tornar apto a formar, o formador preciso ser formado. Ciente de que a formação deve ser contínua, ou seja, iniciar-se na graduação e estender-se a toda a vida profissional, um questionamento que o professor de literatura deve ter em mente é: Literatura pra quê? Para ensinar literatura, o professor deve ter noção da dimensão da importância dessa produção cultural para a sociedade, para, assim, poder compreender e refletir sobre sua prática docente.
Em seu livro Literatura para quê (2009), Antoine Compagnon argumenta que a literatura deve ser lida e estudada porque oferece um meio de preservar e transmitir a experiência daqueles que estão distante de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela torna patente o fato de que os outros são muito diversos de nós e de que seus valores se distanciam dos nossos.
Já o crítico e sociólogo Antonio Candido, em A literatura e a formação do homem, explica o papel da literatura na formação do homem e na sociedade. Segundo ele a literatura possui a capacidade de humanizar o sujeito, ou seja, confirmar a humanidade do homem. Para Candido, a literatura desperta no leitor o interesse por elementos contextuais. O leitor é despertado a ver como o texto é formado a partir de um contexto, e ver “os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo onde vivemos”. (CANDIDO, 1972, p. 77 e 79)
Abreu parece concordar com esse ponto de vista ao comentar que “a literatura nos transforma em pessoas melhores, pois ao ler ficamos sabendo como é estar na pele de gente que leva uma vida muito diferente da nossa, passando por situações inusitadas”. (ABREU, 2006, p.81) Segundo Candido, a literatura atua de forma psíquica e social, isto é, ele a vê “como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. (CANDIDO, 1972, p. 80)
O autor identifica três funções específicas que se relacionam entre si, quais sejam: a função psicológica, a função formadora e a função social. A função psicológica se dá devido à capacidade e à necessidade que o indivíduo tem de fantasiar, seja através da literatura escrita, ou oral. Segundo o autor, o ser humano depende da literatura, sendo esta co-extensiva à vida humana, seja individual ou em grupo.
A função formativa surge da ligação entre a fantasia e a realidade, visto que a literatura atua na formação do indivíduo como instrumento educativo específico. Enquanto tal, ela se justifica por um ponto de vista mais complexo que o estritamente pedagógico, pois irá formar o indivíduo, apresentando-o à realidade que a classe ideológica dominante tenta esconder, no sentido em que a ideologia traça regras cívicas e morais a fim de instruir o indivíduo.
É através da literatura que o indivíduo tem a possibilidade de ampliar sua visão de mundo e do outro, pois no texto literário a realidade é expressa, e “mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente o que as convenções desejariam banir”. (idem 83 e 84)
A função social atua no sentido de reconhecimento universal e individual, permitindo ao homem conhecer a realidade que o cerca e que é transposta para a ficção. Pois, quando a realidade é apresentada na obra literária de forma fidedigna, possibilita que o leitor identifique seu mundo com o mundo fictício da obra, e também se auto identifique através dos personagens. O autor cita como exemplo as obras regionalistas que são uma espécie de documentário da realidade crítica social, da condição humana em determinado período histórico. Nesse sentido, a literatura atua como uma denúncia social.
Já o leitor, a partir da leitura, socializa essa denúncia. (idem, p.83) De acordo com Todorov, como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é a experiência humana. A propósito, diz o autor: "Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende, se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano". (TODOROV, 2009, p. 92-93)
Educar supõe uma arte de fazer, e o texto literário permite ao leitor falar de si mesmo, dialogar com outros homens, em um movimento que já é uma forma de universalidade, à qual deve chegar toda educação que não se limite a “fabricar” algo. (MEIRIEU 1999 apud BRAYNER 2005, p.18) Foi tendo em vista a importância que a literatura tem sobre homem e a sociedade, e tentando suprir a necessidade de formar leitores literários durante a formação docente em Letras que foi idealizado o projeto “Ciclo Literatura Comentada”.
Nesse sentido, o referido projeto surgiu a fim de proporcionar aos estudantes do curso de Letras e demais interessados uma leitura orientada e comentada de obras literárias consideradas indispensáveis, objetivando despertar o interesse para o início de uma formação literária contínua. A seguir, uma breve exposição da proposta e uma reflexão sobre os seus resultados parciais.
