sábado, 6 de setembro de 2014

Para ler, comer e usar

Laura de Mello e Souza

A invenção da imprensa sempre foi considerada um marco extraordinário na história da humanidade. Não é de hoje, porém, que historiadores e cientistas sociais discutem o alcance e os limites desse evento. Se antes o fato de tal ou qual autor não ter sido publicado em vida acarretava uma série de considerações sobre sua importância e influência, hoje se pensa duas vezes sobre o fato, antes de arriscar uma generalização. Quantos teriam sido os afetados pela difusão dos livros? Em que medida os impressos foram de fato um meio privilegiado de difusão de saberes cultos em um mundo visceralmente distinto do nosso?



O historiador norte-americano Bernard Bailyn arranhou muitas certezas ao defender que o movimento de independência dos Estados Unidos (1776) deve tanto ou mais aos panfletos e à cultura oral dos pubs do que aos textos eruditos. Em As origens ideológicas da revolução americana (1967), Bailyn minimizou o alcance, entre a população da época, das grandes teorias de então – sobretudo de John Locke (1632-1704) – e fez escola. Em ensaio brilhante, intitulado ‘Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica’, o italiano Carlo Ginzburg, em praia totalmente diversa, tocou em princípio análogo, mostrando que um célebre quadro de Ticiano teria sido inspirado em toscas gravuras populares e não em As metamorfoses, do poeta romano Ovídio.

Ainda sem tradução entre nós, os trabalhos do espanhol Fernando Bouza Alvarez são, neste sentido, modelares. Este historiador que visitou o Brasil pela primeira vez em junho, começa a ser mais bem conhecido e discutido na universidade brasileira. Mais que um estudioso da imprensa e das formas impressas, ele se interessa pela circulação e comunicação de informações, por diferentes meios, na primeira Época Moderna (séculos 15 e 16). Um de seus trabalhos mais conhecidos, Corre manuscrito, mostra que textos escritos à mão continuaram circulando com grande intensidade até muito tarde, e com ampla influência. Mais: que o fato de só haver versões manuscritas de certos textos – lembro, aqui, da Clavis Prophetarum, do padre Antonio Vieira, nunca publicada – não é sinônimo de obscuridade, desconhecimento ou ausência de impacto. E que sociedades sem imprensa não ficam privadas de sofisticados circuitos de informação. Consolo para os brasileiros, já que nossa terra, por ordem da coroa portuguesa, esteve desprovida de imprensa, como se sabe, até 1808.

Bouza ensina também que o texto manuscrito tinha incrível flexibilidade, ausente do impresso: o autor podia acrescentar ou suprimir passagens que, se ‘adulteravam’ o original, por outro lado inseriam fragmentos reveladores do contexto histórico no qual foram produzidos. Manuscritos ou impressos, os textos tinham funções múltiplas. Eram suportes da comunicação em um sentido muito amplo do que se pode imaginar. Havia textos com imagens religiosas impressas feitos para serem comidos, e outros, desenhados, deviam ser trazidos para proteger o corpo de ferimentos, com óbvia conotação mágica. Os últimos foram muito usados pelas populações luso-afro-brasileiras, e encontrei alguns ao ler processos inquisitoriais referentes a ‘mandingueiros’ do século 18.

O estudioso da leitura deve, portanto, confrontar suportes variados e não se deixar enredar pelo fetiche dos impressos. Um exemplo inteligente de como tradições variadas podem se entrecruzar criativamente quando o assunto é a circulação da informação está na edição deslumbrante que a editora Cosac Naify fez dos contos de Grimm: as histórias, reunidas a partir de relatos populares no momento em que as Luzes intimidavam a tradição oral europeia, no século 18, foram magnificamente traduzidas para o português e ilustradas com xilogravuras encomendadas a J. Borges, grande artista nordestino celebrizado por publicações de cordel.

Transcrito de Ciência Hoje, revista de publicação científica da SBPC, nº 305, v. 51, jul 2013, p. 37

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