sexta-feira, 3 de junho de 2016

O papel da literatura infantil e juvenil indígena na educação socioambiental

Antonio Carlos Ribeiro*

Para meus curumins, Pedro e Vitória! 

O tetragrama sagrado HVHY (em caracteres latinos) são as quatro consoantes que designam o nome de Deus (Yahweh, em hebraico), por isso impronunciável. No ÉÀÉÌ, evento realizado em 2013 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), há também quatro letras, mas vogais, que o tornam pronunciável.

Para pensar no futuro das povos indígenas no Brasil é preciso pensar nas crianças indígenas. Para pensar nelas, é preciso pensar no seu núcleo familiar e na reflexão. E necessário lidar com esse saber e fazê-lo vivo entre as populações, sobretudo os mais jovens, mais precisamente as crianças indígenas. E nesse enquadramento, surge o papel da literatura infantil e juvenil, com funções várias, que dá os elementos para pensar o mundo, inclusive a educação socioambiental.  



Feitos esses recortes, descobre-se a tarefa da literatura indígena infantil e juvenil, e seus caminhos possíveis. Ela se origina naqueles saberes não ditos, não escritos, codificados em linguagem informal, muitas vezes apenas ambientais, sensoriais – com o uso apurado dos cinco sentidos e o aporte de um sexto que os interliga -
 recuperando a condição humana que a eles empresta sentido existencial.  

O que é significativo na vida de todos os seres humanos é guardado pelo mistério (da palavra grega mysterium que chega ao latim como sacramentum) e é comumente traduzida como o sinal visível de uma ausência. Por isso, em nossa cultura, a cadeira do avô é mantida na sala, o retrato da avó continua no quarto e o pátio é preservado com as árvores, os brinquedos e os riscos no chão para brincar de amarelinha. Isso significa que essas coisas são mais que coisas. Elas guardam fios invisíveis de memória e têm o poder de evocar sentimentos, imagens, sons, cheiros, cores e sabores que trazem de volta a capacidade mágica de ser revisitados por aqueles que fazem parte do momento fundante de nossa vida.  

Nas tradições indígenas essa intermediação é feita pela floresta, os rios, os animais, o plantio e o conjunto do ecossistema que integra o habitat desses povos. Assim, preservar esse ecossistema, para esses povos não é apenas a sobrevivência biológica e a criação das condições para a preservação da vida humana na terra. É recuperar a memória, que nos traz de volta as raízes mais profundas, fundacionais do mundo – a partir do qual lemos tudo à nossa volta – estruturantes do olhar, que ao se dirigir à natureza – nos faz encontrar-nos com nós mesmos, deparar-nos com aquela parte da personalidade humana que não está acessível pela razão.  

A razão, que no mundo ocidental, especialmente nas culturas mais ricas, parece fundamental, é representativa dessa lógica do domínio das situações, do controle dos outros, do poder sobre as coisas que nos faz pretensiosos, arrogantes e quase convictos. Julgamos poder colocar todos os conceitos sob seu controle, desde suas descrições mais básicas. O substantivo surge da pretensão de nomear a substantia, a essência, e muitos ainda creem que a palavra mantém aquele significado, a partir do qual aquilo tem sentido para as pessoas.  

Movimento inverso é o vivido por esses povos, dentre eles, especialmente os poetas. Da palavra de Ailton Krenak sobre poesia indígena na Feira do Livro Indígena de Mato Grosso (FLIMT), em outubro de 2009, aprendi a diferença da lógica do mundo ocidental para a dos povos indígenas. Segundo ele, as pessoas se deixam perpassar por todo esse conjunto à sua volta e o que fazem é emprestar sua capacidade, emoção e talento a essas forças que o perpassam, tomam conta, contribuem para adentrar o mistério. Aqui vale lembrar que o mistério não esconde, mas, contraditoriamente, revela.  

Possuídas pelo mistério as situações se descortinam, os horizontes se abrem e a conexão das imagens permite compreender, aprender junto, distinguir os entretons. Lembra a figura da tradição cristã – perdão por todo o mau significado que cristão, branco e ocidental evocam! – para falar de perceber o que está presente, mas não pode ser visto, como o véu da noiva no momento do sim no casamento (apocalipse = desvelar). O mistério pede respeito, ao conteúdo e ao processo, e isso é parte constitutiva do se aproximar. O cuidado é exigido porque aquilo de que aproximo é maior, é fontal, é constitutivo. Por isso, tirar as sandálias dos pés, se curvar, reverenciar.  

É com essa atitude, que a gente pode se aproximar da cultura dos povos indígenas. Lembre que estás pisando solo sagrado, da história das vítimas, da memória dos injustamente vencidos, dos que tiveram seu sagrado pisado. Esse é o primeiro passo, reverenciar. O segundo, é deixar-se possuir pelo mistério.  Se achegar à ancestralidade, sem esquecer que ela é prenhe da memória viva dos antepassados, é nutrida da sua história de luta e afirmação, é marcada por dor e sofrimento, e por isso é a semente que mantém esses povos vivos e lutando.  

