domingo, 21 de setembro de 2014

A América Latina tem fome de cultura

Uma pesquisa da Organização dos Estados Ibero-americanos revela que o aceso às artes cresce no continente ao mesmo tempo em que a instituição pede aos Governos mais investimentos públicos



O acesso, a qualidade e a oferta de cultura na América Latina aumentaram neste século. Quase 6 em cada 10 pessoas pensam assim, e a maioria também avalia que continuará a crescer. Ouvir música, assistir a vídeos e ler são as práticas favoritas, entre outras razões, porque são gratuitas e de fácil acesso. A primeira grande radiografia latino-americana mostra hábitos culturais de assiduidade regular e baixa, especialmente na América Central. Em 20 países de língua espanhola, mais o Brasil, a média do Produto Interno Bruto (PIB) dedicada à cultura está abaixo de 0,5%, enquanto a presença da internet cresce consideravelmente (40% tem acesso) e se transforma em uma espécie de contrapeso para as políticas oficiais.

Estes são alguns dos dados mais reveladores da Enquete Latino-Americana de Hábitos e Práticas Culturais 2013, uma vasta radiografia realizada pela Organização de Estados Ibero-americanos (OEI). A pesquisa consultou 1.200 pessoas por país, e tem uma margem de erro de 2%. Apesar do otimismo da população sobre a melhora do acesso e fomento à cultura, a OEI chama a atenção dos Governos para dois pontos. O primeiro tem a ver com o fator econômico e o investimento no setor, e o segundo com o apoio e impulso aos valores de criação local e regional que contribuem para a apropriação social da cultura.

Cinema: 65% dos latino-americanos disseram não ter ido ao cinema no último ano, e só 9% realizaram a atividade uma vez por mês. Entre os países com mais cinéfilos estão a Costa Rica (14%), o Equador e a Venezuela (13%). Mais da metade assiste a vídeos (56%), contra 40% que nunca o fizeram.



PESQUISA LATINOAMERICANA DE HÁBITOS E PRÁTICAS CULTURAIS

Música: Seis em cada 10 latino-americanos escutam música gravada, 27% o faz todos os dias. Os países em que a população realiza a atividade com mais frequência no período de uma semana são a Venezuela (40%), a Argentina (30%), o Paraguai (28%) e o Brasil (27%).

Livros: 45% dos entrevistados reconhece que não lê nunca ou quase nunca por motivos profissionais ou educativos. Os cidadãos que mais leram no último mês por lazer ou interesse pessoal foram os mexicanos (36%), uruguaios e guatemaltecos (33%) e costarriquenhos (31%).

Meios de Comunicação: Os latino-americanos costumam dedicar uma média de 3,5 horas por dia à televisão e 3,7 horas a mais nos finais de semana. Os maiores teleconsumidores são os hondurenhos (4,5 horas), e os costarriquenhos, uruguaios e venezuelanos (4,3 horas). Em relação à rádio, em média são dedicadas 3,9 horas diárias de segunda-feira a sexta-feira. A leitura de jornais consome 3,7 dias por semana.

Internet e redes sociais: Grande parte da população acima de 51 anos (80%) nunca usou e-mail ou internet, contra 57% das pessoas com idades entre 31 anos e 50 anos, e 33% dos mais jovens. Um terço daqueles que têm um nível socioeconômico alto acessa a internet todos os dias. No total, 82% dos membros das classes mais baixas nunca se conectaram à rede. Na liderança dos mais tecnológicos estão os argentinos, brasileiros e chilenos - entre 28% e 22% - que afirmam usar o computador “várias vezes ao dia”. O Facebook é a rede social mais usada em todos os países (38%), seguida pelo YouTube (21%). A média regional de acesso à internet é de 40% frente a 80% nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os motivos fundamentais, segundo um cálculo realizado pela União Internacional de Telecomunicações e citado no Latinobarómetro, são “as elevadas tarifas de conexão à banda larga em relação ao PIB per capita mensal” e a “limitada infraestrutura de telecomunicações” de muitos países da região.

A criação local é essencial, embora talvez não seja percebida como cultura

Patrimônio material: 62% dos entrevistados admitiram nunca ter ido a um parque histórico ou a algum lugar que fizesse parte do patrimônio nacional, enquanto 27% disseram ter visitado locais como esses entre uma e três vezes. Os que mais realizam esse tipo de passeio são os argentinos, mexicanos e peruanos (32%).

