A história da leitura
Pode-se conceber uma história da leitura da maneira mais simples, enquanto mero relato da progressão cronológica das obras escritas. Essa acepção, ainda que singela, impõe de imediato certas condições; a primeira é a de existir a escrita, reconhecida pela sociedade enquanto um de seus possíveis meios de comunicação; outra, é a de obras produzidas terem se tornado públicas, vale dizer, socializadas. Da sua parte, essa socialização decorre de algumas providências, como a de possibilitar o acesso à escrita por parte dos membros da sociedade, o que implica também o estabelecimento de uma instituição encarregada de fazê-lo: a escola, que, de seu lado, carece de pessoal qualificado para desempenhar a tarefa de decodificar letras e alfabetizar - o que corresponde à leitura.
Já se vê que a história da leitura ultrapassa a história da literatura, preocupada, pelo menos até o momento, com a seqüência, no tempo, de obras de cunho artístico, divididas conforme o gênero - a poesia foi privilegiada desde o início, mesmo antes de a história da literatura se reconhecer como tal - e conforme a língua em que circularam pela primeira vez. A história da literatura adota recortes que identificam seu objeto pela nacionalidade, a língua sendo a opção mais freqüente. Quando esse critério falha, como no caso das literaturas produzidas nas Américas, recorre-se o fator geográfico, e a literatura confunde-se com o país em que apareceu inicialmente ou de provém o autor do texto.
A história da leitura avança para além do texto, lidando, pelo menos, com:
- uma instituição: a escola, onde atuam indivíduos habilitados a exercer funções pedagógicas, pelas quais são remunerados; esse assalariado - o professor - não precisa estar regularmente qualificado ou titulado, mas, por força da necessidade, do talento ou do gosto, ele se prepara para o exercício da profissão que o distingue.
- uma técnica: a escrita enquanto código reconhecido e aceito pela comunidade, que precisa dele para operar nas relações familiares, sociais ou econômicas. As relações entre a expansão da escrita e da sociedade capitalista são notáveis, e George Thomson, estudioso da cultura helênica, chama a atenção para a circunstância de a fixação do alfabeto grego, no século VII a. C., ter-se dado simultaneamente à aceitação da moeda como fator de circulação dos produtos comerciais1. Dinheiro e escrita podem não ter nascido ao mesmo tempo, mas passaram a infância juntos, e sua expansão tem ocorrido em sociedades avançadas do ponto de vista econômico.
- uma tecnologia: a fixação da escrita num meio físico permanente. Esse variou com o tempo, tendo sido originalmente o barro, como ocorreu aos sumérios, que guardaram suas anotações, para o que se valeram da escrita cuneiforme, em tabuletas de argila; mas depois apareceram instrumentos mais práticos: o papiro, um tanto frágil, o pergaminho, resistente e duradouro, o papel, de baixo custo, embora perecível. Essas alterações supuseram interferências de novas técnicas para exploração dos recursos naturais, de que resultou a expansão dos meios para fixação da escrita, bem como o barateamento da produção e as facilidades de circulação. Modificaram-se igualmente as formas do objeto que transportava a escrita - dos rolos de pergaminho ao formato retangular do livro impresso em papel, até, nesse final de milênio, o quadrado de plástico que identifica os disquetes ou os círculos de alumínio dos CD, a que se tem acesso por intermédio de programas em linguagem eletrônica, decifradas por um editor de texto.
Os processos de fixação da escrita também se transformaram no tempo, caminhando na direção da facilitação e da socialização. Uma tabuleta de argila supunha o trabalho de um perito, o escriba que documentava a informação oral recebida, seja do poeta, seja do administrador que desejava contabilizar seus ganhos e propriedades. Esse trabalho individual, especia-lizado e de difícil circulação prolongou-se até o século XV da era cristã, quando a invenção dos tipos móveis e da impressão mecânica propiciou, pela primeira vez, a produção em escala industrial de textos impressos.
Logo, a história da leitura consiste na história das possibilidade de ler. A atividade da escola, somada à difusão da escrita enquanto forma socialmente aceita de circulação de bens e à expansão dos meios de impressão, faculta a existência de uma sociedade leitora. Mas, para que isso ocorra, é preciso:
- que a escola seja atuante, isto é, que se valorize a educação enquanto fator de ingresso à sociedade e ascensão;
- que a escrita seja, ela mesma, considerada um bem, propriedade que atesta a existência de outras propriedades (talvez não seja um acaso que se assegure a propriedade por intermédio de uma escritura, que o dinheiro circule como papel e se traduza em investimentos - letras);
- que se julgue a impressão de textos escritos um negócio lucrativo.