1. O Projeto do Ciclo Literatura Comentada
A realização do Ciclo Literatura Comentada se justifica pela necessidade de formar leitores e desenvolver leituras de obras literárias consideradas como “Leituras obrigatórias” para os graduandos em Letras, e futuros professores de literatura. Este projeto iniciou em 25 de Fevereiro e encerra em 08 de dezembro de 2012. Durante esse período serão realizados onze encontros. Em cada encontro é comentada uma das obras literárias escolhidas.
É estipulado um prazo para leitura das obras, e durante os encontros são expostos vídeos biográficos, ou filmes adaptados, a fim de proporcionar o conhecimento acerca do contexto histórico de escritores e suas respectivas obras. Na sequência, professores convidados comentam as obras e abrem espaço para um debate, estabelecendo um diálogo entre docentes e discentes. Assim os estudantes podem se posicionar e contribuir com o seminário a partir das leituras desenvolvidas. Eles também têm a oportunidade de desenvolver análises sobre as obras lidas para apresentá-las no último dia do projeto, previsto para dezembro de 2012.
As obras literárias, cujos nomes estão grifados em negrito na tabela abaixo, são as obras que foram escolhidas para serem lidas e comentadas durante o Ciclo Literatura Comentada . Foram selecionados romances incluídos na lista indicada nos dois últimos Exames Nacionais de Desempenho de estudante (ENADE 2008 E 2011), tal como estão dispostas na portaria nº 131, de 7 de agosto de 2008, e Portaria Inep nº 222 de 26 de julho de 2011, conforme a tabela abaixo:
ENADE:
As questões de estudos literários deverão enfocar os seguintes autores e obras:
Obras em prosa exigidas em 2008
|
Obras em prosa exigidas em 2011
|
a) José de Alencar - Senhora
b) Aluísio de Azevedo - O cortiço
c) Machado de Assis - Quincas Borba
d) Guimarães Rosa - Primeiras Histórias
e) Graciliano Ramos - Vidas secas
f) Clarice Lispector - Hora da Estrela
g) Jorge Amado - Capitães da Areia
h) Lygia Fagundes Telles - As horas nuas
i) Eça de Queiroz - Primo Basílio
j) José Saramago - Memorial do Convento
k) Gabriel García Márquez - O amor nos tempos
do cólera
l) Júlio Cortázar - Contos completos
m) Gustave Flaubert - Madame Bovary
n) Miguel de Cervantes - Dom Quixote
o) Émile Zola - Germinal
p) Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana
dos Santos) Mayombe;
|
a) José de Alencar - Lucíola
b) Adolfo Caminha - Bom crioulo
c) Machado de Assis - Memorial de Aires
d) Guimarães Rosa - Miguilim
e) Érico Veríssimo - Um certo capitão Rodrigo
f) Clarice Lispector - Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres
g) Jorge Amado - Capitães da Areia
h) Luiz Vilela -Tarde da noite
i) Eça de Queiroz - As cidades e as serras
j) José Saramago - Ensaio sobre a cegueira
k) Gabriel García Márquez - Cem anos de
solidão
l) Mia Couto - Terra sonâmbula
m) Júlio Cortázar - Contos completos
n) Gustave Flaubert - Madame Bovary
o) Miguel de Cervantes - Dom Quixote
p) Émile Zola - Germinal
q) Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana
dos Santos) – Mayombe.
|
Figura 2:Relação de obras literárias em prosa indicadas pelo Enade 2008 e 2011
Além de contribuir para a prática da leitura literária, O Ciclo Literatura Comentada também possibilita aos estudantes o conhecimento profundo dessas obras, apontando tal fato para a importância da realização do projeto no âmbito universitário.
2. Uma Pesquisa em Andamento
Durante o Ciclo Literatura Comentada, foi aplicado um questionário aos estudantes participantes com o objetivo de diagnosticar o que estes entendem por literatura, o motivo que os levaram a participar do projeto e a bagagem literária que eles trazem. Nesse questionário, eles são convidados a responder às seguintes perguntas: Você gosta de Literatura? O que você entende por Literatura? Por que você está participando do Ciclo Literatura Comentada? E como você acha que o ciclo pode contribuir para a sua formação? Qual ou quais dessas obras literárias você já leu? Qual ou quais das bibliografias citadas acima você pretende ler? Por quê?
