Karylleila Andrade Klinger¹
Introdução
Guernica, de Pablo Picasso, representa o horror da Guerra Civil Espanhola em 1937. É uma obra trágica e clássica que nasceu das impressões causadas no artista quando do bombardeio, comandado pelos nazistas, sofrido pela cidade de Guernica, antiga capital Basca. É um símbolo doloroso do medo e do terror que uma guerra pode produzir: desespero e impotência diante do medo, do perigo. Guernica se tornou uma obra universal que eterniza o horror das guerras.
Medo é o sentimento da incerteza. É mais ameaçador quando difuso, disperso, nebuloso, desvinculado, desancorado, flutuante, líquido. É imprevisível e sem contornos: quando nos aterroriza sem que haja uma explicação plausível. É o visível sem resposta: quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la.
O medo é o nome que damos as nossas incertezas. Isto ficou claro na passagem para a Era Moderna: onde havia escuridão, havia incerteza, portanto, perigo iminente. A modernidade seria um salto enorme para o homem, ao invés do medo, a luz e o brilho da ciência. Era o tempo do fim das surpresas, calamidades, catástrofes, ilusões, lutas. O tempo que se acende é o tempo livre dos medos. Lamentavelmente, o caminho planejado sofreu um grande e tortuoso desvio. Após séculos, continuamos a viver na rota dos temores.
O medo é parte de nossa natureza. Os homens compartilham com os animais desse sentimento: no enfrentamento oscilam entre alternativas de fuga e agressão. Mas aos homens, em particular, quando suscetíveis ao perigo, a sensação de insegurança e vulnerabilidade são constantes, diferenciando-os dos animais propriamente ditos.
São três os tipos de medo de que fala Bauman (2008): ameaças ao corpo e à propriedade; ameaças à ordem social e à confiabilidade (da qual depende sua sobrevivência, o emprego, renda, seguridade social); e, por fim, os perigos que ameaçam o lugar das pessoas no mundo (hierarquia social, identidade – raça, gênero, étnica e religiosa).
Quando retomamos a suscetibilidade do horror diante do perigo, percebemos que na consciência dos sofredores a insegurança e a vulnerabilidade são facilmente desacoplados dos perigos que causam. As pessoas que o sentem podem interpretá-lo em qualquer um dos três tipos de medo. Mas o que mais amedronta o indivíduo é a ubiquidade dos medos: eles podem aparecer de qualquer fresta, vazarem de qualquer canto, seja dos nossos lares seja do planeta. Edvard Munch, expressionista, revelou na sua obra-prima, O grito, a angústia e o desespero diante da dor e decepções do pintor.
Somos conscientes de que dos nossos quartos, das ruas escuras, dos noticiários, de nossos locais de trabalho, das pessoas com quem nos relacionamos virtualmente ou não, e até do que ingerimos, o medo está sempre à espreita, por perto, nos rodeando. É um medo que parece estar sempre a caminho, sorrateiro, disposto a nos causar angústia, insegurança.
Mas há também um medo que vive e sobrevive numa zona cinzenta: camuflado, mais aterrorizante do que podemos imaginar. Sem nome, sem endereço certo, ameaça destruir nossos lares, nossas vidas, nossos empregos, nosso planeta. Cada vez mais encorpado, surge de dentro de garrafas, quase sempre, de aprendizes de feiticeiros superambiciosos. A zona cinzenta se vale de redes em que bolsas de valores caem todas ao mesmo tempo; companhias sólidas desaparecem ou se fundem para o desespero dos trabalhadores e do mercado; barris de petróleo secam, dados virtuais são roubados, extraviados ou clonados. O que Vitor Hugo ruminou, séculos atrás, de modo melancólico e introduzido pela ciência, quando disse que a Era Moderna poderia estar livre dos medos, desprende do que vemos e assistimos constantemente no cotidiano: uma zona cinzenta que se avoluma de novos perigos, novos medos.
Carpe diem! Aproveite agora, pague depois.
No ambiente líquido-moderno, o combate ao medo se tornou tarefa árdua e para uma vida inteira. Hoje chocolate pode ser o vilão, amanhã pode ser o ovo, depois virão outros e mais outros. Mas também de vilões podem passar a ser sinônimos de saúde de uma hora para outra. Para provocar mais: quem foi danificado com o bug do milênio? Quantos já morreram ou sofreram doenças por causa de alimentos geneticamente modificados? Embora possam ser aterrorizantes, os pânicos vêm e vão: rápidos como foguetes ou dispersos como as nuvens. A vida líquida desliza ou se arrasta de um desafio para o outro, o hábito comum de todo episódio é uma certa tendência de vida curta. Retomando a história do bug do milênio, vale observar que a indústria do consumo gosta de se alimentar do medo, por isso, depende da produção de consumidores. Bauman (2008) fala que os consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a enfrentar o medo são temerosos e amedrontados, esperançosos de que perigos que temem sejam forçados a recuar graças a eles mesmos (com ajuda remunerada, obviamente). As indústrias fonográfica e farmacêutica são bons exemplos de uma economia de consumo que depende da produção de consumidores e de seus medos.