E a literatura infantil e juvenil é a forma mais bela, quiçá prazerosa, de adentrar esse templo, a natureza na qual, desde tempos imemoriais, esses povos vivem e celebram. Quando a gente vagueia pela obra de Daniel Munduruku, entre diversos outros autores indígenas, se depara com esse horizonte.  

Em Você lembra, pai, ele trata das questões da relação pai-filho. Lembra o cotidiano, o ambiente do crescimento, os ritos de passagem, sempre marcados pela memória do pai. Poderosas memórias evocativas – ligadas a momentos significativos – são esse referencial. Os registros espirituais e afetivos são mais fortes que os racionais e intelectuais. Mexem com a vida toda e não apenas com a razão. A inteligência emocional tem mostrado hoje que quem ama mais muitas vezes chega antes às respostas.  

A Sabedoria das águas, do mesmo autor e na mesma temática, trata da mística do cotidiano, aponta para a espiritualidade, descreve dilemas existenciais de um índio jovem e sua mulher. Mostra essa liturgia necessária para viver os mistérios da vida e contemplar o que só pode ser visto pelos iniciados naquele rito. Mais que isso, se baseia na sabedoria ancestral, herdada de tempos imemoriais, construída pela mística dos xamãs e testemunhada pela comunidade peregrina. O mistério em vasos de barro é a comunidade humana.  

Essa mística é a que guarda os saberes da vida e da sobrevivência do cotidiano: da obtenção das condições de vida, das sementes; dos tempos de plantio e colheita, frio e calor, sol intenso e chuva abundante; dos alimentos, orações, remédios e cuidados. Os papéis de cada membro, o aprendizado dos pequenos e dos jovens, a força da experiência dos adultos e a sabedoria dos mais velhos. Em cada uma destas etapas há os sinais, os cuidados, os riscos, as precauções e as maldições.  

A mística da manutenção da vida, dos curumins, dos guerreiros, das mulheres e dos anciãos da tribo, vai dos cuidados básicos à completa liberdade para cada espaço: a tenda, o pátio, a aldeia e os espaços das aldeias, lembrando os protegidos da profanação como o lugar de culto e da sepultura dos mortos, com riscos que variam do perigo da natureza aos letais, que passam pelas forças que surgem das disputas. A mística da defesa de espaços de luta e sobrevivência passa pela caça e a pesca, com a obtenção de condições de caçar, transportar, preparar os alimentos. No interior das florestas.  

A literatura infantil e juvenil, que deve ser mais prestigiada, por ser uma extensão desta memória para as novas gerações, nos convida a “entrar numa compreensão mais circular, tradicional, ancestral. Esse pensar nos remete à ideia de que as coisas estão integradas entre si e que elas – as coisas – trazem um saber que lhes é peculiar e que se manifesta a quem está atento aos sinais do universo. Isso tem sido mantido pelos povos indígenas ao longo dos milhares de anos que habitam este planeta”, observa Munduruku. (Você lembra, pai, p. 9).  

Muito desse saber, a gente só recebe pela experiência. Quando tive contato com Cristino Wapichana, na FLIMT 2009, que me contou como uma tribo lida com o problema da violência especialmente em um ou outro jovem. Quando o grupo percebe isso, não reage a este comportamento, ao mesmo tempo que cria as condições para que o jovem índio perceba isso. Caso isso não resolva, o pagé entra em cena. Ele pega uma formiga grande e põe sobre o corpo do rapaz, que o pica imediatamente e é logo retirada. A dor é forte e o rapaz começa gritar. E então, o mesmo pajé administra o antídoto.

Assim, ele explicou como existem mecanismos naturais, usados pelo pajé para conter o ímpeto dos jovens. É uma forma de lidar com a pulsão e a violência. Logo percebemos a diferença entre as sociedades tribais e a nossa sociedade. Esse método diminui sensivelmente os casos de conflito. Mas é bom lembrar que as sociedades indígenas não têm polícia, nem ministério público e nem judiciário.    
A literatura infantil e juvenil guarda todos esses saberes. Por isso deve ser estimulada, preservada, fomentada e subsidiada. E o papel de uma instituição como o Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer-PUC-Rio) é apoiar essa iniciativa.  

Referências

MUNDURUKU, Daniel. Coisas de Índio. São Paulo: Callis, 2000.
________. Coisas de Índio; versão infantil. São Paulo: Callis, 2003.
________. Sabedoria das águas. Ilustração de Fernando Vilela. São Paulo: Global, 2004.
________. O segredo da chuva. Ilustração de Marilda Castanha. São Paulo: Ática, 2003.
________. Você lembra, pai? Ilustração de Rogério Borges. São Paulo: Global, 2003.

*Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer-PUC-Rio)

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