Para corresponder a essas condições, só a sociedade capitalista. Sabemos que escolas existiram na Grécia e em Roma, que a escrita remonta aos sumérios do terceiro milênio antes de Cristo e que as técnicas de impressão começaram com os chineses, ainda durante a Idade Média ocidental. Mas a reunião desses fatores ocorreu por causa da emergência e sucesso da sociedade capitalista, quando o capital cultural tornou-se igualmente importante para a acumu-lação do capital financeiro.
Leitura então consolidou-se como prática, nas suas várias acepções. Produto da escola e critério para ingresso e participação do indivíduo na sociedade, veio a ser valorizada como idéia, por distinguir o homem alfabetizado e culto do analfabeto e ignorante. A leitura passou a distinguir, mas afastou o homem comum da cultura oral; nesse sentido, cooperou para acentuar a clivagem social, sem, contudo, revelar a natureza de sua ação, pois colocava o ato de ler como um ideal a perseguir. O ainda não leitor apresenta-se na situação primitiva de falta, que lhe cumpre superar, se deseja ascender ao mundo civilizado da propriedade, por conseqüência, do dinheiro e da fortuna.
Não é coincidência que apenas dois tipos de seres ficam de fora do mundo da leitura, qualificados de frágeis e ineptos, até ingressarem na escola: a criança e o "homem do povo". Ambos recebem o mesmo qualificativo: são analfabetos, mas o primeiro pode transformar a ca-rência em plenitude, desde que educado. Espera-se o mesmo do segundo, seguidamente este-reotipado de modo pueril até mudar sua situação, para o que intervêm os ensinamentos que recebe.
Nos textos abaixo, percebe-se como se dá esse processo, conforme o qual o sujeito passa por uma transformação interior profunda, ao se transportar da situação de analfabeto a leitor. No conto de Roque Callage, autor gaúcho das primeiras décadas do século XX, o peão aprende a ler no quartel, evoluindo, a partir daí, para o reconhecimento de sua nova condição de cidadão, identificado às necessidades da Pátria:
Num espaço de tempo tão curto, sob o efeito eficaz de uma instrução contínua, o espírito bronco do rapaz, que da vida, aos vinte e um anos, só conhecia o cavalo e o campo, já se sentia desenvincilhado da nômade ignorância da campanha natalícia. Rapidamente aprendera a ler e já sabia assinar o nome. Foi um verdadeiro milagre. Pouco a pouco um gênio familiar e tocante, uma viva centelha invisível incutia no quartel, à coletividade dos conscritos, as primeiras noções da Pátria. Na sua totalidade filhos das colônias, sem escolas, das campinas abandonadas, onde lá uma que outra aula existe muitas vezes num raio de oito a dez léguas de distância, só no quartel encontravam os jovens soldados quem lhes alumiasse um pouco o espírito, fazendo-lhes ver acima dos interesses pessoais, das pequenas exigênci-as egoísticas do Eu, a razão de ser da nacionalidade. Começa-vam aos poucos amar a sua história, a compreender os seus símbolos e a sentir a vitalidade do seu sangue. A maioria da mocidade, de que aquele jovem fronteiriço podia ser um exem-plo, se transformou em pouco tempo, radicalmente, passando de uma fase de inércia para uma outra mais bela, mais lúcida, de ardoroso civismo. Eram os heróis de Esparta, que renasciam agora com os albores de uma educação que até então lhes faltara. 2
Jorge Amado, por sua vez, atribui à leitura a capacidade não apenas de despertar no indivíduo seus vínculos com os problemas nacionais, mas também de torná-lo apto a preparar os companheiros para a luta social:
Nestor completou já seu vigésimo quinto aniversário e só agora aprende a ler e a escrever, não é fácil, por vezes parece-lhe impossível poder conduzir a mão, dirigi-la no desenho das vogais e consoantes. (...)
(...) Nos primeiros dias, quando os olhos se enevoavam e se re-cusavam a fixar separadamente cada um daqueles misteriosos signos do alfabeto, ele pensara se desesperar e mesmo lágrimas de raiva sentira nascer, ardendo, em suas pupilas. Mas era ne-cessário: como ler para os demais aqueles papéis esclarecedo-res se ele mesmo não soubesse ler? Como estudar os livros dos quais Gonçalo falava? Não bastava sentir o fogo da revolta crescendo dentro dele, fazia-o preciso acendê-lo em todos os demais, e para isso era necessário saber ler e escrever. 3
Verifica-se por esses aspectos que a leitura não constitui tão-somente uma idéia, com a força de um ideal. Ela contém também uma configuração mais concreta, assumindo contornos de imagem, formada por modos de representação característicos, expressões próprias e atitudes peculiares. A ela pertencem gestos, como o de segurar o livro, sentar e escrever, inclinar-se, colocar os olhos. Faz parte igualmente dessa representação a alusão a resultados práticos, mensuráveis em comportamentos progressistas.