E o futuro é nebuloso? Vivemos a crédito, pois, não! Compramos a prestação, pois, sim! Para tal empreitada, dividimos em 10x sem juros!
E vamos a mais uma pergunta: Por que, então, assombrar-se com os medos que ainda virão? E uma possível resposta: Não vale a pena se preocupar e gastar, a crédito, a vida que tens com preocupações futuras. Talvez os seus medos nunca se concretizem. Carpe diem! Aproveite agora, pague depois. Quando pensamos nos medos, nossa sobrevivência depende da forma como lidamos com eles. Nunca uma população foi tão endividada quanto a da nossa geração. A propaganda do Mastercard revela bem isto: “Para Mastercard não tem preço”. É desejo de satisfazer o agora. E o cartão de crédito é o maior amigo, magicamente, traz o futuro até nós. É o prazer imediato. Se a poupança prevê um movimento de pensar no futuro longínquo, de certezas; para um futuro incerto, vale o cartão de crédito. O que fazemos agora determina a forma do futuro.
O pavor da morte
O Evangelho de Jó nos mostra que a punição é a norma; e a recompensa, uma exceção. Ou seja, os ganhadores são aqueles que escapam à sentença universal da eliminação, como acontece nos reality shows. Os vínculos entre virtude e pecado e a recompensa e a punição são tênues e eventuais.
Os contos morais, exemplificados a partir dos reality shows da atualidade, nos dizem que os desastres acontecem de forma aleatória, às vezes, sem explicação ou motivo aparente. O que existe é apenas um fio, uma linha tênue, se é que existe, entre aquilo que homens e mulheres fazem e aquilo que lhes acontece. Desse modo, pouco se pode fazer para evitar o sofrimento. Bauman (2008) diz que “‘os contos morais’ de nossa época falam da ameaça maligna e da iminência da eliminação, da quase impotência dos seres humanos em escapar de seu destino”. Esses contos espalham o terror, os medos que disseminam são incuráveis, inextirpáveis, chegaram para ficar, podem até ser suspensos por um momento, perdidos, mas não exorcizados. Esses medos não possuem antídoto. E o pior: os contos morais tentam nos vacinar contra esse medo proclamando a banalização da morte.
A morte é o fim... Irrecuperável... Irrevogável... É o único evento na vida sem retorno. O Inferno, primeira parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri, reporta logo na entrada do Portal do Inferno um aviso: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar. Só se tem livre-arbítrio enquanto se encontra vivo, morto perde-se a capacidade de pensar e tomar decisões. É por essa razão que a morte passa a ser incompreensível para os que estão vivos.
Ao homem cabe também a negação da morte, desconstrução e a banalização. Não é à toa que tentamos a todo custo mostrar uma tendência inequívoca a colocar a morte de lado, a suprimi-la da vida. Freud, citado por Bauman (2008), explica que “temos o hábito de enfatizar a causalidade fortuita da morte – acidente, doença, infecção, idade avançada; dessa maneira, revelamos o esforço de reduzir a morte de necessidade à oportunidade”. Para Freud, tal redução ou desconstrução está afinada com o discurso da modernidade. O que se vê é que quando se aplica a ideia de desconstrução, exclui-se se o fato da morte ser biologicamente determinada entre os seres humanos.
De par com a desconstrução, a banalização caminha sorrateiramente ao lado da morte, sua companheira imprescindível e infalível. No confronto, transforma a morte num evento comum, corriqueiro. A banalidade conduz a experiência única da morte para o domínio da rotina diária dos mortais, promovendo em suas vidas encenações da morte, aguardando o sentimento de familiaridade do fim. A partir daí, aliviar o horror que transpira da alteridade absoluta: “a total e absoluta incognoscibilidade da morte”.
Derrida, filósofo francês citado por Bauman (2008), revelou que cada morte é um fim de um mundo, de um mundo único, que não tem volta. Para ele, cada morte é a perda de um mundo – “uma perda definitiva, irreversível e irreparável. A ausência desse mundo é que jamais acabará – sendo, a partir de agora, eterna”.
Figura 4 - Criança morta - Cândido Portinari (1944)
O medo e a banalização do mal
Segundo Baumam (2008), o medo e o mal são irmãos siameses: onde um estiver, o outro estará. Um aponta para fora, outro para dentro, para você mesmo: experiência conjunta e única. Mas o que é o mal? O que tememos? Tememos o ininteligível, inexprimível e inexplicável. Sabemos o que é um crime porque temos um código jurídico que atesta o ato criminoso. Sabemos também o que é um pecado porque temos os dez mandamentos. Mas e o mal? “mal é aquilo que desafia e explode a inteligibilidade que torna o mundo suportável”. Apelamos à ideia do mal quando não podemos apontar que regra ou norma foi negligenciada, quebrada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado.
Vários filósofos tentaram explicar a presença do mal, mas não tiveram sucesso. Relegam o mal a uma zona obscura, não apenas desconhecida, mas incognoscível: o mal tende a ser chamado quando fixamos na ideia de explicar o inexplicável. Apegamos a ele como último recurso em nossa busca desesperada por uma explicação. Transpor a posição de explicar o objeto, o acontecido, exige avançar para além da natureza humana.
