Nasci num lugar que não faltava água. De inverno a inverno o rio estava lá, sempre correndo cheio e ainda mais abundante na temporada das chuvas.
Era tanta água, mas tanta água, que eu pensava que em todos os lugares era igual. Mas tinha um detalhe: para termos água em casa para cozinhar, beber e outros afazeres, tínhamos que ir pegá-la no rio com baldes e cabaças. Então, a gente tinha água para beber, lavar as louças, as roupas e escovar os dentes. O banho a gente tomava era no rio mesmo, e era a maior alegria.
Lembro-me que para escovar os dentes tinha uma lata dessas que vem com leite em pó cheia de água no banheiro. Ou, as vezes, um copinho de plástico ainda menor. E era o suficiente. Não havia desperdício.
Depois de um tempo fomos morar na cidade. E para minha tristeza descobri que lá não tinha rio, e que a água chegava até casas por meio de finos canos de plástico. E o que é pior, não era gostosa como a água que nós pegávamos no rio.
Para escovar os dentes tinha a torneira da pia e para o banho tinha o chuveiro. Mesmo assim, sem fazer qualquer esforço para ter água em casa (a não ser o de pagar a conta), nossos pais sempre nos ensinaram a não desperdiçar água. Escovar os dentes, mantendo a torneira fechada e passar o sabonete com o chuveiro desligado nunca foi novidade para mim.
Achava estranho quando na escola as professoras falavam que tínhamos de escovar os dentes com a torneira fechada; e eu me perguntava “quem, em sã consciência deixa a torneira da pia ligada enquanto escova os dentes?”. Mas não demorou muito para descobrir que muitas pessoas agiam assim. E faziam muito mais: deixavam o chuveiro derramando água no vazio enquanto tomavam seus longos banhos, lavavam as calçadas com a água limpa direto da torneira, e tantos outros desperdícios que eu achava e ainda acho exagerados.
Na escola, sempre ouvi falar que a água doce um dia acabaria, achava um exagero, um absurdo, mas nem por isso agia irresponsavelmente com a sua utilização. E com o passar dos anos, os alertas sobre a falta d’água só aumentaram, a consciência sobre um uso racional não e os problemas foram se intensificando.
Hoje assistimos a maior cidade brasileira viver uma crise hídrica que nos faz pensar: “será que isso pode acontecer com a gente?”.
Outro dia, enquanto caminhava pela rua, sob esse sol escaldante que aparece nos dias sem chuva do nosso inverno, escutei alguns jovens, que pela aparência deviam ter menos de 20 anos, comentando sobre o assunto: “isso é lenda, aqui a água não acaba igual São Paulo não”. Pensei comigo: “eles também, provavelmente, já disseram isso por lá”. Enquanto o nível dos reservatórios não aumenta na maior cidade do Brasil, aqui as pessoas continuam gastando água em exagero, sem perceberem que estão desperdiçando um precioso recurso natural.
Não quero aqui dizer que a população é a única culpada pela escassez de água em São Paulo e nas demais regiões que enfrentam o mesmo problema. Existem culpados nas diferentes esferas do poder administrativo público e privado. Mas não possuo nenhum conhecimento técnico para tratar com profundidade o tema, apenas reservo-me o direito de falar sobre o que conheço através das experiências de infância que tive e sobre o consumo de água em casa. Agora, posso afirmar sem medo de errar que o maior responsável pela falta d’água são as pessoas que nunca precisaram carregar água nas costas para beber e cozinhar.
Desculpem a rudez na conclusão que para mim parece óbvia. Mas, realmente, quem não passou por todos as dificuldades que tivemos na roça para ter água em casa, apesar da abundância, quem não passou pelo esforço esforço físico de ter que, para escovar os dentes, buscar águas em baldes e ainda economizar para que toda a família se beneficiasse, não sabe realmente quantos privilégios temos no sistema que leva água tratada direto para dentro de nossas casas com um simples girar de mãos.
Talvez, desta grande crise, surja uma nova postura com relação a nossa relação com a natureza. Que nos sirva de lição. Mas isto, somente o tempo dirá.
Diante desta crise hídrica lembro dos meus tempos de meninice. Penso nas tardes quentes e dos banhos refrescantes de rio. Lembro dos dizeres populares, do som da sanfona, das conversas à porta de casa e das histórias que surgiam rompendo o silêncio da noite. E tudo isso, somados, foram motivos que me levaram a pensar sobre os nossos deveres e valores.
Como queremos viver?
O que precisamos fazer para cuidar do planeta, mais especificamente de nossas águas?
Aqui em nossa cidade, estamos avaliando e pensando no futuro para que a água não falte?
Trago comigo boas lembranças e compartilho-as com a finalidade de refletir sobre a importância do uso consciente das nossas águas.
Portanto, para aqueles que ficam meia hora com o chuveiro ligado enquanto tomam único banho, que lavam calçadas com a água que poderia servir para beber e para o preparo de alimentos; que não reparam vazamentos em sua residência, que não trocam a torneira que insiste em continuar pingando porque julgam barato a água que pagam, que vivem cercados por rios imensos e não os preservam, jogando os seus lixos, derrubando árvores e explorando irresponsavelmente, que estão fora da zona de risco da crise hídrica e acham que com isso nunca serão atingidos... Saibam que chegou a hora de uma mudança de pensamento e postura. Ou o futuro será seco.
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