Jefferson Fernandes do Nascimento é da etnia Macuxi. Para ele o relacionamento
entre universidade e comunidades tradicionais tende a ficar mais estreito
Gabriel Valery, da RBA
São Paulo – “A universidade deve olhar para fora e prestar contas dos impostos e investimentos que a sociedade faz.” A definição é do primeiro reitor indígena do país. Jefferson Fernandes do Nascimento é doutor em agronomia e, aos 51 anos, é o pioneiro de seu estado nessa posição. Criada em 1989, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) nunca havia tido um roraimense à frente das atividades acadêmicas.
O novo reitor assumiu o cargo no último dia 12, e conversou com a RBA sobre questões ligadas à sua carreira, educação e desenvolvimento indígena, desafios para sua gestão – de 2016 até 2020 – e a situação dos povos tradicionais no estado. Nascimento foi eleito, em pleito realizado em novembro de 2015, através de um processo que contou com a participação de 476 professores, 322 técnicos e 1.473 alunos. A chapa vencedora tem como vice-reitor Américo Alves de Lyra Júnior, natural de Brasília.
Nascimento pertence à etnia Macuxi, a maior de Roraima. “Somos divididos em várias comunidades, com localização diversa no estado em regiões de fronteira. Nos concentramos em áreas de vales, como a dos Rios Uraricoera, Amajari e Cauamé”, afirma. Origem, criação e tradição indígenas o direcionaram para a academia. “Posso dizer que tudo começou durante a minha infância na Vila Surumu, hoje Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Observava minha mãe, que gostava de cultivar hortaliças e frutas no quintal de casa. Comecei a desenvolver gosto pelo plantio, o que me atraiu e motivou a estudar.”
A ligação do novo reitor com sua comunidade não cessou após seu ingresso na academia. Formado em Agronomia pela Universidade Federal do Ceará, apresentou seu mestrado na Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais e o doutorado, na Universidade Estadual de Maringá, no Paraná. Ao regressar para Roraima, passou a lecionar na UFRR, em 1993. “Meus amigos e parentes moram na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tenho um irmão que é tuxaua (liderança). Na nossa região, há os clássicos festejos de São José, organizados pela comunidade, uma festa religiosa e cultural que completou 70 anos este ano. Sempre que posso participo, com minha família, das atividades culturais, além de acompanhar desafios da região em várias esferas: política, social, econômica. Valorizo minhas raízes”, diz.
A própria UFRR possui fortes conexões com as comunidades indígenas do estado. “Nossa universidade é a primeira instituição federal de ensino superior a implantar cursos específicos de graduação para a formação de indígenas. A UFRR criou, em 2001, o Núcleo Insikiran, hoje transformado em Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, tendo como objetivo desenvolver e articular a formação profissional do indígena da região.” O nome do instituto é de origem Macuxi, sendo Insikiran um dos filhos do guerreiro lendário Makunaimî.
Os resultados das mobilizações sociais em torno da questão indígena roraimense vem mostrando bons resultados, de acordo com o reitor. “Temos visto a melhoria na qualidade do estudante que sai da UFRR e amplia espaços sociais e políticos na sociedade e a contribuição para suas comunidades (…) Além dos cursos de graduação, a UFRR tem presença muito forte nos eventos que envolvem povos tradicionais”, afirma.
Como agrônomo, Nascimento atuou ativamente em projetos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias alternativas para manejo de áreas tradicionais. “Já coordenei projeto na comunidade do Barro (Terra Indígena Raposa Serra do Sol) sobre manejo agroecológico de pragas e doenças em hortaliças e fruteiras”, afirma o reitor.
Nascimento chama a atenção para a situação dos territórios indígenas no estado, hoje mais confortável do que outrora. “Roraima hoje é um estado consolidado na questão da demarcação das terras. Além das demarcações, as terras indígenas foram homologadas, entre elas, temos a Terra Indígena Reserva Yanomami, Terra Indígena São Marcos, Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre outras."
RBA - Como foi o seu caminho até o ingresso na academia?
Nascimento - Sou roraimense, formado em Agronomia pela Universidade Federal do Ceará, mestre em Fitopatologia pela Universidade Federal de Viçosa (MG) e doutor em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá (PR). Desde 1993, sou professor do curso de Agronomia da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Fui eleito reitor em 5 de novembro de 2015 para um mandato até 2020.