A pesquisa ainda se encontra em desenvolvimento, mas já foi possível analisar dados de 66 entrevistados, sendo, todos estes, participantes do Ciclo Literatura Comentada. A partir da análise dos dados obtidos, o que se pôde constatar é que 87% dos estudantes entrevistados responderam que gostam de literatura; 4% responderam que não gostam; e 4% não responderam a essa pergunta.
SOBRE A PERGUNTA:
Você gosta de Literatura?
Nº de alunos
|
Respostas
|
Percentual
|
58 responderam
|
Sim
|
87,87%
|
4 não responderam
|
Não
|
6,06%
|
4 responderam
|
Não responderam
|
6,06%
|
Figura 3:Tabela demonstrativa do percentual de alunos que gostam de literatura
Ao serem questionados sobre o motivo desses estudantes estarem participando do Ciclo Literatura Comentada, eles deram respostas bem semelhantes, muitos deles buscam adquirir conhecimentos literários.
Algumas respostas demonstram a preocupação com a formação acadêmica e a prática docente de ensino-aprendizagem, como se observa nas respostas abaixo reproduzidas: “Participo pelo fato de considerar a literatura fundamental para o ser humano e, para mim, na condição de estudante de Letras trata-se de um conhecimento necessário para uma boa formação”. “O objetivo da participação do evento é enriquecer, aprofundar meus conhecimentos literários, pois creio que irão contribuir tanto no meio acadêmico quanto em sala de aula (prática) ensino/aprendizagem”. “Porque procuro discussões sobre literatura. O Ciclo pode fomentar em mim a busca constante pelo conhecimento literário”. “ Para obter mais conhecimentos e para poder transmitir esse conhecimento para os meus alunos”.
Para aqueles alunos que responderam não gostar de literatura, o projeto serve, como uma prática de incentivo e formação à leitura literária a fim de despertar interesse e aptidão no que diz respeito à disciplina. Percebe-se, com isso, que eles parecem ter certa noção da necessidade de compreender e entender a literatura, como se pode observar nas respostas abaixo elencadas: “ Porque [...] talvez eu possa interessar - me por literatura” “ Porque é necessário. De maneira positiva” “Estou participando como forma de interação, informação para ter aptidão diante da disciplina”. “Para adquirir mais conhecimento e entendimento sobre a Literatura”.
Ao serem perguntados sobre as obras lidas, pode-se diagnosticar que a mais lida pelos estudantes foi A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Dentre os entrevistados, 56% responderam que já haviam lido essa obra; 54% afirmaram já ter lido Vidas Secas, de Graciliano Ramos; 53% leram O Cortiço, de Aluízio de Azevedo; 45,45% leram Capitães de Areia, de Jorge Amado; 34,84% leram Quincas Borba, de Machado de Assis; 30,30% leram Os Maias, de Eça de Queirós; 15,15% leram Dom Quixote, de Miguel Cervantes; 10,60% leram Madame Bovary, de Gustave Flaubert; e apenas 3,03 % leram As Horas Nuas, de Lygia Fagundes Teles, sendo esta a menos lida pelos estudantes. Pode-se constatar também que 4,54% responderam não ter lido nenhuma dessas obras elencadas. Conforme demonstra a tabela abaixo:
Percentual de entrevistados que leram as obras literárias
Obra Literária
|
Núm. de pessoas que
leram
|
Percentual
|
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector
|
37
|
56%
|
Os Maias, de Eça de Queirós
|
20
|
30,30
|
Quincas Borba, de Machado de Assis
|
23
|
34,84%
|
Vidas Secas, de Graciliano Ramos
|
36
|
54,54%
|
Capitães de Areia, de Jorge Amado
|
30
|
45,45%
|
O Cortiço, de Aluízio de Azevedo
|
35
|
53,30%
|
As Horas Nuas, de Lygia Fagundes Teles
|
2
|
3,03%
|
Madame Bovary, de Gustave Flaubert
|
7
|
10,60%
|
Dom Quixote, de Miguel Cervantes
|
10
|
15,15%
|
Nenhuma
|
3
|
4,54%
|
Figura 4:Tabela demonstrativa do percentual sobre a leitura das obras literárias