Na súplica de Jó (6: 24) “ensinai-me, e eu me calarei; e fazei-me entender em que errei”. “Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado?” (Jó, 7:20) “Na verdade sei que assim é; porque, como se justificaria o homem para com Deus?” (Jó, 9: 2)² . O Livro de Jó condensou a inefável experiência do “mal injusto” (e indiretamente, da graça não merecida). Apresentou, ainda, os argumentos que iriam ser esboçados por teólogos por vários séculos a fim de tentar salvar os ensinamentos das raízes imorais, do mal, e da natureza moral, e apenas moral, dos meios de afastar o mal ou evitar sua ocorrência.
Hannah Arendt (1999) revela o choque e a confusão que nós sentimos ao ouvir falar de Auschwitz (uma rede de campos de concentração, localizado na Polônia, símbolo do Holocausto) pela primeira vez, e o gesto de desesperança com que reagimos à notícia de que é um pressuposto dos sistemas jurídicos modernos de que a intenção de agir errado é necessária para que se cometa um crime.
Em Jerusalém, no banco dos réus, assessorado por cultos advogados, estava Eichmann³, que tentou, a todo custo, convencer o tribunal de que era inocente face às acusações de que era alvo, pois seu único motivo era o trabalho bem-feito, e isto ele tinha feito de forma espetacular: cumpriu as ordens de seus superiores. Portanto, para um burocrata plenamente habilitado, como se descendesse de um tipo ideal de Max Weber, a intenção de agir errado estava ausente. Errado seria não ter cumprido as ordens. Ele foi um dos responsáveis pela logística de extermínio de milhões de pessoas durante o Holocausto. Se Eichmann-pessoa tinha ódio ou raiva dos judeus, isto, para ele, era irrelevante: “no que concerne à morte dos judeus, eu não tive nada a ver com isso. Eu nunca matei um judeu, ou um não-judeu, eu nunca matei nenhum ser humano. Eu nunca dei ordens para matarem judeus ou não-judeus; eu pura e simplesmente não o fiz” (CARVALHO, 2012, p. 2). Arendt relata a linha de argumentação do julgamento: Eichmann é considerado um homem banal, trata-se de atos banais, trata-se da banalidade do mal, ele foi cumpridor de ordens do Estado.
“Pessoa normal” foram os relatos de diagnósticos de diversos psiquiatras. Um deles, inclusive, teria dito que ele “é mais normal, em qualquer escala, do que eu após o ter examinado”. Foi atestado também que sua atitude face à sua família, à sua mãe e pai, irmãos e amigos “era não apenas normal, mas bastante adequada”. Com base nesses atestados, Eichmann não pode alegar insanidade mental ou legal, até mesmo, porque não exalava ódio particular aos judeus. Por isso, a justiça encontrou-se em um enorme dilema: “Eichmann, como todas as “pessoas normais”, deveria ter consciência da natureza criminosa dos seus atos. Este julgamento transcende o acusado, remete-nos para a história moderna, para a natureza do homem e dos seus atos, sem esquecer que “sob condições de terror, a maioria das pessoas obedece, mas algumas não, assim o escreve Hannah” (CARVALHO, 2012, p. 4).
Os sentimentos são muitos e falam línguas distintas, às vezes desarmônicas; a razão é uma só e fala apenas uma língua. “O que distingue o mal burocraticamente administrado e realizado não é tanto a banalidade, mas a sua racionalidade” (BAUMAN, 2008, p. 85). Os males produzidos e causados por seres humanos parecem cada vez mais inesperados quanto seus precursores, que podem ser companheiros e até herdeiros. Eles se tornam conhecidos e apreendidos quando somente se olha para trás, e vemos as coisas a partir de uma retrospectiva.
Notas:
¹ Professora do Curso de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado e Doutorado em Ensino de Língua e Literatura da UFT, e cursa o pós-doutorado na Universidade de Coimbra, Portugal.
² BIBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional. Paulus: São Paulo, 1990.
³ Em 1961 o The New Yorker enviou Hannah a Israel para cobrir o julgamento de Eichmann, que viveu incógnito, sob outra identidade, na Argentina, até 1960, quando os serviços secretos israelitas o levaram para Israel para ser julgado por crimes contra a Humanidade, contra o povo judeu e crimes de guerra durante o período da II Guerra Mundial. Eichmann foi condenado à morte e enforcado em 1962, naquela que foi considerada uma exceção à lei israelita que não prevê a pena de morte.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BAUMAN, Zigmunt. O medo líquido. Jorge Zahar, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional. Paulus: São Paulo, 1990.
CARVALHO, Xênia de. Da Banalidade do Mal: Hannah Arendt e o julgamento de Eichmann em Jerusálem, 2012. Disponível em: <http://www.academia.edu/1305819/Da_Banalidade_do_Mal_- Hannah_Arendt_e_o_julgamento_de_Eichmann_em_Jerusalem>. Acesso em: jul. 2013.
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