Quanto à minha vocação para Agronomia, posso dizer que tudo começou durante a minha infância na Vila Surumu, hoje Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Eu observava minha mãe (já falecida) que gostava de cultivar hortaliças e frutas no quintal de casa. Então, comecei a desenvolver o gosto pelo plantio de hortaliças e fruteiras, fato que me atraiu e motivou a estudar.
Quais os obstáculos encontrados neste caminho?
Sempre fiz meu trabalho com a mesma dedicação e dialogando com todos. Os obstáculos do dia a dia são comuns a todos, muitas vezes não temos as condições ideais, equipamentos ou recursos humanos para contribuir e ampliar as ações, mas isso tudo pode ser superado com esforço e confiança que podemos alcançar os melhores resultados possíveis, nas condições que nos são impostas. Com mais de 20 anos de experiência em sala de aula e também por meio de projetos de pesquisa e extensão, consigo antecipar situações que podem gerar obstáculos e procurar as melhores soluções. A experiência de vida conta muito nessas horas.
O sr., que descende da etnia Macuxi, ainda mantém contato ou executa atividades com seu povo?
Sim, sou macuxi. Meus amigos e parentes moram na região do Surumu, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tenho um irmão que é tuxaua (liderança) em Surumu e uma irmã que é antropóloga, envolvida com as questões indígenas. Na nossa região, há os clássicos festejos de São José, organizados pela comunidade, uma festa religiosa e cultural que completou 70 anos este ano. Sempre que posso, participo com minha família das atividades. Tenho acompanhado os desafios da região em várias esferas, política, social, econômica e valorizo minhas raízes.
Qual a situação do povo Macuxi no momento?
Somos a maior etnia em Roraima. Os índios Macuxi são divididos em várias comunidades, com localização diversa no estado em regiões de fronteira. Se concentram em áreas de vales, como o vale do Rios Uraricoera, Amajari e Cauamé e ocupam as áreas do vale do interflúvio Maú (Ireng)/Rupununi, na Guiana. Sabemos que as questões que envolviam conflitos entre índios de organizações diferentes, brancos e índios em relação à demarcação de terras terminaram, mas as noções do que seria o desenvolvimento econômico nas terras indígenas ou a educação indígena diferenciada, são temas que estão na agenda dos povos hoje. Não há apenas uma forma de pensar essas questões e nós, na universidade, temos acompanhado esses debates, considerando que temos o Instituto de Educação Superior Indígena Insikiran, o primeiro espaço criado no Brasil para a formação de professores no âmbito federal.
Como decidiu seguir carreira acadêmica?
Meu ingresso na academia se deu logo após eu me formar em Agronomia. Voltei do Ceará, cheguei aqui em Roraima, desempregado. A oportunidade que tive foi dar aula na Escola Agrotécnica de Roraima como professor horista. Nesse período, surgiu a oportunidade de fazer concurso para docente no curso de Agronomia, recém-criado na UFRR. Me preparei muito, fiz o concurso e tive êxito para ingressar na carreira de docente na UFRR.
Durante a trajetória interna e acadêmica, a universidade me deu a oportunidade de fazer mestrado e doutorado e desenvolver meu trabalho com mais possibilidades de contribuir com a instituição. Nesse sentido, alguns movimentos internos e políticos na universidade, pessoas e amigos reconheceram esse trabalho e o esforço nessa trajetória interna e me colocaram em situações em que eu pudesse concorrer ao cargo de reitor. Não foi nada planejado. Esta conjuntura e a rede que foi sendo construída ao longo dos anos, com respeito mútuo, favoreceram a pensarmos na ocupação deste espaço na administração superior, que é um grande desafio.
Atuando como agrônomo, possui projetos envolvendo povos indígenas?
Sim, além de projetos envolvendo pesquisas de desenvolvimento de tecnologias alternativas para o manejo de áreas degradadas e/ou abandonadas em assentamentos rurais, que são mais recentes, já coordenei projeto na comunidade do Barro (Terra Indígena Raposa Serra do Sol) sobre manejo agroecológico de pragas e doenças em hortaliças e fruteiras, financiado com recursos externos via Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
Qual o cenário da educação indígena no estado?