Conclusões para alguns dos países com maior uso cultural

ARGENTINA

Um em cada 10 argentinos vai ao cinema uma vez por semana e eles são os que assistem mais frequentemente a espetáculos musicais. Um terço dos entrevistados assegurou ter ido a uma apresentação entre uma e três vezes no último ano. No total, 20% disseram ter ido ao cinema pelo menos uma vez no último trimestre. Junto com México e Brasil, a Argentina tem um dos maiores mercados audiovisuais da região, o que, segundo o estudo, poderia explicar esse afeto pelas salas de cinema. Estão, além disso, acima da média de livros lidos por ano (4,8). Três em cada quatro (76%) garantem que leem pela necessidade de estar informados e quase a metade (47%) pelo simples prazer de fazê-lo. Também está entre os países onde as pessoas dedicam mais tempo a ver vídeos (4% diariamente e 28% uma vez por semana).

BRASIL

A grande maioria dos brasileiros entrevistados (80%) afirmou que nunca tinha ido a concertos ou apresentações de música ao vivo, mas, ao mesmo tempo, são os que mais escutam músicas gravadas diariamente, bem como costarriquenhos, colombianos e uruguaios. Seus habitantes também estão entre os que garantem ter lido no último ano mais por razões profissionais ou de formação, deixando o país atrás da Costa Rica (44%) e empatado com o Equador (38%). Estão entre os que mais devoram livros, quatro por ano (a média é 3,6), e entre os principais usuários diários de computador (23%). Os brasileiros consomem menos horas de televisão durante a semana (2,7 horas) que o restante dos habitantes da região. Na metade dos lares (49,9%) há um computador.

CHILE

Os chilenos leem menos que a média (2,8 livros ao ano) e são maioria os que asseguram nunca realizar a atividade por motivos profissionais ou de estudo (61%, acima da média de 45%). Quase a metade se entrega à leitura por prazer (47%). No total, 10% vão ao cinema uma vez por semana e um em cada cinco escuta música diariamente. Em uma enquete nacional apresentada no relatório se explica que 40% da população urbana que declarou escutar música reconheceu baixá-la da Internet. O Chile está entre os países onde mais gente se conecta diariamente à rede, assim como a Argentina e o Brasil. A maioria dos que navegam assiste a vídeos online (95,5%).

COLÔMBIA

A Colômbia está três pontos acima da média entre as pessoas que afirmaram não ter ido ao cinema no último ano (68%). Os motivos são principalmente o desinteresse (36,8%), a falta de dinheiro (34%), ou ver os filmes pela televisão (26,6%), segundo uma pesquisa nacional de consumo cultural citada no Latinobarómetro. Mais da metade dos colombianos reconhecem que não leem por motivos profissionais, embora estejam acima da média em livros por ano (4,3).

MÉXICO

Segundo a pesquisa, os mexicanos são os maiores leitores da região, e o fazem sobretudo por lazer. A média é de seis livros por pessoa anualmente. Também são os que escutam mais música diariamente (40%), na maioria dos casos comprada de tianguis, os vendedores ambulantes mexicanos. Embora o país seja um dos maiores mercados audiovisuais da região, mais de 60% afirmam que não foram ao cinema no último ano. Os motivos citados para não ir são a falta de tempo ou de dinheiro. Na Bolívia e no México estão os cidadãos que menos veem televisão na região durante a semana (uma média de 2,7 horas). Os mexicanos são também os visitantes mais assíduos de seu patrimônio cultural, ao lado dos uruguaios. Quase a metade (44%) visitou algum monumento no último ano. E 4% disseram ter feito passeios culturais “mais de 12 vezes” nesse período.

O FOSSO DA AMÉRICA CENTRAL

O estudo reflete um amplo fosso entre o Sul e a América Central. Nessa parte da região cai o consumo cultural em quase todas as opções: cinema, música, teatro ou passeios culturais. Quem menos vê filmes nos cinemas são os nicaraguenses (82%), hondurenhos (80%), guatemaltecos (77%) e salvadorenhos (70%). Mais de 80% dos entrevistados de Honduras, Nicarágua e Guatemala nunca foram ao teatro – e El Salvador tem apenas 1 ponto porcentual a menos (79%). Também se aproximam dessa porcentagem no que se refere a concertos e apresentações de música ao vivo, tanto os hondurenhos como os nicaraguenses (88% em ambos os casos). As porcentagens também são elevadas no caso do Brasil (80%) e Paraguai (73%).