Idéia, ideal e representação, a leitura se concretiza como uma prática, que se exerce individualmente, mas que resulta da concepção que a sociedade formula para as classes e as pessoas que a compõem. Eis por que sempre nos deparamos com políticas de leitura - propostas por grupos, categorias profissionais, governos - reveladoras da dimensão assumida pelas representações.
Políticas de leitura não deixam de valorizar a leitura como idéia; mas seu sucesso de-pende de a leitura ser igualmente prezada enquanto negócio. Um importante ramo da sociedade capitalista é constituído pela indústria de livros, para não se falar das fábricas dos maquinários para impressão, nem do hoje importante segmento dado pela produção de hardwares, softwares e periféricos que fazem a alegria das feiras de informática. Não ler é ficar de fora desse mundo, o que talvez signifique ficar de fora do mundo.
Uma história da leitura faz parte, portanto, da história da sociedade capitalista. Mas talvez seja, ela mesma, a história da sociedade capitalista, encarada desde o prisma econômico até o das representações. Inclui a história dos livros e das publicações4; e recorre à história da literatura, que esclarece que livros, dentre os editados e em circulação, permaneceram, de preferência ligados à poesia e à arte. Mas vai mais adiante, porque indica, para os próprios leitores, como eles se pensaram, seja enquanto membros da sociedade (matéria da sociologia da literatura), seja enquanto consumidores de obras escritas (matéria de uma sociologia da leitura).
Considerados esses pressupostos, duas alternativas de trabalho se oferecem, a primeira de ordem teórica, a segunda de natureza aplicada, a saber:
a) Do ponto de vista teórico, pode-se verificar em que medida a história da leitura ultrapassa as aporias da sociologia da literatura, chegando à perspectiva materialista que essa tem dificuldade de alcançar, por não ter sido bem sucedida no seu esforço de superar a perspectiva mimética ou do reflexo em que se sustenta. 5
b) Cabe propor, de outra parte, a produção de uma história da leitura no Brasil, avesso da trajetória bem sucedida do processo de ocupação do país pelas forças coloniais e colonialistas e, simultaneamente, espelho onde a sociedade nacional pode ver representado o fracasso de seu projeto de modernização.
A história da leitura no Brasil congrega o percurso das instituições encarregadas de patrociná-la. A principal delas é a literatura, até agora não invocada, mas que tem seu lugar numa história da leitura. Essa não apenas supõe a existência das obras escritas, mas também de um conceito de literatura. No caso, trata-se da concepção que distingue, de um lado, a produção de textos impressos em geral, de outro, as Belas Letras.
Essa noção é relativamente recente, remontando ao século XVII francês e ao Cardeal Richelieu que, fundando a Academia Francesa, conferiu certo status ao poeta e escritor 6. De-pois, a sociedade burguesa levou adiante a separação, valorizando o intelectual e o artista en-quanto homem de gênio, mas afastando-o da vida prática. A literatura - e a arte, de modo geral - é institucionalizada, mas esse processo não esconde uma contradição, que a acompanha sem-pre: artistas e intelectuais são considerados imprescindíveis, mas o que fazem não é julgado trabalho, logo, não requer remuneração7.
O mundo da arte torna-se esfera autônoma, e por essa razão requer tratamento especi-al, deferência que se traduz na constituição de uma (ou mais) ciência(s) que lhe são próprias - a Estética e a Teoria da Literatura 8. Mas pertence a esse afastamento a proibição de retornar a vida prática, a não ser sob outra máscara. Nem por isso a instituição perde poder, legitimando-se na sociedade burguesa; quem paga a conta são os trabalhadores inseridos nela, rebaixados à condição de inúteis ou parasitas, dispensados, por isso, de salário, a não ser quando aceitam a praxe, julgada nefanda no caso deles, de ganhar dinheiro. Nessa posição, é a instituição que os rejeita, gerando um círculo vicioso que exige de seus membros a sujeição às suas normas.
