PALMA DE OURO
boicotar porque mostra justamente um Brasil que eles tentam esconder
Léa Maria Aarão Reis
Aquarius é um filme de resistência,” disse o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, 48 anos, em entrevista coletiva, esta semana, diante da mesma entusiasmada recepção de público e de crítica com que Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, foi saudado no Festival de Cinema de Cannes em 1964 – outro filme de resistência.
A semelhança não pára aí. O clássico filme incendiário de Glauber foi apresentado pela primeira vez, em sessão fechada, no Rio de Janeiro, quatro dias depois do comício de Jango, na Central: 17 de março de 64. Agora, com uma notável atuação de Sonia Braga (ressaltada pela mais respeitada crítica internacional) Aquarius, libelo contra a especulação imobiliária desenfreada que desfigura as grandes cidades brasileiras, parece simbolizar aquilo em que está se transformando a sociedade brasileira como escreveu o crítico do jornal britânico The Guardian, Peter Bradshaw: "Essa rica e misteriosa história brasileira é sobre desintegração social".
Para ele, o roteiro, escrito por Kleber, sobre uma mulher de 66 anos, crítica musical aposentada, em pé de guerra contra uma construtora que quer demolir o prédio em que mora, é "linda" e "surpreendente."
Já o crítico brasileiro e editor do site Filme B, Pedro Butcher, lembra que o diretor tem um ”controle absoluto do cinema”, demonstrado em O Som ao Redor, seu primeiro longa- metragem de ficção.
"Toda a mídia do Brasil falou sobre o gesto do protesto,” observa surpreso, o autor de Aquarius, que também é roteirista, tem formação jornalística e já exerceu a crítica de filmes, a respeito do protesto e da denúncia do elenco no tapete vermelho do festival.
“Aproveitar os holofotes de Cannes deu certo", disse nas primeiras entrevistas concedidas depois da exibição oficial. “O filme é de resistência e é um pouco um filme de sobrevivência; mas mais ainda se trata de um filme sobre a energia necessária para existir. Às vezes cansa, mas há que encontrar mais energia para continuar a lutar. Penso que a Sônia entendeu isso logo”.
Outro diretor brasileiro que se apresenta em Cannes este ano, na categoria de documentário, com o filme Cinema Novo, Eryk Rocha, filho de Glauber, comenta que o atentado à produção de cultura sofrida pelo país, neste momento, “revela a falta de visão e de dimensão estratégica da importância da cultura e da educação no Brasil. E talvez elas sejam as duas coisas mais importantes do mundo contemporâneo no século 21. São questões estratégicas de Estado de muitos países desenvolvidos, como aqui na França, e essa fusão de ministérios, no Brasil, revela uma miopia, uma falta de projeto, tanto de cultura quanto de educação.” Eryk foi outro que, em suas entrevistas, se mostrou radicalmente contra o impedimento da presidente Dilma e denunciou o golpe.
Na trama, que como afirma o The Guardian, é, de certa forma, uma metáfora do Brasil, “abordando temas como nepotismo, corrupção e cinismo”, Sonia Braga, no seu desempenho do personagem de Clara, brilha e deixou fascinados os críticos presentes ao festival. “Clara já é uma das heroínas mais revolucionárias do cinema brasileiro, uma mulher forte como não se encontra no cinema nesta faixa etária: na sua potência como mãe, na sua potência profissional, na sua potência erótica,” louvou o jornal português O Público.
A inesquecível Dona Flor, por sua vez, comenta: “O problema é com os ricos. Querem tirar a todos tudo o que eles têm e querem fazer as cidades feias,” ela acrescentou, no encontro com a mídia, à afirmação do ator Humberto Carrão, outro do elenco de Aquarius, que fala da “falta de educação dos ricos.” Ambos se referiam ao contexto da personagem no filme, uma sexagenária, a única habitante de um edifício na Praia da Boa Viagem, no Recife dos anos 40, que, não querendo abandonar as suas memórias, torna-se “um foco de resistência para os projetos de uma imobiliária e da sua ferocidade,” como diz O Público.
Outros calorosos elogios vêm da revista americana Variety, uma das mais importantes da indústria cinematográfica. Para ela, Sonia está "incomparável" no papel de Clara. O autor do texto, Jay Weissberg, definiu Aquarius como um filme "mais sutil, mas não menos maduro" do que O som ao redor, de quatro anos atrás.
Para a jornalista Letícia Constant, do Le Monde, o longa é um forte candidato na corrida pela Palma de Ouro. E a conceituada crítica de cinema do jornal, Isabelle Regnier, considerou Aquarius o melhor filme exibido até agora na competição oficial. O jornal escreve que o diretor pernambucano enfoca os problemas do Brasil contemporâneo com beleza e musicalidade.
Ela considera um gesto "simples e forte” o protesto dos artistas no tapete vermelho: “Faz eco à revolta da personagem Clara, interpretada por Sônia Braga.”
O Libération também adorou o filme de Kleber que deve estrear no Brasil ainda no segundo semestre deste ano. O diário de esquerda destaca que ele apresenta no filme um retrato magnífico dos males da sociedade brasileira por meio da Clara “em luta contra a ganância do capitalismo”. Para o Libé a atuação de Sônia Braga é “resplandecente”.
O crítico Luiz Joaquim, do site Cinemaescrito resume as confluências do filme de Glauber e de Mendonça: “Assim como Deus e o diabo assombrou a todos por mostrar o óbvio no que diz respeito a questões da reforma agrária (e não apenas isso), tão em voga no Brasil daquele ano, Aquarius deverá encantar a todos em função de uma muito bem delineada personagem feminina, sexagenária e determinada a nunca renunciar àquilo que acredita ser o correto - mesmo que para isso precise lutar sozinha contra um gigante milionário em recursos financeiros e políticos.”
“Soa familiar?” ele pergunta.
Sim. É trágico viver para ver que, 52 anos depois de Glauber, entre lutas, idas e vindas, recuos e vitórias políticas e sociais progressistas, depois de tanto sofrimento, o povo brasileiro, como a Clarado pernambucano Kleber, é acossado pelo espírito da mesma malta que retorna desavergonhada, para desmontar uma jovem democracia.
Resumindo, para O Público, Aquarius é um filme sensualíssimo, sereno e sinistro sobre a memória ameaçada. Para a tradicional revista francesa Première, o cineasta Kleber Mendonça Filho traçou uma crônica da sociedade brasileira com “ maestria e uma melancolia impressionantes."
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