Em Honduras e Nicarágua, três de cada quatro entrevistados afirmaram que nunca visitaram um parque histórico ou cultural. Deixando a América Central, a cifra também é alta no Paraguai (69%), Bolívia (69%), Chile (66%) e Colômbia (64%).

O relatório faz um chamado aos Governos para tentar reduzir esse fosso. Nas conclusões do estudo é destacado com firmeza o fato de que as políticas públicas têm de contribuir para suprimir as barreiras que essa distância produz e multiplicar a oferta às comunidades para facilitar seu acesso e participação nas atividades culturais. Embora o porcentual dedicado pelos Governos a esse setor seja muito baixo, o seu desenvolvimento, junto com a educação, se transformou em uma prioridade dos órgãos de integração da região. Um bom exemplo disso será dado na cúpula em Veracruz (México), prevista para dezembro. “A cultura é um poderoso fator de desenvolvimento para os países e para a participação dos cidadãos, mas na maioria mal chega a 0,5% do gasto público”, lembra Álvaro Marchesi, prestes a deixar o cargo de secretário-geral da OEI.

O estudo reflete as diferenças entre as regiões meridional e central

Felipe Buitrago, consultor de Assuntos Culturais do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e coautor do livro The Orange Economy, vai um pouco além: “Os orçamentos são importantes, mas, independentemente do porcentual que se destine, faz falta um debate que vincule o financiamento com políticas de cultura, que fomente a absorção dessa cultura”.

E há ainda um outro aspecto. A criação local ou regional é essencial, apesar de não ser, talvez, percebida pelos entrevistados como Cultura. O Latinobarómetro inclui também uma reflexão sobre esse aspecto: enfatiza a necessidade de levar em conta as formas naturais e espontâneas surgidas no seio da sociedade civil, que contribuem para a apropriação social da cultura, do patrimônio, dos espaços culturais, artísticos e sociais. “A cultura comunitária”, diz o estudo, “contribui também para transformar as ruas e os espaços de contato em lugares de convivência. Conseguir formas de acesso mais democráticas à cultura, que respaldem a participação ativa da cidadania, é um dos melhores caminhos para recuperar os traços de identidade coletiva e para favorecer a inclusão social”.

Um comentário:

transcenderapalavra disse...

Alguns dados sobre o Brasil, publicados na reportagem do El País, se mostram distantes da realidade. Primeiro o universo de 1.200 entrevistados para países como Bolívia e Paraguai podem ser considerados como um universo confiável, mas não para o Brasil. Esse universo contempla menos de 50 pessoas para as 26 capitais e para o Distrito Federal, portanto abaixo do parâmetro estatístico mínimo. Ademais, órgãos de cultura dos governos municipais, estaduais e federal oferecem acesso gratuito a bibliotecas, museus, casas de cultura, salas de exposição de pinturas e esculturas, com acesso de 3ª feira a domingo, das 12 às 22 horas. Há iniciativas de entidades privadas que oferecem acesso gratuito a cinema para professores, alunos de escolas públicas e eventos com visitas guiadas com tradução para estrangeiros. Há ainda serviços como o Domínio Público e o Portal Brasil, disponibilizando o acesso gratuito de publicações da literatura brasileira e internacional, entre outros serviços para as diversas áreas da vida cotidiana. E por último, a disponibilização de informação jornalística atrvés de agências públicas como a Empresa Brasileira de Comunicação (TVs, portal de notícias, Programa Radiofônico Voz do Brasil - Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Tribunal de Contas da União - e a Rede Nacional - para pronunciamentos da Presidência da República) formam a maior rede de comunicação do continente, além de bancos de dados das maiores bibliotecas universitárias do país e a criação de redes de pontos de venda de livros usados enviados com tarifa exclusiva 'registrado livro' na internet, possibilita encontrar obras abaixo do preço de mercado. A dificuldade é que o sistema educacional brasileiro sofreu forte influência do modelo jesuítico, fixando a ideia de que só as elites têm acesso a bens intelectuais, em contraposição ao modelo alemão, no qual o sistema educacional popular é de alta qualidade. Antonio Carlos Ribeiro, editor.