A história da literatura no Brasil corresponde ao processo dessa institucionalização, difícil e penosa. O processo se particulariza, quando lembramos que pertence à história da literatu-ra brasileira a permanente busca de sua própria identidade. No período colonial os poetas se julgavam portugueses, até José Basílio da Gama e Silva Alvarenga se dizerem americanos e brasileiros 9. Os românticos, no século XIX, incumbidos de escrever a história literária nacional para o novo país, saíram atrás de sintomas de brasilidade no passado; de lá para cá, a procura pode ter perdido o ímpeto, mas não saiu do horizonte da crítica e historiografia literária
brasileira. 10
Relacionada a essa questão é a da qualidade dessa literatura, pois, para ser reconhecida como instituição, é preciso que contenha obras de valor artístico inegável, aceitos dentro e fora do país. Não é o que acontece, e ninguém melhor que Oswald de Andrade para, com humor característico, recusar a "poesia de importação" e expressar o esforço para criar a "Poesia Pau-Brasil, de exportação." 11
O reconhecimento interno não parece mais fácil que o externo, e essa aspiração se manifesta de várias maneiras:
- quando o escritor procura traduzir temas de interesse local, como foram a seu tempo, no século XIX, o Indianismo e o Regionalismo, desde os anos 30 a expressão das mazelas sociais e políticas do país, hoje a ênfase no encantamento esotérico e a busca de auto-ajuda por via das ciências e das Belas Letras;
- quando o escritor luta pela constituição de seu público, formando seu gosto, educando-o para o consumo de livros, preparando-o para absorver técnicas literárias mais refinadas12;
- quando a categoria de escritores reivindica seus direitos, exigindo remuneração adequada que confira respeitabilidade ao trabalho intelectual;
- quando escolhe o caminho da profissionalização por vias paralelas, como a imprensa, alternativa discutida desde a época de Raul Pompéia, Lima Barreto, Coelho Neto e Olavo Bilac, ou a política, que conferem personalidade pública ao artista; ou quando prefere uma institucionalização não de sua arte, mas de sua pessoa, promessa contida nos regimentos de todas as Academias, as brasileira e nacionais, bem como as estaduais e municipais.
Ao examinar a história da literatura nessas diferentes perspectivas, a história da leitura cumpre seu papel, materializando o funcionamento do aparelho cultural e dando visibilidade às suas entranhas, nem sempre eticamente recomendáveis, se nos restringimos ao estrito código da criação literária, o da Estética, porta-voz da beleza e da universalidade da arte. Por sua vez, a história da literatura brasileira, com suas contradições, vaivéns contínuos, avanços e recuos, revela a natureza dialética da história da leitura, que tem a ambição de narrar o progresso e depara-se freqüentemente com os retardamentos.
Por outro lado, uma história da leitura - e, portanto, seu braço direito, a história da literatura - se corresponde com a história da educação. Graças a essa associação, indica quão próxima a literatura, abrindo mão da aura que a sociedade burguesa, via institucionalização, lhe confere, está do ensino, da sala de aula e do professor.
A escola constitui o espaço por excelência de aprendizagem, valorização e consolidação da leitura, cooperando com o processo de legitimação da literatura e da escrita no mundo capitalista. Ela conta, por seu turno, com uma história especial, de que fazem parte as diferentes filosofias educacionais, as concepções relativas aos processos de ensino, o modo de organização do aparelho pedagógico. Relativamente à leitura enquanto procedimento de decodificação de textos escritos, pressupõem-se tomadas de posição pelo menos sobre os seguintes tópicos:
- o método de alfabetização;
- o tipo de livro escolhido, se didático, pára-didático ou outro;
- a educação artística e o ensino da literatura.
Essas discussões, que se acirraram nos últimos anos, acompanham a história da leitura no Brasil. Desde que se tornou nação independente, o país se depara com a necessidade de enfrentar e derrubar as altas taxas de analfabetismo da população. A maior parte dos métodos propostos, desde o lancastriano, em vigor nas primeiras décadas do século XIX, até o construtivista, nos últimos anos, se propõe a revolver o problema, encarando as duas facetas da questão:
- como alfabetizar de modo acelerado, cortando o caminho que tem atrasado a consoli-dação da escola brasileira;
- como fazer o analfabeto aceitar o processo de alfabetização, porque, sendo ele via de regra pobre e despreparado culturalmente, se depara com uma situação inusitada que, à primei-ra vista, parece contradizer sua experiência e que, por isso, ele rejeita.