A UFRR é a primeira instituição federal de ensino superior a implantar cursos específicos de graduação para a formação de indígenas. A UFRR criou, em 2001, o Núcleo Insikiran, hoje transformado em Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena. Nosso objetivo é desenvolver e articular com professores, comunidades e organizações de Roraima e, a sociedade em geral, a formação profissional dos indígenas da região, de modo específico, diferenciado e intercultural. Temos visto a melhoria na qualidade deste estudante que sai da UFRR e amplia espaços sociais e políticos na sociedade e a contribuição para suas comunidades.
O Insikiran veio atender a uma das demandas das principais organizações indígenas do estado, que reivindicaram o acesso ao ensino superior por meio da Carta de Canauani, elaborada no ano de 2001. Atualmente possui três (3) cursos de formação superior para indígenas: a Licenciatura Intercultural (2001) e os Bacharelados em Gestão Territorial (2009) e Gestão em Saúde Coletiva Indígena (2012).
Interessante mencionar que o nome Insikiran é originário da mitologia dos povos indígenas que habitam o Monte Roraima, sendo Insikiran para os Macuxi um dos filhos guerreiros de Makunaimî, irmão de Anikê, personagens integrados na cosmologia desses grupos étnicos.
A universidade realiza atividades conjuntas com os povos tradicionais?
Sim. Além dos cursos de graduação, a UFRR tem uma presença muito forte nos eventos que envolvem os povos tradicionais. Tem sido parceria nesses 26 anos de existência. Por meio de professores, técnicos e estudantes, muitas publicações, simpósios, seminários, trabalhos de campo, conteúdo para TV e rádio públicas, exposições artísticas, ações culturais, de pesquisas e de extensão têm sido desenvolvidas.
Qual a situação da demarcação de terras das comunidades indígenas no estado?
Hoje pode ser considerado um estado consolidado nessa questão, além das demarcações, as terras indígenas foram homologadas, entre elas, temos Terra Indígena (TI) Reserva Yanomami, TI São Marcos, TI Raposa Serra do Sol, entre outras.
Qual a expectativa para a gestão da UFRR dos próximos anos? O que pretende alterar?
Queremos mostrar para a sociedade como a universidade está contribuindo e como pode contribuir ainda mais para o Estado. Ela tem uma função social e, ao longo dos 26 anos, já demonstrou que o capital intelectual que sai formado da instituição tem excelente qualidade. Não só na graduação, mas na pós-graduação. A universidade deve olhar para fora e prestar contas dos impostos e investimentos que a sociedade faz. Vamos priorizar uma política que envolva a comunidade, com todos os canais possíveis de comunicação, para dar o máximo de transparência do que está sendo feito.
A educação superior pode auxiliar na qualidade de vida dos povos tradicionais, e a firmar as bases culturais indígenas?
Com certeza, é um grande ganho para os povos tradicionais, sobretudo, quando hoje as escolas das nossas comunidades contam com maior número de professores indígenas formados pela. nossa UFRR. Temos vários profissionais formados em outras áreas ofertadas em nossos cursos de graduação, por exemplo, nos cursos de Comunicação Social, Biologia, Medicina, Direito, Antropologia, Agronomia, Ciências Sociais e outros. Antes, nós deixávamos nossas famílias para estudar em outros estados, por exemplo, eu sou um, mas há muitos outros.
O sr. é o primeiro roraimense a ocupar o cargo de reitor. A que se deve esse distanciamento até então da gestão da federal?
Acredito que este é um processo natural de ocupação desses espaços institucionais no Brasil, sobretudo, em estados como Roraima e na Amazônia como um todo. Muitas pessoas de origem indígena entram para a vida pública e conseguem êxito na gestão pública nas mais diversas esferas.
O que define este sucesso é o trabalho bem feito, por meio de competências administrativas, equipes comprometidas, transparência, estudo e dedicação. Isso é independente de outras condições, como a questão racial. Acreditamos que todos podem fazer um bom trabalho. Claro que é preciso oportunidades para todos, e considerar, outros fatores decisivos como a habilidade política e capacidade de diálogo.
Transcrito de http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/03/primeiro-reitor-indigena-assume-universidade-federal-de-roraima-1602.html
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