A maioria dos estudantes (65,14%) leu de uma a três das obras literárias elencadas. 13,63% leram quatro das obras escolhidas; 9,09% leram cinco das obras escolhidas; 3,03% leram seis das obras escolhidas; 3,03% leram sete das obras escolhidas; 1,51% leu oito das obras escolhidas; e nenhum estudante havia lido todas das escolhidas. Como mostra a tabela abaixo:
Quantidade de obras lidas pelos estudantes de Letras entrevistados
Quant. de estudantes
que leram
|
Quantidade de obras
literárias
|
Total
|
10 estudantes leram
|
1 das obras escolhidas
|
15,15%
|
14 estudantes leram
|
2 das obras escolhidas
|
21,21%
|
19 estudantes leram
|
3 das obras escolhidas
|
28,78%
|
9 estudantes leram
|
4 das obras escolhidas
|
13,63%
|
6 estudantes leram
|
5 das obras escolhidas
|
9,09%
|
2 estudantes leram
|
6 das obras escolhidas
|
3,03%
|
2 estudantes leram
|
7 das obras escolhidas
|
3,03%
|
1 estudantes leram
|
8 das obras escolhidas
|
1,51%
|
Nenhum estudante leu
|
9 das obras escolhidas
|
0%
|
3 estudantes leram
|
Nenhuma das obras escolhidas
|
4,54%
|
Figura 4:Tabela demonstrativa do percentual da quantidade de obras literárias lidas pelos estudantes
Considerações Finais
O Ciclo Literatura Comentada , como é dito anteriormente, destina-se, não a sanar, mas a contribuir para a elevação do ainda muito baixo nível de leitura literária desses formandos em Letras, aspecto notável nas considerações elaboradas sobre os resultados obtidos na pesquisa diagnóstica acima referida. Cumpre aqui ressaltar: em nosso entender, a docência em Letras deve focar projetos que contribuam para a formação de leitores literários, sendo esse um dos grandes desafios do professor de Língua Portuguesa e Literatura.
A propósito, concluiu-se com a análise aqui apresentada que a maioria dos estudantes participantes do projeto Ciclo Literatura Comentada gostam de literatura. Há um índice de participação bem pequena (6,06%) de estudantes que dizem não gostar de ler. Esse aspecto não deixa de ser significativo, pois é evidentemente preocupante o fato de que, muitas vezes, o estudante de Letras chega ao curso com uma bagagem literária exígua.
No desenvolvimento do projeto Ciclo Literatura Comentada , constatamos que, sendo um projeto de longa duração (dez meses), o mesmo pode vir a contribuir, significativamente, para o processo de formação de leitores literários, constituindo-se, tal atividade, como uma importante prática educativa. Quanto a isso, convém lembrar que essa formação deve ser algo contínuo, podendo ser iniciada durante a graduação.
Em suma, podemos desde já concluir que as leituras e os debates desenvolvidos durante o projeto em análise têm sido eficazes na formação reflexiva e no posicionamento crítico desse leitor diante do texto literário.
Referências
ABREU, Márcia. Cultura Letrada: literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006.
BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Como salvar a educação (e o sujeito) pela literatura: sobre Philippe Meirieu e Jorge Larrosa. Pernambuco: Revista Brasileira de Educação. nº 29, mai.jun.-jul.ago.2005. p.63-72.
CANDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972, v. 24, n. 9.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
MEC. Manual Enade 2011. Brasília-DF, mai.2011. Disponível em: http://www.ufrb .edu.br /prograd /index.php/projetos-pedagogicos-dos-cursos/doc_details/682-manual-enade-2011. Último acesso em: jul. 2012.
MEC. Portaria Inep No 131, de 7 de agosto de 2008. Considera as definições estabelecidas pelas Comissões Assessoras de Avaliação da Área de Letras e da Formação Geral do Enade, nomeadas pela Portaria Inep nº 95, de 24 de junho de 2008. Diário Oficial da União. Nº 153, Seção 1, 11 de agosto de 2008, p.12.
MEC. Portaria Inep nº 222 de 26 de julho de 2011. Considera as definições estabelecidas pela Comissão Assessora de Área de Letras, nomeada pela Portaria Inep nº 155, de 21 de junho de 2011. Diário Oficial da União, 27 jul. 2011, Seção 1, p. 18 e 19.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
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