As questões a serem solucionadas revelam a face principal do problema: não se trata de método, e sim de sujeito. O analfabeto que é problemático apresenta uma configuração a priori: ele é pobre, está fora da idade para ser alfabetizado (mesmo quando ainda se trata de crianças), nem sempre foi bem nutrido, habita o campo ou vem de lá, precisa trabalhar desde cedo e muito para sobreviver. Os métodos de alfabetização parecem invadir um terreno já ocupado por outros problemas, provavelmente mais prementes, de modo que terão de decifrar o enigma, para não serem devorados.
O enigma talvez se resuma a uma única pergunta: como lidar com as camadas populares? Alfabetizá-las é adequá-las à sociedade burguesa, proporcionando a essa última mão-de-obra qualificada? Ou é prepará-la para se defender no mundo moderno, industrializado, globalizado e complexo, de difícil enquadramento? Ou é conscientizá-la, para que entenda sua situação de exploração e miséria, levando-a a virar a mesa? Os métodos de alfabetização implicam uma prática que vai para além deles, embora dificilmente deixem de ser condutores dos sujeitos com que lidam e formam.
As duas outras exigências - relativamente à trajetória do livro didático no Brasil e/ou do ensino da literatura - reproduzem o enredo: o Brasil carece de escolas qualificadas, os professo-res nem sempre apresentam formação adequada, o Estado remunera mal o corpo docente. Além disso, e talvez por conseqüência, a aprendizagem da literatura afigura-se insatisfatória, as obras literárias que circulam na sala de aula dificilmente conseguem formar bons leitores, o livro didático parece consistir a emenda pior que o soneto.
O rosário de queixas pode ir longe, sobretudo quando seu objeto é a precária situação educacional do país. O fato, contudo, de se apresentarem com tanta freqüência reclamações e protestos reforça, por outro ângulo, a importância da escola enquanto instituição. Não tivesse ela influência na sociedade, agindo sobre a formação dos indivíduos e constituindo-se em poderoso mercado de consumo e de trabalho, talvez a sociedade ficasse indiferente à sua incompetência, considerada mais outra no conjunto das deficiências nacionais. A racionalização não deve, porém, servir de consolo, e sim sugerir que, sem considerar o ensino, não se pensa a leitura, nem se entende a literatura, cuja definição passa pela interferência e impacto desencadea-do pela escola.
Eis em que medida uma concepção histórica sobre a leitura é fator decisivo para se compreender a materialidade do conceito de literatura, para além dos desafios da sociologia literária. Para se compreender igualmente a sociedade onde opera a literatura e que se expressa em leitura. Ponto de apoio para a compreensão da sociedade brasileira contemporânea, uma história da leitura é igualmente seu retrato em perspectiva, que queremos conhecer em todas suas dimensões.
Notas bibliográficas
1- THOMSON, George. Os primeiros filósofos. Lisboa: Estampa, 1974.
2- CALLAGE, Roque. Rincão. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1924, p. 47-49.
3- AMADO, Jorge. Agonia da noite. 10. ed. São Paulo: Martins, 1964, p. 28.
4- Como se verifica em pesquisas realizadas por Roger CHARTIER e Robert DARNTON, por exemplo. Cf., entre outros, CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France d'Ancien Régime. Paris: Seuil, 1987. MARTIN, Henry-Jean et CHARTIER, Roger. Histoire de l'édition française. Paris: Promodies, 1982 - 1985. 2v.; DARNTON, Robert. The Literary Underground of the Old Regime. Cambridge and London: Harvard University Press, 1982. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986. O beijo de Lamourette Midia, cultura e revolução. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
6- Cf. Cristin, Claude. Aux origines de l'histoire litttéraire. Grenoble: Presses Universitaires, 1973.
7- Essa questão, com suas consequências no campo da produção e da circulação de textos literários, é examinada em Dubois, Jacques. L'Institution de la littérature. Introduction à une Sociologie. Brussels: Labor, 1978.
8- Ver Bürger, P. Vermittlung - Rezeption - Funktion. Ästhetische Theorie und Methodologie der Literaturwissens chaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1979. Theory of the Avant-Garde. Trad. de M. Shaw. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.
9- Ver a respeito Zilberman, R. "O Uraguai: moderno e americano". In: Malard, Letícia et alii. História da Literatura. Ensaios. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
10- Cf. a respeito Zilberman, R. A terra em que nasceste. Imagens do Brasil na literatura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994.
11- Andrade, Oswald de. "Manifesto da Poesia Pau-Brasil". In: Telles, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 267.
12- A respeito, cf. Lajolo, Marisa e Zilberman, Regina. A leitura rarefeita. São Paulo: Brasiliense, 1991. Id. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.
*Professora Dra., Titular da PUC-RS
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